domingo, 10 de julho de 2011

Quem tem medo de Orson Welles?


Neste sábado frio, tomei o café da manhã bombardeado por manchetes globais sobre a nova denúncia do Procurador-Geral da República, Antônio Gurgel, contra o esquema do mensalão. E também por alguns desdobramentos da queda do ministro dos Transportes, Alfredo Nascimento, cujas supostas estrepolias ainda não tive chance de abordar por aqui. Trata-se de uma excelente oportunidade para filosofar um pouco sobre aquele que possivelmente seja o mal mais antigo da civilização: a corrupção política.

Ao filosofar sobre o tema, porém, não pretendo com isso apelar para uma generalização conivente ou oportuna, apontando a escuridão do passado para acharmos as trevas de hoje menos sombrias. Ao contrário, gostaria de fazer uma abordagem que nos tornasse mais conscientes e mais indignados.

É um desafio.

Podemos começar por uma asserção corroborada tanto pelo senso comum quanto pela ciência política: o poder corrompe.

Não é uma afirmação moralista, embora seja uma avaliação, sim, bastante pessimista. A raíz do vocábulo "corromper" é forte: vem do latim "corrumpere", que significa "destruir, devastar, arruinar, disperdiçar". Mas também possui o significado de "alterar".

Poderíamos ainda fazer uma gracinha pós-moderna e separar a palavra com tracinho: o poder co-rompe.

O poder "rompe" a igualdade básica entre seres humanos. A democracia é uma ideologia linda, um contrato político sofisticado, mas jamais conseguirá superar este trauma de nascimento: brincávamos todos juntos, éramos irmãos, amigos, iguais; de repente, tem alguém mandando, outro obedecendo.

Mesmo numa democracia perfeita, em que há sufrágio universal realizado com lisura, o trauma permanece, pois evidentemente entram em jogo pesados interesses econômicos. Não foi apenas o povo que votou em Dilma Rousseff; sua campanha custou bilhões de reais. Empresários apostaram em deputados, prefeitos, governadores. Cabos eleitorais investiram mais do que sua força de trabalho; correram riscos pessoais, às vezes até risco de vida. Todos querem, mesmo que finjam o contrário, cobrar a conta por tanto esforço.

Muitos psicólogos estudam as transformações ou desvios psicológicos provocados pelo poder nas pessoas. O fenômeno é analisado também por todo artista interessado na psicologia humana, e qualquer pessoa, de maneira empírica e desinteressada, tem sua própria teoria sobre o tema.

De maneira geral, há um consenso negativo sobre as consequências do poder. E isso porque há um fundamento igualitário que nos une a todos. Cidadãos de todas as ideologias, todos os credos, sentem uma invencível irmandade ao se verem no mesmo botequim, longe do poder, reclamando ou defendendo seus líderes. Podem até brigar mortalmente, mas será sempre uma briga entre irmãos, um fratricídio.

Esta irmandade entre os iguais torna-se clara com o tempo. Se antes Céline era condenado por seu antissemitismo e simpatia pelos nazistas, hoje o perdoamos não apenas por ser um grande artista, intérprete das misérias e angústias do espírito humano, mas sobretudo por ser um dos nossos, um homem comum, confuso, pobre, perseguido, frágil. Nunca o perdoaríamos se tivesse sido um político, um chefe militar.

O poder é entendido, todavia, assim como a democracia e a existência do Estado, como um mal necessário.

Mas a origem da corrupção política nasce desta ruptura básica. A partir do momento em que eu tenho poder, sinto-me mais livre do que outros cidadãos, e essa liberdade contamina a minha visão de mundo. Minha liberdade política torna-se desenvoltura moral.

Nesse ponto, unem-se todas as ideologias em sua gritaria contra os perigos do poder.

Por ocasião do escândalo Palocci, houve gente que atacou o ministro com o argumento de que a esquerda não poderia se igualar à direita no quesito "pragmatismo político", querendo dizer que não poderia se deixar levar por uma suposta falta de ética presente organicamente na direita. Besteira. Falso moralismo. Aliás, o certo é criticarmos o "falso moralismo" e não o moralismo em si. O moralismo, o debate moral, é sempre necessário. Mas a corrupção política da direita só é maior porque ela se expôs por mais tempo ao poder. A partir do momento em que a esquerda se expõe ao mesmo sol, ela terá a pele bronzeada pela mesma radiação ultravioleta.

É preciso também que evitemos a injustiça de depreciar a nobre indignação moral do cidadão comum para com a roubalheira constante no alto escalão do poder como uma lamentável vulnerabilidade à manipulação midiática. O que acontece é justamente o contrário. A mídia manipula com astúcia (afinal este é seu principal trunfo) a desconfiança atávica do cidadão comum em relação aos donos do poder. Essa desconfiança, porém, é nobre. Pode-se dizer que ela é o fundamento da democracia, que é o regime político que melhor soube enfrentar os dilemas morais criados pela necessidade de nos organizarmos socialmente e com isso conferirmos poder a uns e não a outros.

Não é por outra razão que a sociedade, historicamente, tem sempre desprezo pelos bajuladores.

O grande barato dos comentaristas romanos, o que os tornou clássicos da literatura mundial, como Tácito e Suetônio, reside na liberdade crítica com que eles trataram os grandes nomes da política de sua época. Na obra de Suetônio, por exemplo, ao mesmo tempo em que Júlio César recebe inúmeros elogios por sua dedicação às agruras sociais do povo (César era do partido popular, a esquerda romana), dentre outras qualidades, é impiedosamente criticado por sua vaidade, cobiça, corrupção e outros defeitos terríveis.

Eles mesmo confessam, porém, que só puderam escrever com tal liberdade em função do seu distanciamento histórico e da relativa liberdade política de que ainda gozavam. Quando o totalitarismo passa a reger a vida romana, acabam-se as artes, a literatura, e a crítica política divertida, livre e saudável que havia germinado por séculos, tanto em Roma quanto na Grécia Antiga.

É por isso também que eu entendo e aprovo o esforço da blogosfera progressista em libertar-se da pecha de "chapa branca". Ela quer ser crítica, livre, nobre.

Daí voltamos ao tema da corrupção política, mais especificamente a do governo federal e seus aliados, seja nos ministérios, seja nos estados.

A sociedade não pode ser tolerante ou leniente: o combate à corrupção deve ser implacável. Se provarem que Lula praticou um ilícito, que o esquartejem na rua; se provarem que Dilma prevaricou, que a degolem em praça pública! Obviamente uso hipérboles: as condenações devem passar pelos ritos institucionais, com todo o direito à defesa. Quer dizer, aí reside o ponto principal. A sociedade precisa aprimorar as suas técnicas de combate à corrupção não apenas para melhor capturar os bandidos, mas também para proteger os inocentes. Quer dizer, ninguém é inocente. Um político no poder, só pelo fato de estar no poder, arrasta consigo uma espécie de maldição. Ao longo de sua vida, acumulou adversários, invejas, equívocos. Seria difícil pensar num político, mesmo o mais santo e generoso, que não tenha praticado um ato de prepotência ou injustiça em sua carreira.

O aprimoramento das instituições, porém, deve visar o endurecimento do combate à corrupção, mas também evitar o agravamento desse preconceito atávico, genético, do homem comum contra o político.

E aí entramos na seara dessa ligação polêmica, às vezes positiva, muitas vezes negativa, entre as instituições que combatem a corrupção (ministerio público, justiça, polícias) e imprensa.

É notório que vários escândalos concretos de corrupção nascem de denúncias feitas pela imprensa comercial. Tal fato não deriva de nenhuma qualidade moral intrínseca a uma empresa de mídia em particular, embora devamos admitir que a existência de uma imprensa de oposição incentiva os inimigos do governo a denunciarem seus podres. É neste sentido que a blogosfera não vê problemas no fato da grande mídia brasileira ser uma imprensa de oposição. Ao contrário, blogueiros como Eduardo Guimarães afirmam que se sentem mais seguros em ter governos do PT justamente por saberem que haverá sempre denúncias; em caso de governos do PSDB, não há confiança de que a imprensa será tão diligente - pelo menos esta nunca usou com muita energia seu arsenal quando FHC fez de tudo para aprovar a reeleição para si mesmo (sem ao menos consultar o povo, como fez Chávez), manipulou o câmbio e vendeu nossas estatais a preço de banana.

O problema é quando esta ânsia de prender o ladrão leva o denunciante a querer fazer justiça com as próprias mãos, com isso cometendo outro tipo de injustiça, às vezes até mais grave, politicamente, do que aquelas que denuncia. Montesquieu, em seu clássico O Espírito das Leis, lembra que o falso testemunho e a calúnia, por seu potencial devastador contra a democracia e contra o delicado espírito de confiança mútua do qual ela precisa para sobreviver, eram considerados crimes hediondos em Atenas e na Roma republicana.

Quando todos os cidadãos são livres para se manifestar politicamente, as vozes mais estridentes que se levantam no meio da ágora não são, necessariamente, aquelas dos mais honestos e bem intencionados. Desde que nasceu a democracia, todo tipo de oportunistas, cínicos e mentirosos viram a oportunidade de usar suas qualidades retórica para se dar bem sem muito esforço. Esses cupinchas da mídia surgiram, na verdade, há milhares de anos; não defendem a democracia por uma questão de princípios, mas porque são seus parasitas.

O que devemos fazer, portanto, na minha opinião, é apostar no fortalecimento das instituições de controle. Incentivar que sejam mais independentes e mais democráticas. Ao mesmo tempo, porém, temos que produzir uma cultura de respeito à defesa dos indivíduos, incluindo aí as autoridades políticas.

Quanto aos desvios éticos, eu acho que devem ser todos postos no papel. Não podemos nos expor a esse absurdo de condenarmos políticos com base na interpretação leiga e sempre preconceituosa do cidadão comum, para o qual todo político é um ladrão - e num sentido filósofico, todo político é um ladrão de nossa liberdade e do nosso sentido de igualdade.

Como fizeram com Palocci.

Pré-condenar um inocente é um crime tão grave ou pior do que roubar dinheiro público. O peculato devasta as contas do Estado, a pré-condenação solapa o Estado de Direito, ameaça a democracia e as liberdades individuais. O poder de condenar, enquanto um ato preponderantemente midiático, interessa somente à mídia. No tribunal midiático, não há nenhum rigor ou controle sobre os direitos sagrados da defesa. A mídia exibe um arremedo qualquer de defesa, em geral extremamente precário, e que, na maioria das vezes, é usado contra a própria vítima. Isso sem contar os inúmeros artifícios semióticos que a mídia tem a seu dispor para demonizar um desafeto: imagens, vídeos, charges, animações, programas de humor, entrevistas com personalidades da cultura, etc.

Tudo isso tem sido colocado, há tempos, nesta pesada conta que chamamos "liberdade de imprensa". É um assunto complexo e delicado, pois nenhum democrata verdadeiro quererá tolher o direito sacrossanto dos jornais de meterem o pau em quem lhes convir. A própria entrada da Justiça nessa seara tem sido tratada como indesejável, desagradando inclusive a blogosfera.

A tendência dos regimes políticos modernos, em todo mundo, todavia, será a regulamentação democrática da mídia. A partir do momento em que os grandes jornais, revistas e canais de TV, recebem enorme quantidade de verbas públicas, oriundas da publicidade oficial, é necessário que estes órgãos se submetam a um código de ética público e democrático. Se quinhentas pessoas escrevem uma carta reclamando de uma matéria, e duas a elogiam, não é correto que o jornal publique somente as duas últimas, ou mesmo apenas uma de cada. É preciso que haja equilíbrio, bom senso e justiça. À imprensa cabe informar, denunciar, criticar e dar espaço aos produtores de cultura. O dono do jornal e o colunista tem o direito de expor livremente suas ideias e visões de mundo. Mas é preciso dar um pouco mais de proteção também ao indivíduo e à sociedade, que muitas vezes se veem totalmente desamparados diante da ferocidade midiática. Isso se consegue através de: 1) uma regulamentação que assegure tanto a liberdade da imprensa quanto o direito de resposta do cidadão; 2) uma política educacional que estimule o cidadão a manter uma postura tão crítica em relação à mídia quanto ela já o é em relação aos governos.

Por fim, a propria sociedade civil, através de seus canais privados (literatura, blogosfera, cinema, teatro) deve construir valores, símbolos e filosofias, que sirvam como armas para que o cidadão saiba enfrentar não apenas os desmandos de seus governantes, mas também as prepotências dos barões da mídia. O cinema americano, seja feita a justiça, tem feito isso desde a década de 30, com os filmes de Frank Capra, culminando com a obra-prima de Orson Welles, Cidadão Kane. O primeiro grande filme moderno tem como assunto principal a emergência desse poder sem controle, anárquico e totalitário ao mesmo tempo, que é o surgimento dos oligopólios midiáticos. Welles foi perseguido por toda a grande imprensa da época, chamado de comunista para baixo, mas a força de sua arte fê-lo triunfar no final. Esperemos que, um dia, nossos cineastas e escritores tenham a mesma coragem de Welles para denunciar problemas ainda mais graves no Brasil, pois o Cidadão Kane, ao contrário de nossos barões de Limeira, jamais apoiou um golpe de Estado e a derrubada de um governo democrático... A história brasileira precisa ser recontada para que possamos entender melhor o presente. As liberdades individuais, embora hoje tenham virado assunto de salão das dondocas do Instituto Millenium, são hoje ameaçadas não pelo Estado, que é regulado pelo sufrágio e pela separação dos poderes, mas por uma mídia oligopolizada e mafiosa, que age ao arrepio das leis para julgar e condenar seus desafetos, interferindo perniciosamente no processo democrático.
Fonte:www.oleododiabo.blogspot.com

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