Apesar de luminosa, a trajetória petista não tem a virtude da linearidade. Em momentos, distante do ambiente das ruas, o partido acomoda-se às regras de um jogo viciado, no qual o poder econômico submete a representação política. Urge, portanto, recolocar na pauta do Congresso o tema da Reforma Política e Eleitoral.
Luiz Marques
I
Na versão engajada da mídia, o Brasil mudou graças ao julgamento do STF e seu herói de ocasião, o ministro Joaquim Barbosa, relator da Ação Penal 470, vulgo “mensalão do PT”. A corrupção foi derrotada, estamparam as manchetes. A “ética” (sic) venceu, provaram as sentenças condenatórias. A engrenagem da desfaçatez midiática montou uma gigantesca operação de lavagem cerebral para atacar, de forma deliberada e seletiva, o maior partido de esquerda da América Latina.
Sobre as distorções causadas pelo financiamento privado de campanha, que está na raiz do “caixa dois”, tese rejeitada pela suprema Corte embora verdadeira como sabem até os paralelepípedos, nenhuma palavra dos magistrados. Nunca se viu tamanha sintonia fina entre um órgão do Judiciário e os veículos comerciais de comunicação, com o propósito de entorpecer e despolitizar a consciência da população. Nessa parceria reside o verdadeiro maior escândalo da história. Os figurantes deveriam envergonhar-se, mas parecem ter gostado do papel de celebridades com incrível talento para a subserviência aos donos da opinião pública. O troco veio nos elogios aos envaidecidos egos togados. Cada setor social cultiva uma modalidade de toma-lá-dá-cá. Para uns, a moeda corrente é o “prestígio”.
O cenário não foi o de um espetáculo mambembe. Era suntuoso. As personagens representavam homens honrados, com semblante carregado, às vezes deixando escapar um risinho de auto-satisfação, também ensaiado. O enredo não trouxe surpresas, era conhecido antes da peça teatral entrar em cartaz. O que não estava no roteiro foi a indiferença com a pantomima demonstrada pela platéia de eleitores nas urnas que, contra a maré, fizeram do PT a legenda que mais cresceu nas eleições de 2012. Decididamente o povo sabe quem, de fato, muda o Brasil.
II
Quem muda o Brasil é um sujeito histórico, o PT, nascido das lutas sociais, com uma análise adequada da realidade e um programa político-ideológico baseado no combate permanente às desigualdades sociais e regionais, na universalização dos direitos de cidadania, na regulamentação da economia e na reestruturação do Estado, sob a perspectiva de um projeto de desenvolvimento sustentável com justiça social e democracia participativa. Um sujeito histórico portador de uma ética pública de valorização das potencialidades dos indivíduos e sensibilidade em face das carências e do sofrimento dos seres humanos. Numa palavra: uma ética da solidariedade ativa com a “sociedade civil de baixo”, sintetizada no Fórum Social Mundial, por oposição à “sociedade civil de cima”, reunida no Fórum Econômico de Davos, para evocar a distinção conceitual de recorte gramsciano do sociólogo belga François Houtart.
A ética do PT é caudatária de uma relação orgânica com os movimentos sociais. Quando os laços que mantém com as classes populares afrouxam e o ímpeto transformador diminui de intensidade, a agremiação perde a sua substância ético-política e fica assemelhada aos partidos da ordem, tecendo em nome da governabilidade uma enorme rede de concessões conservadoras.
Entram na categoria as alianças que provocam mal-estar nos militantes e simpatizantes da sigla, exploradas pelo cinismo dos adversários. Idem, para o silêncio tático sobre a modernização dos costumes, com o intuito de não atiçar as forças obscurantistas. Ou seja, apesar de luminosa, a trajetória petista não tem a virtude da linearidade. Em momentos, distante do ambiente das ruas, o partido acomoda-se às regras de um jogo viciado, no qual o poder econômico submete a representação política. Urge, portanto, recolocar na pauta do Congresso o tema da Reforma Política e Eleitoral.
III
Mas se a ética do petismo e da esquerda em geral, às vezes mergulhada em contradições conjunturais, repousa no esforço de emancipação dos trabalhadores a fim de romper a lógica da mercantilização de tudo e de todos que coloniza os corações e as mentes, - onde repousa a “ética” dos que dão suporte político ao ideário neoliberal? Resposta: a) em uma concepção de nação como entreposto comercial para atender as demandas externas dos centros hegemônicos do capitalismo e; b) em um preconceito atávico contra o povo, à medida que as elites tradicionais do Continente não se vêem como latino-americanas ou brasileiras, mas como européias.
A ideia de construir um grande mercado interno de massas, para absorver a mão de obra disponível no sistema produtivo, nunca esteve na agenda da burguesia no hemisfério Sul, como não esteve a desconcentração da riqueza e das terras, a ampliação dos canais de participação cidadã ou a postura soberana de afirmação nacional no tabuleiro internacional. Entre nós, a revolução capitalista desdobrou-se de maneira excludente, autoritária e dependente, sem resolver a questão agrária, a questão democrática ou a questão nacional, como apontou o fundador da sociologia brasileira, Florestan Fernandes. Pior: há muito desistiu de completar sua obra.
A mídia, aliada à burguesia globalizada, naturaliza um modelo híbrido que combina modernidade com atraso, civilização com barbárie. Aceita a existência de um país que convive com uma brutal dualidade sócio-econômica. Por essa razão, desqualifica e agride os governos progressistas. Não quer transformações no status quo. Se omite as mudanças em curso na AL e no Brasil, é porque as mesmas contrariam a sua visão de sociedade e de Estado: noblesse oblige (a nobreza manda).
IV
O rancor destilado pelas classes dominantes é proporcional aos privilégios sob ameaça, hoje, com a implementação de valores republicanos no exercício da administração pública e no tecido social. A instrumentalização da ética privada para criminalizar o PT explica-se. O PT é o único partido com musculatura política, respaldo nos movimentos sociais e respeitabilidade nas massas capaz ainda de resistir às pressões da domesticação institucional e liderar uma ofensiva contra-hegemônica. Sem programa para rivalizar com o governo Lula/Dilma, a direita optou por ações em que “os fins justificam os meios” para estigmatizar o petismo / lulismo. Não convenceu, exceção feita ao STF. Estigmatizados, na verdade, estão o PSDB, o DEM e o PPS: os três mosqueteiros do neomedievalismo, que aos poucos saem de cena.
Na versão engajada da mídia, o Brasil mudou graças ao julgamento do STF e seu herói de ocasião, o ministro Joaquim Barbosa, relator da Ação Penal 470, vulgo “mensalão do PT”. A corrupção foi derrotada, estamparam as manchetes. A “ética” (sic) venceu, provaram as sentenças condenatórias. A engrenagem da desfaçatez midiática montou uma gigantesca operação de lavagem cerebral para atacar, de forma deliberada e seletiva, o maior partido de esquerda da América Latina.
Sobre as distorções causadas pelo financiamento privado de campanha, que está na raiz do “caixa dois”, tese rejeitada pela suprema Corte embora verdadeira como sabem até os paralelepípedos, nenhuma palavra dos magistrados. Nunca se viu tamanha sintonia fina entre um órgão do Judiciário e os veículos comerciais de comunicação, com o propósito de entorpecer e despolitizar a consciência da população. Nessa parceria reside o verdadeiro maior escândalo da história. Os figurantes deveriam envergonhar-se, mas parecem ter gostado do papel de celebridades com incrível talento para a subserviência aos donos da opinião pública. O troco veio nos elogios aos envaidecidos egos togados. Cada setor social cultiva uma modalidade de toma-lá-dá-cá. Para uns, a moeda corrente é o “prestígio”.
O cenário não foi o de um espetáculo mambembe. Era suntuoso. As personagens representavam homens honrados, com semblante carregado, às vezes deixando escapar um risinho de auto-satisfação, também ensaiado. O enredo não trouxe surpresas, era conhecido antes da peça teatral entrar em cartaz. O que não estava no roteiro foi a indiferença com a pantomima demonstrada pela platéia de eleitores nas urnas que, contra a maré, fizeram do PT a legenda que mais cresceu nas eleições de 2012. Decididamente o povo sabe quem, de fato, muda o Brasil.
II
Quem muda o Brasil é um sujeito histórico, o PT, nascido das lutas sociais, com uma análise adequada da realidade e um programa político-ideológico baseado no combate permanente às desigualdades sociais e regionais, na universalização dos direitos de cidadania, na regulamentação da economia e na reestruturação do Estado, sob a perspectiva de um projeto de desenvolvimento sustentável com justiça social e democracia participativa. Um sujeito histórico portador de uma ética pública de valorização das potencialidades dos indivíduos e sensibilidade em face das carências e do sofrimento dos seres humanos. Numa palavra: uma ética da solidariedade ativa com a “sociedade civil de baixo”, sintetizada no Fórum Social Mundial, por oposição à “sociedade civil de cima”, reunida no Fórum Econômico de Davos, para evocar a distinção conceitual de recorte gramsciano do sociólogo belga François Houtart.
A ética do PT é caudatária de uma relação orgânica com os movimentos sociais. Quando os laços que mantém com as classes populares afrouxam e o ímpeto transformador diminui de intensidade, a agremiação perde a sua substância ético-política e fica assemelhada aos partidos da ordem, tecendo em nome da governabilidade uma enorme rede de concessões conservadoras.
Entram na categoria as alianças que provocam mal-estar nos militantes e simpatizantes da sigla, exploradas pelo cinismo dos adversários. Idem, para o silêncio tático sobre a modernização dos costumes, com o intuito de não atiçar as forças obscurantistas. Ou seja, apesar de luminosa, a trajetória petista não tem a virtude da linearidade. Em momentos, distante do ambiente das ruas, o partido acomoda-se às regras de um jogo viciado, no qual o poder econômico submete a representação política. Urge, portanto, recolocar na pauta do Congresso o tema da Reforma Política e Eleitoral.
III
Mas se a ética do petismo e da esquerda em geral, às vezes mergulhada em contradições conjunturais, repousa no esforço de emancipação dos trabalhadores a fim de romper a lógica da mercantilização de tudo e de todos que coloniza os corações e as mentes, - onde repousa a “ética” dos que dão suporte político ao ideário neoliberal? Resposta: a) em uma concepção de nação como entreposto comercial para atender as demandas externas dos centros hegemônicos do capitalismo e; b) em um preconceito atávico contra o povo, à medida que as elites tradicionais do Continente não se vêem como latino-americanas ou brasileiras, mas como européias.
A ideia de construir um grande mercado interno de massas, para absorver a mão de obra disponível no sistema produtivo, nunca esteve na agenda da burguesia no hemisfério Sul, como não esteve a desconcentração da riqueza e das terras, a ampliação dos canais de participação cidadã ou a postura soberana de afirmação nacional no tabuleiro internacional. Entre nós, a revolução capitalista desdobrou-se de maneira excludente, autoritária e dependente, sem resolver a questão agrária, a questão democrática ou a questão nacional, como apontou o fundador da sociologia brasileira, Florestan Fernandes. Pior: há muito desistiu de completar sua obra.
A mídia, aliada à burguesia globalizada, naturaliza um modelo híbrido que combina modernidade com atraso, civilização com barbárie. Aceita a existência de um país que convive com uma brutal dualidade sócio-econômica. Por essa razão, desqualifica e agride os governos progressistas. Não quer transformações no status quo. Se omite as mudanças em curso na AL e no Brasil, é porque as mesmas contrariam a sua visão de sociedade e de Estado: noblesse oblige (a nobreza manda).
IV
O rancor destilado pelas classes dominantes é proporcional aos privilégios sob ameaça, hoje, com a implementação de valores republicanos no exercício da administração pública e no tecido social. A instrumentalização da ética privada para criminalizar o PT explica-se. O PT é o único partido com musculatura política, respaldo nos movimentos sociais e respeitabilidade nas massas capaz ainda de resistir às pressões da domesticação institucional e liderar uma ofensiva contra-hegemônica. Sem programa para rivalizar com o governo Lula/Dilma, a direita optou por ações em que “os fins justificam os meios” para estigmatizar o petismo / lulismo. Não convenceu, exceção feita ao STF. Estigmatizados, na verdade, estão o PSDB, o DEM e o PPS: os três mosqueteiros do neomedievalismo, que aos poucos saem de cena.
Luiz Marques é professor de Ciência Política da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
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