Do ponto de vista político-eleitoral nada tenho a opor à adesão do PSB pernambucano ao PSDB nacional. A relação entre o PSB de Pernambuco e o PT local e nacional já estava tão esgarçada que o apoio era algo quase natural. Mas do ponto de vista histórico é preciso que se diga com todas as letras: esta adesão - e sobretudo com a sofreguidão com que foi feita - é uma afronta à memória de Miguel Arraes.
Eu era repórter na Folha de S. Paulo (1996-1998) e acompanhei esta história de perto: Arraes comeu o pão que o diabo amassou no governo FHC. Foi claramente discriminado pelo governo federal e atacado pessoalmente pelo próprio FHC, que chegou a classificar o governo Arraes (em julho de 1998, ano eleitoral) de "bagunça' e "bandalheira", além de insinuar que o próprio governador estava sob suspeita em função dos precatórios (indiretamente, a acusação recaía também sobre Eduardo Campos). É uma história bem conhecida, está nos jornais, está em livro, mas pelo jeito foi esquecida pelo PSB pernambucano.
A acusação de "bagunça" era por considerar que Arraes não evitava os saques que estavam acontecendo por causa da seca. Arraes respondeu que "não ia jogar a polícia em cima do povo faminto".
Em relação aos outros ataques, Arraes respondeu indignado, afirmando que o presidente agia como "um boneco de ventríloquo do PFL", e que ao agir assim deixava de ser presidente da República para transformar-se em porta-voz do PFL, comprando para si uma briga do PFL pernambucano. E disse mais:
"Ele [FHC] nem sabe o que aconteceu aqui, nem sabe o que é isso, pois são acusações sem fundamento. Eu sou um homem cuja vida foi revirada desde que eu me entendo dentro da política de Pernambuco. Eu não tenho empresa, não tenho rádio, não sou sustentado por ninguém. Porque, para fazer a política que eu faço, ou você fica assim ou então fica mais vulnerável. A elite que eu sempre combati aqui tem esse propósito. Minhas contas foram aprovadas por todo lado".
Arraes acabou o seu governo praticamente paralisado, e ele sitiado: com salários do funcionalismo atrasado, 13º atrasado, dívidas não-pagas com fornecedores e empreiteiras... A situação o levou a ser candidato sem chances de ganhar (ele mesmo disse que precisava ir pras ruas para defender-se) e a ser humilhado nas urnas por Jarbas Vasconcelos.
O cerco ao governo Arraes foi executado por seus adversários locais do PFL e PMDB (ambos hoje apoiando o PSB no Estado) e pelo governo FHC. Os nomes estão todos aí. Procurem Dilton da Conti, procurem João Recena, que eram secretários de Arraes e eles contarão tudo (se o próprio Eduardo estivesse vivo, eu diria: "Procurem Eduardo primeiro", porque ele foi também vítima desse processo).
Minha impressão é que o cerco não visava apenas derrotar Arraes nas eleições; visava destruí-lo politicamente, e por extensão destruir também Eduardo Campos, seu principal auxiliar e apontado como responsável pela operação dos Precatórios. Tanto é assim que o boicote não cessou nem depois da vitória de Jarbas. Uma repórter do Diario de Pernambuco foi ao Rio de Janeiro fazer matéria sobre liberações do BNDES e o vice-presidente da instituição, Pio Borges, lhe disse que "tinha recebido ordens superiores para não atender às reivindicações de Arraes". A história está contada no livro "Arraes", Editora Iluminuras (2006) , de Tereza Rozowykiat, e nunca foi desmentida.
Era o período da privatização da Celpe, Arraes passou um tempão solicitando ao BNDES um adiantamento de $ 700 mi (de um total de R$ 2 bi). Esse tipo de adiantamento já havia sido feito com 16 outros estados que tinham privatizado suas companhias de energia elétrica, mas o de Pernambuco nunca saiu.
No final do governo, ele fez nova proposta ao governo federal: utilizar o dinheiro da venda do Bandepe para ajustar as despesas do Estado, em compensação ofertando ações da Celpe. Não foi atendido. Ele então reteve o dinheiro do Bandepe para pagar os salários atrasados. A Advocacia-Geral da União bloqueou todas as contas do estado. "A medida deixou o governo do Estado em situação desesperadora", conta a biógrafa de Arraes, no livro citado. (Posteriormente o juiz federal Roberto Wanderley deu ganho de causa a Arraes).
São diversas as histórias de discriminação contra o governo Arraes, em várias áreas (seca, segurança etc.); um dia alguém contará tudo isso em minúcias, porque é um caso talvez único no pós-redemocratização.
Tem ainda a questão da refinaria: Pernambuco possuía todas as condições técnicas para ter uma refinaria em Suape. Fez campanha pelo país. Montou estudos mostrando por que o estado estava tecnicamente apto a ter a refinaria. Os argumentos técnicos não foram contestados por ninguém, mas a refinaria nunca saiu (só veio para Pernambuco em 2005).
Arraes disse publicamente, na época:
"As dificuldades não são poucas, sobretudo quando os adversários não medem esforços para prejudicar Pernambuco, trabalhando para que não venham para cá recursos já assegurados. Eles fazem manobras para não deixar que as obras sejam aceleradas, pensando que com isso atingem o governador, quando atingem mesmo é o povo. Não vou desistir de lutar por essas verbas. Estamos acostumados a lutar na adversidade. Lutei sem nada na mão para ser prefeito do Recife e 3 vezes governador de oposição. Não será pela falta de alguns reais que baixaremos a cabeça, que baixaremos nossas bandeiras. Quanto mais difícil for a situação , mais alta a bandeira de Pernambuco estará".
Já disse em outras ocasiões, em artigos para o jornal e aqui no Face, que FHC foi um bom presidente para o Brasil, e muitas coisas que usufruímos de bom hoje tiveram o caminho preparado por ele - mas um fato não se pode negar: ele nunca entendeu o Nordeste durante os seus governos, porque neste período só olhou para a região sob a perspectiva do PFL.
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P.S.: Arraes não era contrário a alianças; ao contrário, as defendia desde os anos 50. Mas nessas alianças ele tinha um ideário, em que destacava primeiramente (palavras dele) "a defesa dos excluídos". Tem um documento do PSB, de 1998, de autoria do próprio Arraes, em que ele reitera o ideário do partido: "Defender a soberania nacional, o processo político democrático, os direitos sociais, as conquistas dos trabalhadores, a retomada do desenvolvimento e a reforma agrária, colocando-se sempre ao lado dos excluídos." (in "Arraes", de Tereza Rozowykwiat, página 290).
P.S (2).: Arraes tinha uma característica rara no político brasileiro: não era cooptável. Podemos discordar de tudo que ele fez e disse, mas há uma constante em sua trajetória: nunca foi cooptável, nunca foi cooptado. Por isso era não só combatido, mas odiado por muitos dos seus adversários. Odiado, sim - não é uma opinião minha, é história.
P.S (3): No famoso caso dos Precatórios, os adversários sabiam que não podiam questionar sua honestidade diretamente - aí atacavam Eduardo Campos. E diziam que Arraes "havia fechado os olhos para as ações do neto". Tudo isso é história. Muitos podem dar esse testemunho; evito dar nomes de quem poderia dar esses testemunhos para não criar constrangimentos em virtude da campanha eleitoral.
P.S. (4): Arraes governou Pernambuco três vezes como governador de oposição. Por que sempre na oposição? Porque homem fiel aos seus princípios, não era era político de aderir por conveniência. Entre 1963-1964, o presidente era João Goulart, de um governo do mesmo campo do governador, mas Arraes não era situacionista e discordou do governo federal em várias ocasiões, inclusive no questionamento da interferência dos americanos no Brasil e no Nordeste (foi Arraes quem tomou as medidas mais contundentes contra a interferência); na redemocratização, divergiu de Sarney presidente e foi oposicionista; igualmente no governo FHC. Pagou caro por suas posições. Com menos de um ano de governo FHC, por exemplo, ele próprio fora 13 vezes a Brasília, passara lá 35 dias, tinha batido de porta em porta dos ministérios, se encontrado seis vezes com o presidente - e voltara todas as vezes de mãos abanando. "O objetivo era um só: conseguir verbas para o Estado", diz Tereza Rozowykwiat, no livro já mencionado. "Comparando, no entanto, o esforço desenvolvido com os resultados alcançados, Arraes confirmava a tese de que Pernambuco era, de fato, um Estado discriminado".
P.S. (5), acrescentado em 11 de outubro: Acabo de ver oportuno e revelador depoimento do economista e pesquisador do Aristides Monteiro Neto, na página dele aqui no Face, sobre o assunto. Aristides foi o responsável pela montagem do programa de governo e depois secretário de Ciência e Tecnologia do governo dele. Trecho do depoimento, que está na página dele: "Lembro que em 2006, participando da montagem do programa de governo de Eduardo Campos ao governo do estado, ele me disse que por conta da luta feroz de seus adversários (na época no PFL e PSDB) acerca dos precatórios - durante sua gestão como secretário de Fazenda do governo Arraes - ele precisou passar um tempo, quase dois anos, morando em Brasília pois em Recife nos lugares que ele chegava todos se afastavam. Ele disse: passei a ser tratado como um leproso por muitos em Recife. Foi como ministro da Ciência e tecnologia no governo Lula que ele se cacifou e ganhou as necessárias rspeitabilidade e evidencia para pleitear o governo de PE, que afinal ganhou!"
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