Vamos analisar algumas variáveis que serão determinantes do novo tempo político.
A luta pela civilidade política ainda tem um longuíssimo caminho pela frente.
1. A radicalização exacerbada não desaparece com Serra.
A ultradireita que emergiu no país nos últimos anos não se organizou em torno de Serra. Ele foi apenas o oportunista que pretendeu cavalgar a onda – como tantas outras que cavalgou, antes, como a do desenvolvimentismo, da social-democracia, sem nunca empunhar de fato a bandeira. Hoje está claro, mesmo para quem conviveu a vida toda com ele, que jamais passou de um arrivista.
Como explico na abertura da série “O caso de Veja”, o ódio como arma política começou como um sentimento algo difuso, que ganhou eco na agressividade de alguns comentaristas de televisão – imitando o estilo da Fox norte-americana. O episódio do “mensalão” serviu como agente deflagrador da intolerância, assim como a perspectiva da velha mídia de derrubar mais um presidente e retornar aos tempos de glória do pós-impeachment.
Apesar do gatilho ter sido o “mensalão”, é algo muito mais orgânico, cuja raiz (em termos globais) está na ascensão das novas massas, no fim do sonho neoliberal, no protagonismo da mídia na era Murdoch.
Serra percebeu a mudança de ventos e se adaptou ao novo figurino. O terreno era-lhe familiar porque a intolerância e os métodos obscuros já eram parte integrante de sua personalidade. Termina a carreira execrado pela esquerda, sob desconfiança da direita, deplorado por amigos que um dia acreditaram nele e… desprezado pela velha mídia por inservível.
2. A ultradireita ficou sem um candidato.
E o que virá agora, para canalizar o ódio político?
Há paradoxos curiosos nessa história.
Nas últimas duas décadas, a legitimação do PSDB se dava em cima do suposto intelectualismo de FHC e Serra, e suas tropas de intelectuais, em contraposição ao PT, tratado como intelectualmente tosco pela mídia. De fato, os intelectuais do partido sempre tiveram enorme dificuldade em compatibilizar ideias progressistas mais contemporâneas com o cipoal de tendências que sempre marcou a história do PT.
Com Lula, o PT ocupou a centro-esquerda, enquanto o radicalismo inconsequente de Serra tirou do PSDB paulista toda uma geração de novos intelectuais que poderia revitalizá-lo. Sua prepotência e falta de discernimento fez o PSDB perder o grupo de Bresser-Pereira, os economistas da Unicamp, os irmãos Mendonça de Barros, os social-democratas da USP – as gerações mais velhas se mantêm fiéis a FHC, mas passam a quilômetros de distância de Serra e intelectualmente já deram o que tinham que dar.
Nessas eleições, o candidato do PT à Prefeitura é um legítimo representante da elite intelectual paulista – formado em três centros de irradiação de influência, as Faculdades de Direito, Filosofia e Economia. Serra é um repetidor de bordões de intolerância. E a liderança que restou ao PSDB paulista, Geraldo Alckmin, é intelectualmente tão tosco que chegou a chocar o conservadorismo mais elaborado do Estadão, no episódio em que defendeu a PM pela chacina da semana passada (“só morreu quem resistiu”). No plano federal, Aécio Neves é uma promessa que não se realizou nem deverá se realizar.
Não havendo nenhum fato político anormal, a oposição tenderá a se aglutinar em torno de Eduardo Campos, um social-democrata com vinculação histórica com o centro-esquerda e sem necessidade de encarar o figura ultrarradical para se firmar.
Mas os ventos do ódio estão longe de se dissipar. E a aposentadoria de Serra cria um vácuo que deixa uma interrogação: para onde vai ser canalizada esse ódio político visceral?
3. Um personagem velho, a mídia, e um novo protagonista, o STF.
Daqui para diante, a luta política não se dará no campo partidário, mas em duas frentes: na mídia e no Judiciário, especialmente após o novo papel do STF (Supremo Tribunal Federal) e da cúpula do Ministério Público Federal.
No pano de fundo, a reação contra os descaminhos do modelo político, mas também um sentimento difuso contra o PT e Lula. Dificilmente o procurador Geral Roberto Gurgel investiria com o mesmo ímpeto contra malfeitos do PSDB. No entanto, dentro do MPF há um sentimento corporativista solidificado, identificado com o pensamento de Gurgel.
Na outra ponta, por razões variadas, tem-se o STF assumindo um protagonismo perigoso.
Judiciário e MPF são compostos por um público que pertence ao extrato mais conservador da sociedade – no sentido de se informarem apenas através das mídias convencionais, seguirem rituais formalísticos, se diferenciarem do chamado cidadão comum por um conjunto de convenções, vestimentas, linguajar.
Todos os sinais que emanam do STF indicam que essa resistência aos novos tempos (e aos velhos vícios da política) resultou um novo protagonismo que, em breve, irá provocar conflitos com o Legislativo e, talvez o Executivo.
Podem-se buscar explicações individuais para a atitude de cada ministro.
Gilmar Mendes sempre foi um ministro político. Marco Aurélio de Mello trombou com o PT quando presidiu o TSE (Tribunal Superior Eleitoral) e guardou mágoas. Ayres Britto submeteu-se totalmente à mídia após ter sido alvo de uma denúncia inepta envolvendo seu genro. Embora ninguém jamais colocasse em dúvida sua idoneidade pessoal, desde então ele se curvou a todas as pressões da velha mídia.
Joaquim Barbosa é um caso à parte, talvez o maior erro político de Lula. Embora ninguém coloque em dúvida sua capacidade, existem dezenas de procuradores federais tão bem preparados quanto ele. Foi escolhido por seu simbolismo, por sua cor. No período que antecedeu a escolha, chegou a irritar Lula com seu servilismo. Empossado ministro, tornou-se um deus ex-machina.
Dias Toffoli foi um segundo engano de Lula, provavelmente para corrigir o primeiro. Sem bagagem jurídica, foi escolhido para ser o Gilmar de Lula. Mas a diferença de estatura é enorme.
Mas como explicar a nova leva de ministros, indicados por Dilma, todos igualmente tomados pelo ira santa? É evidente que essa situação reflete um estado de espírito majoritário na cúpula do Judiciário e não apenas uma conjunção pontual de personalidades.
Restou a posição heroica e solitária de Ricardo Lewandowski tentando fazer valer princípios de direitos individuais e preocupando-se em não se deixar levar pelo fogo da politização.
Não se sabe como será daqui para frente. Mas inegavelmente a oposição saiu do campo político para o campo midiático-jurídico.
Do lado da mídia, a estratégia visa interditar Lula definitivamente da política. Após o mensalão, tentarão levantar o caso dos empréstimos consignados do BMG para acusar Lula do chamado ato de ofício.
É uma cartada agressiva e que poderá gerar confrontos imprevisíveis.
4. A estratégia do governo Dilma.
Para tornar mais complexo o cenário, tem-se esse extraordinário paradoxo: Dilma é umbilicalmente ligada a Lula, tem demonstrado lealdade em todas as circunstâncias mas, para efeito midiático, foi transformada em uma espécie de anti-Lula. Na substituição de Cesar Peluso, não cedeu ao erro de indicar o advogado geral da União, fazendo uma escolha técnica.
Aparentemente considera que o republicanismo e o anticorporativismo serão suficientes para blindá-la de tentativas futuras de desestabilização.
A boa imagem junto à classe média midiática se deve à sua racionalidade na gestão pública mas, também, a um pacto tácito com a velha mídia de não fortalecer nenhum canal alternativo, mantendo intacto para ela o botim das verbas públicas. Com a indústria, um pacto desenvolvimentista de redução de juros e proteção tarifária. Com os grandes grupos nacionais, parcerias nos projetos de desenvolvimento. Com o funcionalismo público, atitudes que geram resistência neles, mas apoio da classe média midiática.
Mas ainda mantem uma fé quase ingênua na capacidade da velha mídia se desarmar e retomar seu papel de crítico racional dos atos de governo.
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