quinta-feira, 18 de dezembro de 2008

INTERVENÇÃO ESTATAL NA CRISE E O CHAMADO NEOLIBERALISMO


A vigorosa intervenção estatal no enfrentamento da crise financeira nos países centrais deu lugar a avaliações de que o chamado neoliberalismo estaria derrotado. Não é assim. O que se convencionou chamar de neoliberalismo nunca pressupôs Estado fraco nos países centrais e nunca o enfraqueceu. A receita era para as periferias do mundo, onde encontrou adeptos fervorosos, com resultados quase sempre muito negativos.

Nos países centrais, a onda neoliberal desencadeada 30 anos atrás buscou e conseguiu ampliar a capacidade de intervenção discricionária do Estado, e não o oposto. Tratava-se de liberar o Estado de compromissos com a democracia e com os direitos sociais e econômicos da maioria dos cidadãos. Nada de Estado fraco! Ao contrário, Estado ainda mais forte e mais ágil para cuidar dos interesses da grande finança, do grande capital.

É exatamente o que ocorre agora. Diante de grave crise financeira, a principal forma de intervenção estatal é a emissão de grandes quantidades de moeda, para inflacionar mercados ameaçados pela forte desvalorização de ativos e para impedir a quebra de setores produtivos inteiros. A "injeção de liquidez", eufemismo para ocultar a emissão monetária, demonstra a força do Estado nas economias centrais, e por mais de um motivo relevante.

Um deles é a capacidade de colocar dinheiro público em circulação em quantidades inusitadas e de forma discricionária, sem ter dúvidas de que essa moeda será aceita pelo sistema econômico e pelos cidadãos. Nos países centrais, os governos contam com demanda garantida pelo seu dinheiro quando decidem ampliar a oferta. Nesses momentos, simplesmente ignoram teses e dogmas sobre a necessidade de regras e de evitar a discricionariedade na conduta do setor público. Estas teses e dogmas ocupam intermináveis preleções e modelagens matemáticas nas universidades que seguem os cânones do mainstream econômico, mas de nada servem em momentos de crise. Nos países centrais, as elites intelectuais, políticas e financeiras sabem que esta produção acadêmica de suas universidades não serve para nada nos momentos em que é necessário tomar decisões com grande grau de incerteza.

Outro motivo, igualmente relevante, é a capacidade de ocultar a natureza do que está sendo feito. O debate público sobre a crise e o noticiário da imprensa evitam sistematicamente a palavra "emissão". Fala-se de "injeção de liquidez", como se houvesse dinheiro em um cofrinho nos Bancos Centrais, pronto para ser inoculado na economia. A palavra emissão não pode ser pronunciada. Aceitar que se trata de emissão enfraqueceria o dogma da "austeridade monetária e fiscal", tão importante para disciplinar as elites políticas e intelectuais dos países da periferia.

A capacidade de disciplinar a semântica, de selecionar as palavras utilizadas para discutir a crise, delimita o campo de discussão e as alternativas que entram em disputa. Afinal, por que não se poderia emitir dinheiro à farta para garantir seguro-desemprego para todos os cidadãos atingidos pela crise? Ou para socorrer os que perderam suas casas? Ora, isso seria emitir dinheiro e provocar desequilíbrio fiscal e inflação, ou risco moral. Fazê-lo para bancos e mercados é outra coisa, é "injeção de liquidez".

Essa força do Estado, contudo, não significa que o neoliberalismo tenha sido uma fantasia, uma figura de retórica. Ao contrário, trata-se de um ideário muito forte e poderoso, gestado, como se sabe, em reação aos avanços da democracia e dos direitos sociais e econômicos depois da Segunda Guerra.

O neoliberalismo realmente existente, contudo, não foi uma volta ao passado liberal. O prefixo "neo" se justifica inteiramente por se tratar de liberalização com Estado forte e intervencionista, capaz de atuar na área econômica de forma ampla, discricionária e seletiva, como agora, e capaz também de abandonar áreas em que intervinha fortemente, como os direitos sociais e econômicos, apontados como impossíveis de manter por conta da chamada "globalização". Trata-se de uma obra de engenharia social e política impressionante, em que a ação do Estado é ocultada e é designada pelo que não é.

O neoliberalismo é forte por ser um paradigma amplo e poderoso, mas também muito flexível. Muitas vezes se afirmou que o ideário neoliberal significava caminho único e sem alternativas. Essa afirmação é caso típico de meia verdade: o neoliberalismo é ideologia única, sim, mas capaz de abrigar políticas econômicas as mais variadas. Basta lembrar o que fez o governo dos EUA e seu Banco Central nos últimos oito anos, políticas agora criticadas pelo que tiveram de original e de polêmico, em meio à adoção de novas políticas originais e polêmicas.

O paradigma neoliberal continua pautando os debates sobre o enfrentamento da crise e sobre as mudanças nas instituições e nas políticas econômicas. Não se cogita rever a precarização do trabalho, por exemplo, ou o direito dos Bancos Centrais de emitir dinheiro e comprar ativos desvalorizados sem prestar contas a ninguém, ou a responsabilização dos governos centrais pelos danos que os capitais especulativos trazem aos países periféricos com a desregulamentação financeira.

A crise atual é provavelmente a maior e mais grave desde a depressão dos anos 1929-1933, mas felizmente ainda está muito distante daquela em termos de efeitos econômicos e sociais. As semelhanças são fracas e há a solidez do dólar como reserva mundial. Pode ser este um motivos para ainda não ter dado lugar a questionamentos fortes sobre os paradigmas de política econômica dominantes. Para tanto, talvez seja necessário um agravamento ainda maior dos problemas, a ponto de tornar insuficiente a aplicação desordenada de receitas aprendidas décadas atrás.

Ou talvez as idéias novas não surjam porque a crise ainda não despertou conflitos políticos graves. Até agora as reações das vítimas são tímidas e localizadas. A força do paradigma neoliberal continua ajudando a manter a ordem, enquanto as elites políticas centrais e a grande finança mundial definem políticas para conter os problemas e preservar seus interesses.


Carlos Eduardo Carvalho, economista, é professor da PUC/SP

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