A PEC da deputada Cristiane Brasil
(PTB-RJ), que tenta proibir a reeleição por períodos descontinuados para
cargos do Executivo coloca o esforço para destruição política de Luiz
Inácio Lula da Silva no nível da desfaçatez.
Num país que já criou a lei Fleury, para beneficiar um torturador que
corria o risco de ser condenado e preso, temos agora uma lei cujo único
prejudicado real, entre possíveis candidatos a presidente, é Lula.
O fato de ter recebido, já, o apoio de 181 parlamentares mostra que é uma iniciativa preocupante.
Este projeto revela que, do ponto de vista dos adversários do governo
Lula-Dilma, não basta tentar promover o impeachment da presidente
reeleita em 2014, mesmo sem nenhuma base legal para isso.
Não basta também aprovar punições sucessivas contra o Partido dos
Trabalhadores, procurando erros em campanhas que já prescreveram, que
são a chamada "matéria julgada" para tentar autorizar o TSE a decretar a
extinção da legenda, acobertando uma gravíssima decisão política como
simples ato administrativo.
Também não basta promover uma campanha permanente de denúncias sem
prova, insinuações e acusações vazadas, para atingir a reputação de Lula
com métodos irresponsáveis e covardes, que jamais foram empregados
contra qualquer outro político brasileiro.
É preciso impedir Lula de disputar a presidência da República. Salgar a terra, entende?
É preciso ter a garantia de que não irá sobreviver nem retornar à cena política.
Não se quer correr riscos. Não é novidade, nós sabemos.
Lula sempre foi o alvo e joga-se agora uma chance perseguida há uma
década. Ele deve ser inutilizado -- mesmo que a Lava Jato nada prove,
como nada se mostrou na AP 470, quando integrantes do Ministério Público
chegaram a pressionar para que fosse indiciado.
A PEC é constrangedora por vários motivos. A começar pelo óbvio.
Com exceção de Geraldo Alckmin, que mesmo assim possui uma bancada
leal a seus interesses, os principais presidenciáveis, que têm todo
interesse em evitar um sempre perigoso confronto com Lula na próxima
eleição -- seja quando ela ocorrer -- irão deliberar sobre a PEC que
pode ser decisiva para seu futuro político e pessoal. Alguém já ouviu
falar de conflito de interesses?
É muita falta de pudor, vamos combinar.
Filha de Roberto Jefferson, deputado que conquistou seis mandatos
sucessivos entre 1983 e 2002, Cristiane Brasil argumenta como se
tivessse descido de uma nave espacial em frente ao Congresso.
Diz candidamente que a reeleição "desencadeia uma desarmonia na seara
eleitoral, ocasionando um prejuízo à governabilidade, dando espaço a um
sentimento de perpetuação, de uma dinastia, no qual nada tem a ver com
os ditames da democracia, ferindo inclusive o princípio republicano".
Comovente, vamos concordar.
"Amas a incerteza e serás um democrata," ensinou Adam Przeworsky,
mestre do estudo de regimes democráticos do pós-Guerra, que estudou no
Ocidente e também nos antigos regimes comunistas, a começar por sua
Polônia natal.
Não é uma frase de efeito. Todo mundo que já disputou uma eleição --
mesmo de diretório estudantil -- sabe que há um momento em que é preciso
roer as unhas, meditar, fechar os olhos, de preferência, e recolher-se,
humildemente, à própria condição de ser reduzido a um número na
multidão -- é a hora em que os eleitores vão se pronunciar.
Nada há nada para se fazer, a não ser aguardar. Isso porque o futuro
de tudo e de todos, nessa situação, não pertence a ninguém -- mas à
maioria, onde um homem=1 voto.
Sem o menor pudor, pretende-se aprovar -- pelo mesmo Congresso que
reduziu a maioridade penal, planeja garantir as doações de empresas as
campanhas eleitorais e desmontar a CLT -- uma regra anti-democrática e
casuística.
Ela equivale, pelas regras em vigor no país de 2015, à cassação de
direitos políticos que se fez em 1964, contra Leonel Brizola, o próprio
João Goulart, Almino Afonso, Luiz Carlos Prestes, Francisco Julião,
Miguel Arraes e tantos outros.
É natural que os adversários do Partido dos Trabalhadores façam o
possível para derrotar um líder que encarna as principais conquistas que
garantiram a seu bloco político quatro vitórias eleitorais
consecutivas.
Quem acha que Lula fez pouco só deveria meditar sobre a relatividade
das coisas da política e do mundo. Se mesmo assim ele é tão popular,
imagine o que fizeram os "outros"? Por que tem tanto medo?
A questão reside no método. Só é aceitável travar e vencer uma luta
política com respeito aos direitos democráticos, que autorizam, acima de
tudo, o eleitor a exercer a vontade soberana que funda nossa república.
A Constituição de 1988 ensina que no artigo primeiro, parágrafo
único: "todo poder emana do povo, que o exerce através de seus
representantes e diretamente, na forma da lei."
A Constituição diz que, em se tratando de presidente da República, o
povo exerce seu poder diretamente -- em urna. Foi a grande mudança
obtida na época, quatro anos depois que o regime militar conseguiu
impedir a aprovação da emenda Diretas-Já. O caráter essencial dessa
conquista é antigo e profundo. Está impregnado na consciência dos
brasileiros, que não abrem mão desse direito de escolha e sempre
rejeitaram, por imensa margem, mudanças que poderiam permitir
interferências externas, a começar pela recorrente esperança elitista do
parlamentarismo.
Neste aspecto, o presidencialismo brasileiro guarda uma diferença
essencial em relação ao regime que vigora nos Estados Unidos, por
exemplo. Lá, o povo vota em urna -- mas o presidente é escolhido pelos
delegados de um Colégio Eleitoral que nem sempre traduz perfeitamente a
vontade do eleitorado. Há contradições e incoerências.
George W Bush tornou-se presidente dos EUA em 2000 porque a Corte
Suprema lhe garantiu a posse dos delegados do Estado da Flórida. Nunca
teve maioria no voto popular, onde o democrata Al Gore sempre esteve na
frente.
Essa situação é um reflexo da Constituição americana, onde o Colégio
Eleitoral funciona como um filtro aristocrático -- ou fisiológico, ou
aparelhado, você decide -- da vontade de popular.
Em 1951, aprovou-se, nos Estados Unidos, uma regra que impede que um
presidente que cumpriu dois mandatos seja candidato mais uma vez, mesmo
de forma descontinuada. Estamos falando de presidentes que não precisam
ganhar a preferência do eleitor -- mas dos delegados de partidos
políticos. É um ponto essencial, que deu legitimidade a mudança de 1951,
que mesmo assim só foi obtida num contexto de feroz campanha
anti-comunista, onde os democratas eram acusados de acobertar agentes
soviéticos e espiões a serviço de Pequim e Moscou.
Em 2015, pretende-se -- por antecipação -- cassar um direito que é impossível adivinhar, sequer, se Lula pretende exercer.
É a estratégia de quem tem plena consciência das fraquezas de uma
operação tramada às costas do povo. É fácil entender por que se tenta
impedir que 140 milhões exerçam o direito à palavra final.
É muita desfaçatez. Alguma dúvida?
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