por Aurélio Munhoz*
Passadas as primeiras 24 horas após o incêndio que destruiu 231 jovens em uma casa de shows em Santa Maria (RS), o Brasil foca suas atenções agora na identificação dos culpados por mais esta inominável tragédia urbana.
Natural que seja assim. O que aconteceu neste domingo na cidade gaúcha foi fruto de uma coleção de indefiníveis aberrações que, por sua extrema gravidade, causam indignação e merecem punição rigorosíssima.
Ocorre que não são apenas os donos ou os seguranças da casa de shows, tampouco a Prefeitura de Santa Maria e o Corpo de Bombeiros, que merecem condenação. O papel que grande parte da mídia está exercendo diante deste drama humano de proporções colossais, a exemplo do que tem feito em relação a tantos outros, também se revela abjeto e passível de duríssimas críticas.
A mídia tem todo o direito – e, mais que isto, o dever – de noticiar tragédias como a que estamos acompanhando, ao vivo e em cores. Fornecer informações de interesse público é uma das suas atribuições. A morte de 233 seres humanos, ainda mais nas circunstâncias verificadas na casa de shows é, obviamente, digna de uma extensa cobertura porque interessa a um expressivo segmento da sociedade.
As escolas de jornalismo sérias ensinam, porém, que o tratamento de assuntos desta natureza pressupõe cuidado extremo. Não por acaso. É tênue, muito tênue, o limite que separa a informação de interesse público da notícia convertida em espetáculo com objetivos escusos.
Infelizmente, muitos colegas da imprensa (deliberadamente, inclusive) romperam este limite no caso em análise. Boa parte da mídia está fazendo a cobertura da tragédia de Santa Maria não com o nobre propósito que deveria motivá-la – garantir que aberrações como esta não se repitam, algo possível por meio da divulgação permanente de informações corretas e isentas, fruto de pesquisa e investigação sérias, revelando seu compromisso com a sociedade.
Seu propósito é outro – absolutamente vil, porque imoral e oculto: converter a tragédia dos meninos de Santa Maria em um grande espetáculo midiático com o objetivo de garantir audiência cativa. De preferência, às custas das lágrimas do público. É o que se chama, em Teoria da Comunicação, de “espetacularização” da notícia, ou seja, a sua conversão em um agente não do bom jornalismo, mas do entretenimento e do cinismo, porque dá a falsa impressão de que o compromisso primeiro desta mídia é com o público, quando o é de fato, acima de tudo, com seus patrocinadores.
É um Big Brother de verdade, formado não por beldades vulgares e sem cérebro, do tipo que costumam freqüentar os realities shows, mas por cidadãos respeitosos vítimas da irresponsabilidade humana. Sensacionalismo, em uma palavra, como nos tempos do programa Aqui Agora, extinto em 1997. Mais brando, é verdade, mas uma forma de sensacionalismo, de todo modo.
Foi o que aconteceu durante todo o dia da tragédia, quando, por exemplo, até programas dominicais exclusivamente de entretenimento – inclusive os conduzidos por não jornalistas – consumiram horas a fio tratando do tema, mas em tom predominantemente emocional e policialesco, e não informativo. Tampouco estes veículos sinalizaram o interesse de incluir este tema (a segurança em casas de shows) em uma agenda permanente de debates.
É claro que não se pode descartar o componente fortemente emocional que permeia uma tragédia como esta, mas quando se exagera na ênfase deste aspecto – sobretudo quando esta iniciativa parte de programas exclusivamente de entretenimento, aos quais não cabe o perfil de noticiosos – e quando se aborda este tema de maneira superficial gera-se desconfiança sobre os reais propósitos que margeiam a divulgação do fato.
Não se trata de uma novidade. O histórico de grande parte da mídia é profícuo neste gênero de cinismo, no âmbito das tragédias humanas. Cito apenas um caso, já clássico na cronologia de aberrações da mídia: o terremoto no Haiti, que completou três anos em 12 de janeiro e matou 316 mil pessoas, convertendo-se em um das maiores tragédias provocadas por causas naturais da humanidade. Entre elas, Zilda Arns, médica gaúcha fundadora da Pastoral da Criança.
Fontes ligadas à própria Pastoral da Criança, que continua atuando na região, informam que pouca coisa mudou de lá para cá. O portal IAI (International Alliance of Inhabitants) vai além. Comunica que, três anos após o terremoto, depois do bombardeio inicial de notícias sobre o desastre, o Haiti foi praticamente esquecido pela grande mídia e pelos organismos de ajuda internacionais. Mais de 370 mil pessoas continuam vivendo em abrigos temporários, em péssimas condições. E, o que é quase tão grave, 78 mil (21% do total) ameaçam ser despejadas. Não bastasse tudo isto, apenas 1/3 da ajuda prometida, inclusive pela ONU (Organização das Nações Unidas), chegou às mãos do presidente Michel Martelly.
Não é a grande mídia a culpada por isto, evidentemente, mas é de se perguntar por que um problema desta gravidade é solenemente ignorado pela imprensa, que, por sinal, só trata do Haiti ultimamente para criticar a presença dos militares brasileiros no país, algo plenamente justificável pela necessidade de combater os roubos, estupros, a violência e demais atos criminosos nos acampamentos.
Perdoem-me os colegas jornalistas que levam sua profissão a sério, mas não há como não deduzir, do exposto, que o que realmente move a engrenagem de boa parte da imprensa neste tipo de situação não é exatamente o interesse público, ou o sentimento de justiça e de solidariedade às vítimas.
O que se deseja é, tão somente, vampirizar as vítimas das tragédias. Nesta lógica cínica, importa não garantir espaço permanente às famílias das vítimas das tragédias, mas oferecer generosa cobertura aos seus dramas apenas durante o curto tempo em que os corpos dos mortos continuarem rendendo manchetes e as atenções do público. Até, portanto, o surgimento de uma nova tragédia que abasteça com sangue fresco a sede por dramas humanos novos dos que chamam isso de jornalismo.
Os meninos que perderam suas vidas neste domingo, bem como suas famílias, merecem um tratamento bem mais respeitoso – e não serem citados como vítimas de uma tragédia dantesca para, depois, serem praticamente esquecidos pela poeira do tempo, o que fatalmente irá acontecer. Cobrem-me isso, aliás, daqui a alguns meses. Todas as vítimas de todas as tragédias merecem, aliás, pelo simples fato de que são seres humanos – e não objetos descartáveis a serviço de empresários e jornalistas que lançam um olho sob os locais das tragédias e o outro sob os números da audiência. Triste que seja assim.
*Aurélio Munhoz é jornalista, sociólogo, presidente da ONG Pense Bicho e secretário do Comupa (Conselho Municipal de Proteção Ambiental de Curitiba).
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