Um
fantasma ronda o Brasil: o fantasma da democracia participativa. Após a edição
do Decreto n. 8.243, em 23 de maio deste ano, que instituiu uma “Política
Nacional de Participação Social”e um “Sistema Nacional de Participação Social”,
estranhamente, uma chuva de críticas foi dirigida ao Governo Federal. Acusam
Dilma de enveredar pelo bolivarianismo.
O
Decreto visa "articular os mecanismos e as instâncias democráticas de
diálogo e a atuação conjunta entre a administração pública federal e a
sociedade civil”(art. 1o).
Pelo
que vi, o Decreto apenas organiza um conjunto de meios de participação que, na
prática, já existem e, com isso, permite que áreas nas quais existe pouca
participação aprendam com a experiência de áreas, como a saúde, nas quais há já
uma longa experiência de participação.
Prevê
o Decreto, como órgãos do Sistema: "I - conselho de políticas públicas; II
- comissão de políticas públicas; III - conferência nacional; IV - ouvidoria
pública federal; V - mesa de diálogo; VI - fórum interconselhos; VII -
audiência pública; VIII - consulta pública; e IX - ambiente virtual de
participação social.” Os três primeiros são dirigidos à discussão/formulação da
própria política de participação. A ouvidoria já existia, na estrutura da
Controladoria Geral da União. No Governo Federal existem mais de cem
ouvidorias. Mesas de diálogo já são práticas comuns em vários órgãos e
políticas públicas. Audiências públicas e consultas públicas estão previstas em
diversas leis e, mesmo quando não expressamente previstas, já funcionam como
instrumentos para aperfeiçoamento de políticas em construção. Fóruns
interconselhos são recomendáveis. Como qualquer um sabe, há um número enorme de
conselhos funcionando na Administração - na União e nos Estados e Municípios.
Como diferentes políticas públicas podem ter implicações recíprocas (por
exemplo, um programa de saúde nas escolas), é bom que existam canais
institucionalizados para o diálogo entre os conselhos que participam de suas
formulações. Ambientes virtuais de participação nada mais é que o
aproveitamento do potencial enorme que a internet tem, para permitir mais vozes
na formulação de políticas.
A
celeuma criada por alguns revela que há um medo difuso de instrumentos de
democracia direta em certos partidos políticos e setores da mídia.
Ao
contrário dos críticos do Decreto, acho que a organização, em um instrumento
normativo, das diversas formas de participação aperfeiçoa a democracia.
Precisamos de mais democracia, de uma Administração mais infiltrada pela
participação popular.
A
Constituição de 1988 trouxe o que alguns chamam de uma “democracia
semi-direta”. O Parágrafo único do Art. 1o define: "Todo o poder emana do
povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos
termos desta Constituição.”. Infelizmente, poucas vezes, desde 1988, os
instrumentos de democracia direta previstos na Constituição foram utilizados.
Temos uma prática de consulta direta ao povo menor do que, por exemplo, os
Estados Unidos.
Outras
formas de participação da sociedade na tomada de decisões importantes para a
Administração foram sendo introduzidas, para o bem de nossa democracia. Um
exemplo elogiável é a prática, bastante difundida nos municípios, de construção
participativa dos orçamentos. O orçamento participativo não está previsto na
Constituição. A responsabilidade pela construção do Projeto de Lei Orçamentária
continua do Chefe do Executivo, que o encaminha ao Legislativo. No entanto, ele
divide a tarefa com a sociedade civil, por meio de plenárias e conferências,
deixando abertos canais de participação. Ouve, mas continua com o poder de
enviar a proposta ao Legislativo.
A
Constituição traz já, em algumas áreas, deveres específicos para o Executivo de
abertura de sua atividade à participação popular.
Na
Seguridade Social - conceito que inclui Saúde, Previdência Social e Assistência
Social - a Constituição deixou já institucionalizada a necessidade da
participação de entidades da sociedade civil na Administração. O parágrafo
único do art. 194, que institui objetivos da Seguridade Social, prevê
"caráter democrático e descentralizado da administração, mediante gestão
quadripartite, com participação dos trabalhadores, dos empregadores, dos
aposentados e do Governo nos órgãos colegiados.”. O art. 198, III, da Constituição,
inclui a "participação da comunidade” como uma das diretrizes do Sistema
Único de Saúde. O art. 204, II, da mesma forma, consagra a "participação
da população, por meio de organizações representativas, na formulação das
políticas e no controle das ações em todos os níveis” como uma diretriz da
Assistência Social.
O
Sistema Nacional de Cultura, previsto no art. 216-A - introduzido pela Emenda
Constitucional n. 71/2012 - prevê como um dos seus princípios de organização a
"democratização dos processos decisórios com participação e controle
social”.
Caberia,
aqui, o absurdo argumento de que a participação da sociedade civil organizada
na Administração apenas estaria autorizada onde expressamente o constituinte a
previu? Quando a participação não estaria prevista na Constituição, estaria
proibida? Não vejo qualquer fundamento nesse raciocínio.
Ao
ouvir a sociedade civil organizada, ao abrir à maior participação, o Executivo
não altera qualquer elemento do esquema organizatório funcional previsto na
Constituição. Tal qual a prática do orçamento participativo, O Presidente
continua com os mesmos poderes. Será ele que, no comando da Administração
federal, dará a última palavra sobre o agir do Executivo. O Legislativo não é
atingido em nada.
Aliás,
é bom lembrar que, no Império, eram regulares as audiências nas quais Dom Pedro
II ouvia reclamações de populares contra órgãos públicos. Seria o Rei um
percursor do bolivarianismo? Paciência!
Gustavo Ferreira Santos-Professor de Direito Constitucional da UFPE.
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