Há duas semanas, escrevi aqui sobre a democracia relativa, traduzida em posicionamentos dúbios e incoerentes, que defendem ou atacam protagonistas de situações semelhantes – envolvendo os mesmos valores –, em função de conveniências ideológicas de momento.
No Brasil, vivenciamos isso cotidianamente, sufocados por uma mídia – a grande mídia – que, de forma monocórdia, manipula os fatos com versões de conveniência. Um exemplo marcante desse posicionamento ideológico – vinculado à política partidária – nos está sendo oferecido agora, a propósito do julgamento do assim chamado “mensalão”. Já tive oportunidade de externar aqui meu pensamento a respeito. Para mim, quem, comprovadamente, tenha incorrido em qualquer delito deve ser punido exemplarmente. Nenhuma dúvida a esse respeito.
Contudo, não podemos deixar de perceber a tal tática de manipulação, fundamentada no que poderíamos chamar de “dois pesos e duas medidas”. As vestais da dignidade e honradez, os paladinos da justiça e da ética, omitem-se totalmente quando se trata de maracutaias provenientes dos opositores do Governo, como o outro “mensalão” , o do tucanato mineiro, e o não explicado caso da “Privataria Tucana”, um livro inteiro de denúncias sem respostas convincentes, que, ou está a exigir um posicionamento dos órgãos judiciais republicanos, ou deveria levar a um processo o jornalista que o escreveu, por calúnia, infâmia, difamação. Nunca o silêncio total sobre o assunto. Aliás, o mesmo ministro do STF relator do mensalão em julgamento, Joaquim Barbosa, em entrevista dada a diversos jornalistas e cujos termos estão acessíveis na internet, questionou-os claramente – e sem resposta - sobre o fato de apenas se preocuparem com esse mensalão, deixando de lado as também supostas incorreções tucanas.
Chego agora ao assunto que me motiva neste texto: o STF, o processo de sua composição, o seu poder. Não é um tema novo , eu mesmo já me referi a ele anteriormente. Portanto, não vinculo meu posicionamento ao atual julgamento, qualquer que seja o seu resultado final .
Julgo impossível deixar de ver, no formato de indicação dos Ministros do STF, uma implicação política, por maior que seja o cuidado na escolha. O poder Executivo indica e o Legislativo avaliza as indicações , e aí , por si só, já se configura o aspecto político. Uma vez empossados, os ministros indicados têm garantida a vitaliciedade e só se retiram se decidirem aposentar- se ou, compulsoriamente, aos 70 anos. Se são pessoas de inegável saber jurídico, são, também, seres políticos, com ideologia e valores específicos, predileções e repúdios. Até hoje se vincula o ministro Marco Aurélio de Mello ao seu primo Collor, que o nomeou. Até hoje se mencionam os vínculos antigos do ministro Gilmar Mendes com políticos tucanos,especialmente a FHC, a cujo governo serviu e que o nomeou. E, agora mesmo, se diz do ministro Dias Toffoli, que foi advogado do PT e nomeado por Lula, que ele seria naturalmente simpático à causa petista.
Cá para nós, toda a preocupação com o fato de o ministro Peluzzo votar ou não no processo do mensalão teve a ver com uma certa posição que se supunha já definida. Numa aberração jurídica, chegou-se a admitir, em determinado momento, que ele votasse antes do Relator e, portanto, sem levar em consideração os estudos e definições do próprio Relator e do Revisor do processo. Felizmente, prevaleceu o bom senso.
Não se trata, então - e isso é o óbvio - , de pessoas sem um passado ou sem vinculações ou convicções políticas. E, ainda que não se discuta aqui sua lisura, ou sua competência, a verdade é que, parafraseando Mário de Andrade, “ninguém pode libertar-se das teorias-avós que bebeu“. E, é claro, em dúvida vão prevalecer os tais vínculos. É humano.
Se há essas implicações , creio que deveria haver uma correspondência direta entre a composição do STF e a vontade popular. Afinal, não há política sem povo, e o regime democrático coloca o interesse popular em primeiro plano. Não é uma ideia original a eleição de Ministros da Suprema Corte dos países. Um exame comparativo , sem maior detalhamento, revela que isso já existe na França, na Espanha, em Portugal, na Alemanha e, parcialmente, no Japão. Seria possível aqui, portanto, que a população elegesse seus ministros, como faz com os principais membros do poder Executivo e com todo o poder Legislativo. Pode-se até admitir um período mais elástico dos seus mandatos , mas sem possibilidade de reeleição.
Nada, a meu ver, justifica a vitaliciedade. As atribuições do STF, guardião da Constituição Federal, são muito relevantes para que se assegure tal poder discricionário e atemporal a onze homens, que, é claro, não são infalíveis. Isso, aliás, colhe-se da ambiência do próprio STF, quando se percebe que um mesmo fato merece, às vezes , considerações e julgamentos diametralmente opostos. Ou quando se ouve de um ministro – como aconteceu recentemente – a declaração de que um outro, quando presidente do STF, manipulou resultados de julgamentos... Essas e outras razões indicam que o STF precisa ser oxigenado com maior frequência.
Penso que a cidadania deveria encampar essa bandeira. Claro, seria necessário detalhar as mínimas (ou máximas, porque indispensáveis) condições exigidas dos candidatos à suprema magistratura. Seria preciso discutir o número de eleitos e os períodos de mandatos, entre muitos outros aspectos. Mas eu creio, sinceramente, que a democracia sairia ganhando com essas mudanças.
Rodolpho Motta LimaAdvogado formado pela UFRJ-RJ (antiga Universidade de Brasil) e professor de Língua Portuguesa do Rio de Janeiro, formado pela UERJ , com atividade em diversas instituições do Rio de Janeiro. Com militância política nos anos da ditadura, particularmente no movimento estudantil. Funcionário aposentado do Banco do Brasil.Direto da Redação
Nenhum comentário:
Postar um comentário