Por Luiz Moreira*
A Constituição do País decorre do Parlamento brasileiro, especificamente de uma assembléia constituinte que, convocada pela soberania popular, obteve mandato para substituir o regime autoritário por um coerente com as exigências de redemocratização. Promulgada a Constituição, entre as idas e vindas típicas da democracia, houve sua apropriação pelos juristas, resultando em transformação de tal documento de caráter político em estritamente jurídico.
O processo é por todos conhecido: a democracia, a política e o parlamento foram progressivamente mitigados e, em seu lugar, houve a construção de uma teoria que, a pretexto de tutelar os direitos fundamentais, os substituiu pela supremacia judicial, operada pela complementaridade entre controle de constitucionalidade e mutação constitucional.
Esse processo passa basicamente por três momentos.
Primeiro, pela transformação do processo constituinte em um apartado da política, de modo a se produzir um fetiche do poder constituinte segundo o qual a assembléia exerceria poder absoluto e não poder representativo.
Segundo,construída a imunização do poder constituinte em relação à política, as intervenções políticas na ordem constitucional foram tidas como maculadoras de sua pureza, de modo a se construir uma dicotomia entre democracia e constituição.
Terceiro, com o propósito de conservar a pureza e a magia da ordem constitucional, purificando-a da política, justifica-se o caminho que possibilita a interdição da política pelos tribunais e pelo ministério público, com o respectivo impedimento do processo político, com a transformação das eleições em ato jurídico, com a criminalização da política e sua judicialização e, por fim, com a substituição do parlamento como foro legitimado para produzir as normas jurídicas.
Claro está que esse processo de interdição da política precisa ser substituído por um projeto que revigore e restitua à democracia a tarefa de estabelecimento do futuro.
I – O Poder da Assembléia Constituinte e o Poder do Parlamento
O poder que torna possível a Constituição torna possível também os Códigos e as Leis. Assim, o que distingue o poder constituinte do processo legislativo é a autorização expressa (o voto) dos cidadãos, dotando a assembléia constituinte do poder necessário para constituir todas as relações. Sua autoridade criativa repousa antes na faculdade que detêm os sujeitos de direito para criarem uma nova realidade jurídica do que em um ato fundante. Assim, os cidadão são livres e plenos de poderes para fazerem tantos atos fundadores, constituintes, quanto acharem conveniente, isto porque o ato fundador congênere do poder constituinte é tão-somente uma convenção.
Por conseguinte, são os sujeitos de direito, em ato soberano, que conferem existência e autorizam o exercício do poder constituinte. Desse modo, o poder constituinte não é sede de poder algum, detém apenas o exercício de uma faculdade que emana diretamente dos cidadãos. Não há de se falar tampouco em poder originário, porque o poder não se origina no ato fundante, nem na assembléia convocada para constituir o sistema jurídico. Origina-se dos cidadãos, por intermédio de projeto orquestrado pelos sujeitos de direito de constituir um sentido às normas e estruturá-las conforme o sentido atribuído.
A distinção entre poder constituinte e processo legislativo não remonta à origem, mas ao modo de seu exercício. Isto é, não há distinção categorial que oponha um ao outro, mas os dois processos comungam da mesma gênese. Fundando-se no poder dos cidadãos, tanto o processo constituinte quanto o processo legislativo permitem a atualização de um poder que estrutura a liberdade e a perpetua por meio de um ordenamento conceitualmente concatenado. Interpor-se, obstruindo a passagem da estrutura da liberdade (a Constituição), à sua ordenação concatenada (o Código), seria uma das grandes armadilhas da modernidade, ao tornar indisponível à soberania popular exprimir-se por meio de um processo que se atualiza mediante um trâmite diversificado.
Assim sendo, o processo constituinte e o processo legislativo decorrem ambos da soberania popular e, como formas de exercício da representação do poder político, circunscrito apenas aos cidadãos, não se distinguem entre si, tendo por isso mesmo apenas uma diferença quantitativa, mas de modo algum uma diferença qualitativa, pois o mandato de ambos é obtido da mesma fonte, ou seja, dos cidadãos.
A transformação da assembléia constituinte em instância apartada da política resultou em uma engenharia constitucional segundo a qual a representação do poder é deslocada das instâncias que decorrem do voto para as instâncias judiciárias, pois caberia às cúpulas dos tribunais e ao ministério público garantir a efetividade da Constituição, por um lado, e por outro, em substituição à política, atribuir sentido às normas, pois mediante a interpretação constitucional fecha-se o círculo de judicizialização da vida. Este círculo submete a democracia deliberativa ao processo judicial por meio de uma complementaridade entre o controle de constitucionalidade e a mutação constitucional.
Acossado por um sistema jurídico que entende o Parlamento como maculador da pureza herdada da assembléia constituinte, a sociedade vê-se alijada de formas de expressão de vontade e de representação, operada por um ativismo, do judiciário e do ministério público, que passa a ser o titular da formulação, da interpretação e da efetividade das normas, reunindo, sob seu arbítrio, as prerrogativas legislativas, judicativas e executivas.
Este Estado de exceção ganha efetividade através de três passos.
Primeiro, com a judicialização da política, operada pela submissão dos poderes políticos aos tribunais e ao ministério público.
Segundo, com o protagonismo da justiça eleitoral, que transforma as eleições de ato político em jurídico, nas quais os candidatos são substituídos pelos juízes e promotores eleitorais.
Terceiro, com a submissão da Política à técnica, mediante a dicotomia entre Estado e Governo, formulada pela blindagem das carreiras de Estado ante o resultado das urnas.
É preciso dotar o Brasil de uma nova separação dos poderes. Por isso, é oportuno discutir entre nós o modelo constitucional britânico, próprio às democracias, e adotar a Revisão Parlamentar do Controle de Constitucionalidade.
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*Luiz Moreira é Doutor em Direito pela UFMG, autor do livro “A Constituição como simulacro” e Diretor Acadêmico da Faculdade de Direito de Contagem.
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