quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

União contra a fome


Isabel Fleck

Correio Braziliense

Fim da pobreza é a meta de brasileiros e sul-africanos, que construíram parceria durante o governo Lula


O embaixador da África do Sul no Brasil, Bangumzi Sifingo, ainda não tinha ocupado o seu posto em Brasília quando o presidente Luiz Inácio Lula da Silva assumiu, em 1º janeiro de 2003. No entanto, guarda uma frase dita por Lula no discurso de posse como uma das provas mais evidentes de que os países separados pelo Atlântico têm muito em comum. “Quando o presidente Lula foi eleito, ele fez um compromisso de que nenhum brasileiro iria dormir com a barriga vazia. Na África do Sul, o nosso novo governo disse, na sua campanha, que construiríamos um país melhor para todo mundo”, comparou, em entrevista ao Correio, destacando a preocupação comum que move os dois governos: a erradicação da pobreza.

Com a aproximação dos dois governos, durante os oito anos de gestão Lula, o problema interno dos dois países se tornou um desafio conjunto, que, acredita o embaixador, pode ser resolvido com uma adaptação do Bolsa Família à realidade sul-africana. As conversas já começaram, e autoridades de seu país vieram várias vezes ao país para aprender mais sobre o programa brasileiro. “Os elementos rudimentares do Bolsa Família já estão presentes na África do Sul, é apenas questão de montar o programa, e achamos que estamos no caminho certo”, afirmou, na quarta entrevista com embaixadores sobre o futuro das relações bilaterais durante o governo de Dilma Rousseff. Os sul-africanos também estão de olho no funcionamento do Sistema Único de Saúde (SUS) para a formação de um plano de seguro de saúde nacional em seu país.

O embaixador disse confiar na promessa da presidente eleita de que continuará o legado de Lula — o que, para ele, se aplica também à dedicação de seu antecessor em relação à África. Lula foi o primeiro presidente brasileiro a dedicar tanto tempo e esforço ao continente africano, ao qual fez 28 visitas em oito anos. Dessas, cinco foram à África do Sul — quantidade superior às três visitas feitas a toda a África por Fernando Henrique Cardoso em seus oito anos no Planalto. “O presidente Lula teve uma atitude de diferença em relação à África e decidiu estabelecer um relacionamento dinâmico com o continente. Nós vemos a eleição de Dilma como uma combinação de mudança e continuidade. Talvez haja diferença no estilo pessoal, mas os objetivos da política externa esperamos que sejam os mesmos”, disse.

Para Sifingo, Brasil e África do Sul têm muito a cooperar tanto no fórum Ibas, formado pelos dois países e a Índia, como de forma bilateral, em temas como a organização da Copa do Mundo. Segundo ele, compartilhar experiências sobre acertos e erros no evento mundial realizado em seu país este ano vai além de questões esportivas e comerciais. “A Fifa nos deu nota 9, não quis nos dar nota máxima pelo que fizemos. Então, politicamente, é importante mostrarmos ao mundo desenvolvido que os países em desenvolvimento têm capacidade para sediar eventos de classe mundial.”

O continente africano teve um peso importante na política externa do presidente Lula, e isso foi visto, em grande parte, na aproximação do Brasil com a África do Sul durante o atual governo. Como seu país vê esses últimos oito anos de relações bilaterais?


O nosso relacionamento com o Brasil está baseado nas nossas semelhanças. Nós partilhamos as mesmas características. A África do Sul passou por uma repressão durante o apartheid. O Brasil esteve sob uma ditadura militar. Ambos saíram disso e estabeleceram sistemas democráticos. E foi aí que o nosso relacionamento se solidificou. O que é importante é que o presidente Lula teve uma atitude de diferença em relação à África e decidiu estabelecer um relacionamento dinâmico com o continente. Ele aumentou a presença diplomática brasileira na África, visitou o continente e concluiu vários acordos com os países africanos — e nós nos encaixamos nesse tipo de arranjo. Nesse período, fizemos intercâmbio e trocamos visitas de Estado. O presidente (Jacob) Zuma esteve aqui em 2009 e neste ano, e o presidente Lula esteve lá em julho. É importante o trabalho que temos feito junto ao Brasil no que diz respeito à cooperação Sul-Sul e na tentativa de reforma das Nações Unidas, em termos de representatividade. Mantemos um bom relacionamento e temos certeza de que, no dia seguinte à partida do presidente Lula, os mesmos objetivos da política externa do Brasil estarão lá, mantidos.

Em que áreas a relação mais avançou?


A coordenação política melhorou. Hoje nós harmonizamos nossas posições antes de entrar em qualquer reunião de fóruns multilaterais. Os dois membros criaram um ambiente amistoso para aumentar o volume de comércio bilateral, e estamos tentando remover qualquer barreira de protecionismo que possa existir. Uma outra área importante é a tecnologia que partilhamos em projetos como o de desenvolvimento de mísseis ar-ar. No lado social, os dois governos compartilham sua preocupação com a saúde, a educação, a agricultura e a prevenção de crimes, a fim de encontrarem soluções comuns.

Para a África do Sul, qual é a importância de trabalhar, com o Brasil, em um fórum como o Ibas?

Quando o Ibas foi pensado, havia três objetivos. Primeiro, coordenar nosso compromisso com as estruturas da governança global, como as Nações Unidas, e estamos indo bem nesse nível. O segundo era ajudar os países menos privilegiados, e temos avançado em projetos, como os de controle de lixo no Haiti e em Guiné Bissau. O terceiro objetivo era melhorar a cooperação entre nós, incrementar o volume de comércio, e nós estabelecemos 17 comitês que tratam dessa questão. O nosso relacionamento é baseado no compartilhamento de valores: são três democracias emergentes, multiculturais, que gostariam de ver a estrutura da governança global reformada. A nossa visão é que as Nações Unidas são um reflexo da democracia a nível global e de que há uma necessidade de mudanças relevantes para se adaptar à nova realidade. Nossa cooperação trilateral tem atraído a atenção de outros países, inclusive nações desenvolvidas que demonstraram interesse em participar desse fórum de diálogo — algo que não havia antes. Era nós que íamos até as estruturas criadas por eles.

Mas há espaço para outros países no Ibas?


Agora, nossos líderes não querem aumentar o tamanho do Ibas. Nós gostamos de não ser uma estrutura formalizada, com um secretariado. O Ibas é uma estrutura que se encontra com regularidade, um fórum onde as decisões são tomadas em consenso, o que nenhum dos membros também quer mudar agora. Isso não quer dizer que, no futuro, o Ibas não será estendido a outros países. Com a crise mundial e o fracasso dos países desenvolvidos diante dela, ficou claro que, cada vez mais, as respostas virão do Sul. E o Ibas é um fortalecedor do movimento Sul-Sul.

O senhor espera que a presidente Dilma seguirá uma política tão próxima à África — especialmente, à África do Sul — quanto Lula?


Nós vemos a eleição de Dilma como uma combinação de mudança e continuidade. Talvez haja diferença no estilo pessoal, mas esperamos que os objetivos da política externa sejam os mesmos. Dilma Rousseff prometeu continuar o legado de Lula, e uma das coisas que ele fez foi estabelecer um forte relacionamento com a África. Então, antecipamos que a presidente eleita seguirá com isso. Lula transformou o Brasil em um ator de relevância, e nós esperamos que a presidente eleita continue com essa visão. Uma das questões que gostaríamos de continuar a discutir com o Brasil é de ter na África do Sul um Bolsa Família.

A intenção é levar um modelo idêntico ao do Bolsa Família para a África do Sul?


A erradicação da pobreza é um dos nossos objetivos importantes. Nós vemos o Bolsa Família como um bom programa para isso. Quando o presidente Lula foi eleito, no discurso de posse, ele fez um compromisso de que nenhum brasileiro iria dormir com a barriga vazia. Na África do Sul, nosso novo governo disse, durante a campanha, que construiríamos um país melhor para todo mundo — um compromisso com a erradicação da pobreza. Nós já construímos casas populares, expandimos programas voltados para a criação de empregos e estamos conversando com bancos para que façam mais empréstimos para pessoas comuns. Então, os elementos rudimentares do Bolsa Família já estão presentes na África do Sul. É apenas questão de montar o programa, e achamos que estamos no caminho certo. Já tivemos várias visitas ao Brasil do Departamento de Desenvolvimento Social sul-africano para aprender sobre o programa brasileiro.

Que outros programas brasileiros interessam ao governo sul-africano?


A África do Sul está lançando um plano de seguro de saúde nacional, e nossas autoridades vieram recentemente aqui ver como funciona o SUS (Sistema Único de Saúde). Estamos estudando a reformulação das estruturas, como ajustar esse tipo de sistema à realidade sul-africana. Também temos interesse em colaborar em setores como os de medicamentos genéricos, bancos de leite humano, cuidados de saúde primários e saúde maternal. Em 2011, esperamos receber uma delegação brasileira na África do Sul para discutir acordos técnicos nesses temas.

O senhor falou no esforço para remover as barreiras de protecionismo. Elas são um grande obstáculo para as relações bilaterais hoje?


Não chega a constituir um problema político. A questão mais importante é o acesso ao mercado de produtos para exportação. O Brasil quer acesso mais fácil da carne de porco e de gado nos portos da África do Sul, e nós queremos acesso para o nosso vinho aqui no Brasil. Temos trabalhado nisso numa comissão mista, que conduz realmente as nossas relações. O mais animador é que os dois países estão negociando.

Mas a balança pende para o nosso lado: mais de dois terços do comércio bilateral são de exportações brasileiras para a África do Sul. Como vocês pensam em aumentar as exportações do seu país para o Brasil?


Exportamos agora para o Brasil produtos de mineração, insumos agrícolas e equipamentos pesados. Mas há certos nichos de mercado que gostaríamos de explorar mais aqui, como o turismo. Nesse aspecto, há muito trabalho a ser feito, que também inclui um aumento no fluxo de transporte aeronáutico e marítimo. Mas é importante dizer que a África do Sul está estrategicamente situada e, como o Brasil tem demonstrado grande interesse na África, achamos que pode usar nosso país em termos de logística. Nosso sistema de transporte é bastante desenvolvido. A South African Airways voa para a maioria dos países do continente. A maior parte das linhas aéreas também vai até Johanesburgo. É uma opção muito boa para o Brasil penetrar o continente africano usando a África do Sul como base. Se o governo brasileiro tem interesse em chegar ao Oriente Médio, também estamos no meio do caminho.

O que o Brasil pode aprender com a experiência da África do Sul em sediar a Copa do Mundo? Há parcerias possíveis nesse sentido?


Nós já temos um fórum para que a África do Sul possa compartilhar sua experiência esportiva com o Brasil. A Fifa nos deu nota 9, não quis nos dar nota máxima pelo que fizemos. Então, politicamente, é importante mostrarmos ao mundo desenvolvido que os países em desenvolvimento têm capacidade para sediar eventos de classe mundial. E estamos preparados para compartilhar, dividir essa experiência com o Brasil. Na África do Sul, foi a primeira vez que a Fifa estabeleceu uma parceria com um governo, e estamos dispostos a mostrar como foi a experiência. Para nós, a questão da imigração, do fluxo de estrangeiros foi muito crítica — o que pode acontecer também com o Brasil. Nós tivemos um visto para ver os eventos da Copa, e o Brasil terá que desenvolver medidas de controle para gerenciar a entrada do pessoal no país. Outra coisa que o Brasil pode aprender com a África do Sul é como posicionar as pequenas empresas voltadas para a Copa, porque a Fifa tem regulações bastante rígidas quando o assunto é esse. Acho que o Brasil está bastante interessado em aprender como fazer isso e como usar as suas belezas culturais e naturais durante o evento. E é claro, tem o problema de como assegurar que a infraestrutura construída não será desperdiçada após os jogos.

Aliás, essa questão da utilização posterior dos estádios é uma grande preocupação aqui no Brasil e, especialmente, em Brasília. Como a África do Sul tem aproveitado os seus espaços?


Há problemas nos estádios das pequenas cidades, onde não se realiza vários eventos. Mas, nas cidades maiores, eles têm conseguido trabalhar com outras federações de esportes e o setor privado para tornar esses locais lucrativos e sustentáveis. Esses estádios já têm sido usados também para grandes comícios e até grandes casamentos. Temos investido em parcerias para que eles não se tornem elefantes brancos, como muitos previram.

Um comentário:

Anônimo disse...

A sua própria fome ele já matou. E como!