24/12/2008
Luiz Gonzaga Belluzzo
As aventuras de Bernie Madoff foram perpetradas sob os auspícios de métodos manjados e autoridades coniventes. Os métodos foram aqueles do financiamento Ponzi: aumentar o passivo para sustentar a posse de ativos que produzem um fluxo de rendimentos insuficiente para cobrir os compromissos à frente.
H. Minsky usou a qualificação “Ponzi” para designar uma estrutura de financiamento situada no degrau mais elevado da escala de fragilidade financeira, acima daquela denominada por ele de “estrutura especulativa”. Esta última requer o refinanciamento dos encargos financeiros decorrentes da dívida passada para que o devedor possa honrá-los. Um agente “Ponzi” deve aumentar a dívida para cumprir suas obrigações financeiras. Na linguagem popular, vender o almoço para pagar o jantar.
A Securities and Exchange Commission (SEC) foi alertada desde 1999. Fez vista grossa para os indícios de fraude denunciados por concorrentes de Madoff e aparentemente descartados com a colaboração de um funcionário da agência. O episódio Madoff não é fruto de malfeitorias isoladas, mas o resultado lógico do contubérnio entre governos lenientes e negócios espertos.
Já no século XIX, a economia americana apoiou sua trajetória de expansão na finança doméstica “desregulada”, no protecionismo comercial e nos privilégios concedidos por seu Estado Nacional aos promotores de negócios. O peculiar caráter “liberal” do Estado americano, desde a sua constituição está relacionado com o papel decisivo que desempenhou na promoção da concorrência desregrada.
Esse arranjo político-econômico deu origem a um Estado plutocrático empenhado em dar proteção e alento aos grupos econômicos mais poderosos. Estes se desenvolveram à sombra dos governos. Sob esse patrocínio valioso, deitaram e rolaram nas “falhas de regulação” para impor suas razões e interesses, não raro pela violência e pela fraude.
Charles Morris escreve em Money, Greed, and Risk que, até o final do século XIX, os EUA não dispunham de uma legislação comercial adequada. Os ingleses do Barings queixavam-se freqüentemente dos riscos que corriam, caso seus correspondentes americanos entrassem em default. “Não era claro”, diz Morris, “se poderiam exercer seus direitos contra os inadimplentes.” O escritor Kevin Phillips, em Wealth and Democracy, sugere que, desde a Guerra Civil, esta precariedade institucional sustentou o avanço das sucessivas gerações de “barões ladrões” que transformaram a economia e comandaram a política americana.
A depressão dos anos 30 do século XX mobilizou as reservas democráticas do povo americano. Nos momentos de crise econômica e social, os assim chamados movimentos “populistas” cuidavam de produzir os anticorpos para impedir a falência generalizada dos órgãos devastados pela ganância virulenta do establishment financeiro e corporativo. O sobrinho de Theodore Roosevelt, Franklin Delano – aquele que assumiu o governo do país quando a depressão de 1929 andava brava –, tratou de salvar as grandes corporações e os bancos de seus próprios desvarios e preconceitos.
Os bancos relutaram em aceitar a forte intervenção do Estado no sistema financeiro. As medidas brecaram a corrida bancária e deram efetividade à execução de uma política de provimento de liquidez e de “direcionamento” do crédito, em benefício da recuperação econômica. O grand monde financeiro americano jamais se conformou com a regulamentação imposta aos bancos e demais instituições não-bancárias pelo Glass-Steagall Act, no início dos anos 30.
Franklin Roosevelt acreditava nos mercados administrados e no controle do capitalismo. O New Deal era visto, naturalmente, com horror por J.P. “Jack” Morgan, o júnior. Em 1935, a multidão de desempregados e empobrecidos vivia dos programas de obras públicas e de assistência social do Estado. Ao desembarcar de uma viagem à Europa, ainda a bordo do Queen Mary, o desastrado herdeiro de John Pierpont, proclamou: “Todos os que ganham dinheiro nos Estados Unidos trabalham oito meses por ano para sustentar o governo”. A indignação popular quase incendiou o país.
O historiador Ron Chernow escreve em seu livro The House of Morgan que John Pierpont deixou de ser uma pessoa para tornar-se o símbolo político dos ricos e reacionários que se opunham à justiça social. Advogado formado em Harvard, o conselheiro legal de Roosevelt (mais tarde juiz da Suprema Corte), Felix Frankfurter escreveu ao presidente: “Quando os homens mais proeminentes do mundo da finança escancaram atitudes moralmente obtusas e anti-sociais, chega-se à conclusão de que o verdadeiro inimigo do capital não é o comunismo, mas os capitalistas e sua corte de escribas e advogados”.
A Era Progressiva e o New Deal foram momentos de rebelião democrática e ascensão econômica das massas. Não há como negar que os newdealers estenderam sua influência até os anos 50 e 60, o período da “era dourada” do capitalismo. Desde Ronald Reagan, a alta finança voltou a ocupar uma posição de predomínio na hierarquia dos interesses que se digladiam no interior do Estado americano. É deste ponto de vista que devem ser analisadas as mudanças ocorridas no pensamento econômico e nas recomendações de política.
Os críticos não se cansam de deplorar a frouxa supervisão das autoridades americanas incumbidas de fiscalizar os mercados financeiros. A desídia dos reguladores vem abrindo as portas para operações malogradas de todo o gênero. Já escrevi em outra edição de CartaCapital que, nos tempos das malfeitorias da Enron & Cia., a revista The Economist, indignada com a sucessão de equívocos, perguntou: “Não há mercados financeiros honestos nos Estados Unidos?” Na seção Buttonwood, respondeu: “Todos estão ganhando dinheiro, menos os clientes”. “Os bancos de investimento”, continua, “tratavam de se desvencilhar das ações que seus analistas ‘esquentavam’ publicamente.”
A lei Sarbanes-Oxley foi considerada excessivamente rigorosa por Henry Paulson, o solerte secretário do Tesouro dos Estados Unidos. Mas ela não teve forças para conter a explosão do crédito que levou à exasperação as práticas “criativas” e freqüentemente fraudulentas dos mercados. Os criativos inventaram “novidades”, manipularam preços de ativos e engambelaram clientes e devedores “sem lenço nem documento”. Madoff foi tão abusado e fraudulento em sua estratégia “Ponzi” quanto os demais protagonistas da farra financeira recente. Falo dos analistas que recomendaram aos clientes ações de suas próprias carteiras ou vendedores de hipotecas que, com o truque das taxas de juro reajustáveis, “pegaram a laço” devedores sem condições de servir as dívidas contraídas.
A conversa mole de transparência e austeridade encobriu o movimento real das coisas: sob o véu da racionalidade econômica esgueirava-se a mão que iria promover a desvalorização da riqueza e colocar em risco a saúde do sistema financeiro americano. No auge da crise de confiança que assola os mercados de crédito e de capitais, Madoff ajuda a semear mais suspeitas por toda a parte – diz com razão Nicholas von Hoffman, articulista da revista The Nation. O Wall Street Journal, diário econômico de Rupert Murdoch, não fugiu de uma indagação incômoda: “O gestor de seu fundo de investimento pode ser um outro Madoff?” Pergunta cruel. Antes da queda, Madoff exibia credenciais e reputação acima da média do mercado: foi chairman da Nasdaq e estava no negócio desde 1960.
Mesmo diante das provas contundentes a respeito da promiscuidade entre desregulamentação e práticas fraudulentas, os gênios da “nova economia” estão na mídia dispostos a utilizar quaisquer argumentos para desqualificar as críticas aos métodos e procedimentos utilizados no ciclo financeiro recente. A título de recompensa por tais proezas, os graúdos da finança e seus lacaios intelectuais receberam e continuam recebendo o socorro tempestivo (boa palavra) do Federal Reserve e do Tesouro. Sob os aplausos frenéticos de seus lacaios intelectuais.
Os últimos acontecimentos protagonizados pelos mercados mostram que é preciso conter a mula-sem-cabeça da finança desregulada. Sob pena de as economias nacionais e seus cidadãos serem atormentados periodicamente pelas tropelias da mão invisível.
Os que estudam o fenômeno da generalização das práticas ilícitas e ilegais não têm qualquer dúvida em apontar como causa mais importante a infiltração da “ética dos negócios” nos negócios da política. O Congresso dos Estados Unidos colaborou decisivamente para desmontar os controles e enfraquecer a capacidade de supervisão e de controle das agências reguladoras. Entre os mais ativos advogados da desregulamentação estava o senador democrata Charles Schumer, premiado recentemente pelo New York com inventário de suas proezas. Nesse clima, as agências reguladoras não poderiam realizar o milagre da ressurreição da livre-concorrência livre, limpa e desimpedida.
Os governos buscaram refúgio na retórica da transparência, da livre concorrência e da igualdade de oportunidades. Enquanto isso, os mercados se esbaldavam na criatividade destrutiva.
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