segunda-feira, 15 de dezembro de 2008

ANGÚSTIA



Ricardo Giuliani Neto

Hoje não estou num bom dia para escrever qualquer coisa.

Ando angustiado. É como se algo apertasse o peito. É como se do fundo do coração brotasse o desejo de sair pelo mundo para mudar e mudar e mudar, e mudar tantas coisas que precisam ser mudadas.

Não fosse o problema de identificar exatamente o que precisa ser mudado, tenho a certeza de que não tenho a condição pessoal para decisões deste tamanho.

Distinguir o certo do errado. O meu certo e o teu errado, ou mesmo o teu certo e o meu errado. Ousadia é pensar a tua cabeça a partir da minha cabeça, é julgar as tuas atitudes a partir das minhas próprias práticas...

Em cada esquina que passo, em cada arrabalde, em cada canto da cidade, em encanto com os cânticos de igreja, em cada favela tomo a sensação da mais absoluta e absurda impotência. E existem cantos povoando a terra dos mortos...

Os mortos já não merecem respeito. Os vivos... vivem sem respeito. Nós outros, vamos contaminamos pela inteligência do nada. Vamos contaminados pelo poder dos medíocres, dos espertos.

Sabem vocês o quão difícil é descrever a realidade.

O encontro diário com a racionalidade que me é imposta e a tarefa de descrever-te com minúcias, desejáveis ao ouvido surdo, faz-me sentir, no abstrato da leitura, a concretude do cheiro da tua terra, e a tua terra só me traz angústia.

Escrever sobre o sangue que jorrou no dia anterior, escrever sobre as mães indispostas nos leitos fedorentos dos corredores de espera; descrever a mortes prematuras ou contar-lhes a dor do pai que teria desejado morrer no lugar do filho pequeno, é como ser atropelado para ser encontrado numa lata de lixo envolto em manchetes sangrentas de sangrentos jornais. Que desestimulante tudo isso.

Vejam o quanto é difícil concretizar a saga do índio que no escuro da noite foi consumido pelos clarões das chamas. O índio que teve as vísceras comidas pelas línguas de labaredas e que dormiu para a eternidade ao som de risos indecentes.

Como é difícil ouvir um grito perdido no breu silencioso da noite. Como é difícil insinuar nós outros como deuses: Deuses dos índios, Deuses dos nossos próprios deuses.

Há angústia quanto encontro o melhor verbo.

O desejo incontido de contemplar a melhor montanha, de sentir a dança pachorrenta das ondas do mar. Desejar um encontro furtivo com a amada, cheirar um cheiro de rosa, ninar a sabedoria do nada, tudo é como se das entranhas da terra fizesse brotar um garrote que nos estraçalha a vontade e a razão.

Não desejo mais nada do que poder desejar. Não quero a tristeza da impotência e nem a mesmice do dia anterior.

Quero sentir a curiosidade de todos os dias, a curiosidade que me leva ao encontro do dia nascendo amanhã. Serei coberto de chuva, terei os olhos mais tristes, as pálpebras baixas, e o pensamento nas mãos.

Quero encontrar o dia que pede socorro convidando-nos pra vida.

Hoje sei que não estou bom para escrever. Minhas sinceras desculpas. Preciso deixá-los, voltar para casa, reencontrar minha amada, rever os meus filhos, sentir o cheiro da rosa.

Preciso voltar... procurar outro dia, outro jorro do sangue, mais uma morte de índio, outras latas de lixo.

Preciso voltar, preciso voltar...

Sugestão de Leitura: Memórias do subsolo. Fiódor Dostoiévski.

Segunda-feira, 15 de dezembro de 2008

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