sexta-feira, 2 de novembro de 2012

O perigoso mundo do maniqueísmo

 

O dicionário define maniqueísmo, em seu sentido extensivo, como uma “doutrina que se funda em princípios opostos, bem e mal”. Suas origens remontam a uma concepção religiosa surgida na Pérsia e disseminada pelo mundo, mas não é minha intenção aqui ir além dessa consideração histórica. Importa-me, nesta oportunidade, perceber que tal visão – presente como fundamental em praticamente todas as religiões - espalha-se para outros domínios, sendo exaustivamente encontradas nas narrativas mais antigas e nas contemporâneas, nos dramas de então e de agora, em um rol de dicotomias de tipo mais que variado. Pense, por exemplo, na Cinderela e na madrasta má do conto infantil, no lobo e na ovelha da fábula, no lado luminoso e no escuro da Força na Guerra das Estrelas. Pense nas incontáveis histórias que envolvem os bons terráqueos e os terríveis extraterrenos. Pense nos fundamentalismos maniqueístas espalhados pelo mundo, no Oriente e no nosso Ocidente. Pense em Carminha e Nina, se quiser... .

 

O problema é que, a partir dessa visão dualista, um lado sempre se arvora como representativo ou exemplificativo do Bem, reservando para o outro as características negativas, tudo isso cercado de profunda radicalização absolutista.

 

Li em algum lugar – como exemplo dessa ótica enraizada desde tenra idade nas nossas mentes e nos corações – a história de um pai que, ao perguntar à sua filha de 4 anos o que era o Bem, ouviu dela, com a honestidade que cerca as palavras das crianças, a resposta : “Ué, o Bem somos nós”...

 

O dia a dia nos apresenta no mundo de hoje diversos exemplos dessa visão maniqueísta que parte de dois princípios antagônicos e irredutíveis. No futebol, centenas de exemplos copiam o carioca Vasco x Flamengo ou o gaúcho Grêmio x Internacional, para ficarmos apenas em mínimos exemplos da realidade nacional. Como em outras esferas, ouso dizer que em todas elas, o pensamento e as ações alheias são desqualificadas como malignas, negativas, irreversivelmente dignas de repúdio, e as nossas ideias ,atitudes e gostos, mesmo estranháveis, têm sempre uma justificativa positiva...

 

Vendo a vida e o mundo por um único e inarredável prisma, temos profunda dificuldade em reconhecer as virtudes do Outro, ou a existência de uma zona cinzenta onde a razão e a verdade se diluem através das contribuições de ambos os lados. Na História do mundo, é recorrente esse posicionamento de negar validade aos valores alheios, invariavelmente “errados” diante dos nossos “acertos”. Os “bárbaros” de todo gênero, os arrogantes romanos conquistadores, os fanáticos cruzados da Idade Média, os brutais colonizadores espanhóis, os ingênuos soldados americanos de muitas invasões, e os iludidos soldados nazistas alemães, por exemplo, provavelmente se enxergaram como agentes do Bem...

 

Por tudo isso, o raciocínio maniqueísta – enraizado na maioria das cabeças – é , para muitos espertos, um instrumento de manipulação de pessoas incapazes de distinguir , entre todas as cores e seus matizes, algo além do preto e do branco. Estigmatizando os outros como exemplares do Mal, pretensiosos representantes do Bem já levaram massas humanas à desgraça, ao sofrimento, quando não à destruição.

 

A política é um campo fértil para o germinar do maniqueísmo e todos devemos estar sempre atentos diante desse perigoso inimigo do homem. Não me excluo dessa atenção e, embora procure sempre ter cuidado ao despir minhas posições de sectarismos ou reducionismos, talvez nem sempre o consiga, no afã de defender uma causa que julgo justa ou de criticar posturas que considero indignas.

 

Esses comentários vêm a propósito da indisfarçável intenção, por parte de alguns setores da mídia nacional, de estigmatizar todo um segmento político-ideológico, em uma falsa generalização a partir de erros cometidos por alguns. São pessoas e organizações que usam da sua influência e de um posicionamento nem sempre meritório que a democracia ironicamente lhes confere para demonizar todo um projeto que busca, através de programas sociais, mitigar (na impossibilidade de extinguir ) as profundas desigualdades sociais que recheiam a nossa realidade.

 

Para essa turma, a corrupção foi introduzida no país pelos segmentos de esquerda que foram levados ao poder pela “equivocada” eleição popular. Para eles, a corrupção jamais existiu antes entre nós, e seguramente não existirá no futuro, desde que consumada a derrubada do Mal encastelado no atual poder, se possível por um golpe sutil que se vá construindo vagarosamente. Para esses hipócritas do Bem, antes não se compraram votos de congressistas para permitir reeleição de Presidente, não se escreveu a triste história da Privataria Tucana, e, mais recentemente, não jorraram as pérfidas águas de uma cachoeira de malfeitos da quadrilha goiana, não existiu um cada vez mais sepultado mensalão mineiro, Arruda e Demóstenes foram seres de ficção, provavelmente inventados pelo Mal.

    

Estamos no limiar de momentos sérios por que passarão a cidadania e a democracia brasileiras. Há indícios de um conluio (uma quadrilha?) para provocar a instabilidade social e, como objetivo final, o descrédito do Governo, através de uma posição fundamentalista de causar inveja às seitas mais radicais. Para nos convencer de que esse perigo não existe, é muito simples: queremos um poder judiciário, um Supremo, que nos mostre, com ações tão contundentes quanto as de agora, que não se encontra a serviço desse tal maniqueísmo, enxergando as falcatruas, fraudes e corrupções onde quer que estejam, principalmente no seio de falsos representantes do Bem.

Rodolpho Motta LimaAdvogado formado pela UFRJ-RJ (antiga Universidade de Brasil) e professor de Língua Portuguesa do Rio de Janeiro, formado pela UERJ , com atividade em diversas instituições do Rio de Janeiro. Com militância política nos anos da ditadura, particularmente no movimento estudantil. Funcionário aposentado do Banco do Brasil.Direto da Rdação

 
 

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