quarta-feira, 28 de abril de 2010

Ficha suja e elegibilidade



A constituição brasileira não afirma a presunção de inocência, mas a da não culpabilidade. O projeto 'ficha limpa' não é inconstitucional

“Aquele que trabalha para bandido é bandido.” Esta frase foi dita pelo secretário da Segurança Pública do Rio de Janeiro. Um desabafo ético, depois da indagação sobre o que faria com os policiais militares que serviam de guarda-costas para o bandido Rogério Andrade, quando de recente e cinematográfico atentado à bomba perpetrado por uma organização criminosa rival. No episódio morreu o filho de Rogério, por mero erro de pessoa.

O conceito de bandido é também elástico para o cidadão comum. Basta-lhe a notoriedade. Não é necessário indagação sobre a existência de condenação criminal com trânsito em julgado, até porque todos sabem que o Supremo Tribunal Federal (STF), nos últimos 40 anos, não condenou nenhum político.

Essa largueza conceitual, por evidente, pode gerar embaraços legais se alguém, por exemplo, vier a chamar o banqueiro Daniel Dantas de bandido, ou seja, de criminoso. Embora condenado em primeiro grau pela Justiça Federal e por consumado crime de corrupção, Dantas não se encontra definitivamente condenado.

Por força desse “status” de indefinição judicial, Dantas poderia, em convenção de partido político, ser indicado para concorrer a cargo eletivo em 2010. E o posterior pedido de registro de candidatura não seria recusado pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE), pois o grafado em sua folha corrida criminal, como é da jurisprudência dessa Corte, seria insuficiente para gerar inelegibilidade. Em outras palavras, o banqueiro seria elegível como tantos outros em situação semelhante.

A perda de direitos políticos no que toca o poder votar e ser votado está condicionada, segundo a nossa Constituição, à existência de condenação criminal definitiva e enquanto durarem os seus efeitos: art. 15, III. Essa regra deve, porém, ser harmonizada ao princípio da presunção de não culpabilidade, que, no Brasil, erroneamente, é denominado presunção de inocência até por súmula do STF. Esse erro favorece os denominados candidatos de “ficha suja”.

Levado ao pé da letra, o princípio da presunção de inocência não permitiria, como estabelecido na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1791, a prisão provisória, cautelar. E o ex-governador José Roberto Arruda, presumido inocente, não poderia ter sido preso preventivamente, apesar de coagir testemunhas para esconder a verdade.

Na França da referida Declaração de 1791, decreta-se prisão cautelar em flagrante delito ou preventivamente. O texto incorporado da Declaração, consagrador da presunção de inocência, é interpretado com um grão de sal, ou seja, cede em razão da necessidade de uma medida de segurança social. Lá, como aqui, um casal Nardoni ou um Arruda seriam presos preventivamente.

Mas o constituinte brasileiro, no particular, não adotou o princípio da presunção de inocência. Consagrou o princípio da presunção da não culpabilidade, que é diverso. Basta a leitura dos textos para perceber a diferença: “Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória” (Constituição do Brasil) e “tout homme étant présumé innocent jusqu’à CE qu’il ait été déclaré coupable” (Declaração de 1791).

Com efeito, coube ao grande jurista Helio Tornaghi repetir, na sua obra intitulada Instituição de Processo Penal, o alerta do constitucionalista italiano Pezzatini. Isso em face de termos adotado, copiado, o artigo da presunção de não culpabilidade estabelecido na Constituição italiana de 1948. Ou seja, a nossa Constituição declarou apenas que o acusado não é considerado culpado. Ela não afirmou a presunção de inocência, limitou-se a negar a culpa.

Assim sendo, está aberto o caminho para se poder, por lei infraconstitucional, barrar o “ficha suja”. O projeto “ficha limpa”, que foi melhorado no Congresso Nacional, não está maculado por inconstitucionalidade. E foi referendado por 1,6 milhão de eleitores.

O projeto, caso vingar, dificilmente será aplicado nas eleições de 2010. Parlamentares de vida pregressa duvidosa continuarão a sustentar a inconstitucionalidade por violação daquilo que chamam incorretamente de “presunção de inocência” e prometem recorrer ao STF. No momento, o projeto está na Comissão de Constituição e Justiça. Torce-se para que seja colocado em votação plenária em tempo para poder valer em 2010.

Fora do âmbito eleitoral, nos concursos públicos para a Magistratura ou para o Ministério Público, a folha corrida de candidatos a concursos tem peso fundamental. Diante de antecedentes negativos, são barrados candidatos. Ou seja, afasta-se o risco de se colocar em função pública um futuro bandido sem ferir o princípio da presunção de não culpabilidade.

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