Juarez Guimarães e Marlise Matos
20 de outubro de 2010
Pense em Cecília Meireles e logo se ouvirá uma canção lírica: “Pus o meu sonho num navio/ e o navio em cima do mar;/- depois, abri o mar com as mãos,/para o meu sonho naufragar.”
Leia Clarice Lispector e, então, um feminino dramático tomará de assalto sua respiração: “(…) sobretudo um dia virá em que todo meu movimento será criação, nascimento, eu romperei todos os nãos que existem dentro de mim, provarei a mim mesma que nada há a temer, que tudo o que eu for será sempre o meu princípio…”
Ouça Clementina de Jesus e saiba de pronto, assim com a certeza dos mistérios, que a raiz da raiz de nossa humanidade comum é negra, é África, é Brasil.
Imagine Leila Diniz: nenhuma chance de não sentir o mar e suas canções libertárias.
Imagine agora as milhares de mulheres anônimas deste pais (uma em cada cinco mulheres brasileiras) que recebem de seus parceiros e companheiros, ao invés de gestos de carinho, acolhimento e amor, a forca bruta da mão pesada, e ainda assim se levantam e seguem em frente, na busca permanente do amor.
Pense também naquele um terço de famílias brasileiras que tem na forca de uma mulher o sustento, o alimento, a forca e a coragem para seguir construindo um futuro melhor para si e para os seus.
Lembre-se daqueles milhões de mulheres que conquistaram os bancos escolares, ousaram estudar, se escolarizar, se instruir para através da forca da palavra romper os muros da ignorância, do preconceito e do desconhecimento acadêmico da história e das lutas das mulheres.
Por fim, lembre-se daquelas mulheres, ainda poucas, mas corajosas e resistentes, que estão na vida política pública, construindo pontes entre os nossos poderes constituídos e os direitos das mulheres.
Quando sentimos esta força interior que vem de Dilma Roussef – “esta mulher não tem medo de nada, enfrenta tudo”, disse Chico Buarque em público diante de seu mistério – ainda não sabemos direito o que sentir, o que imaginar, como identificá-la na gramática das nossas impressões.
Força, coragem, grandes feitos públicos, os valores mais associados ao gênero épico, são desde sempre valores e atos concebidos como masculinos. Tanto é assim, que se o substantivo for feminino, quando se fala de uma heroína e não de um herói épico, logo a ele se associa um adjetivo da ordem masculina: corajosa e dura como um homem, “dama-de-ferro”, valente como se não fosse mulher.
Mas Dilma, não tenhamos mais dúvidas, é personagem de um grande momento épico brasileiro. Lula encarnou um grande movimento épico dos operários e dos pobres. Dilma promete hoje, diante dos nossos olhos, um grande épico feminino.
“Luta, substantivo feminino. Mulheres torturadas, desaparecidas e mortas na resistência à ditadura” é o livro de nosso “Direito à memória e à verdade”, recém editado pela Caros Amigos Editora, em parceria com a Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres e a Secretaria Especial dos Direitos Humanos. E se Dilma fosse Catarina, Marilena, Iara, Ísis, Ligia, Ana Maria, Aurora, Soledad, Sonia, Maria Regina, Miriam, Lourdes ou Anatália, ou muitas outras incógnitas ainda assassinadas entre 1964 e 1974? “Quem perde, ganha uma grande capacidade de lutar e resistir. Disso, uma geração não pode abrir mão. Eu tenho muito orgulho das minhas derrotas, que fizeram parte da luta correta”, disse Dilma na noite de seu encontro com artistas e intelectuais no Rio de Janeiro.
Os motivos da Folha de S. Paulo, ao publicar uma ficha falsificada do Dops sobre Dilma e ao editar o depoimento de um homem das engrenagens do cárcere sobre a sua personalidade, valem-se do fato de que entre nós a cultura do que se chama direitos de transição – o direito de julgar os crimes cometidos durante a ditadura militar a partir dos valores e procedimentos da democracia – é ainda muito fraca. Na verdade, querem julgar Dilma com os valores próprios da ditadura militar! Mas este momento mais escabroso da campanha de calúnias contra Dilma – o de apagar o contexto da sua corajosa luta e sofrimento pela liberdade em seu pais e de denunciá-la como “bandida”, “terrorista”, “criminosa” – vale-se também do fato de que a uma mulher, ao modo mais rasteiro e machista, não se associam os dons da luta mais dura, aguerrida, guerreira, aqueles que opõem o mais desvalido ou a mais vulnerável à desumanidade do torturador.
Dilma eleita presidente é como se Catarina, Marilena, Iara, Isis, Lígia, Ana Maria, Aurora, Soledad, Sonia, Maria Regina, Miriam, Lourdes ou Anatália, e tantas outras companheiras assassinadas, esquecidas e anônimas estivessem permanentemente evocadas, no centro da vida pública brasileira. E se os caluniadores de Dilma ganhassem sua aposta tenebrosa de transformar mártires da luta democrática em bandidos, ao modo de Walter Benjamin, seria possível dizer que até os nossos mortos correm perigo.
Expansão da identidade feminina e feminismo
Mas os lugares comuns da calúnia – Dilma já é, certamente, a mulher mais caluniada, difamada, da história brasileira (e também a mulher mais votada da historia brasileira – haverá aqui alguma transgressão?) – concentram-se ali nos pontos falhos ou fracos da nossa cultura democrática. Há uma vastíssima e profunda defasagem entre a expansão da identidade social das mulheres e a cultura pública do feminismo no Brasil contemporâneo. Este abismo está nitidamente expresso no livro editado pela Fundação Perseu Abramo, “A mulher nos espaços públicos e privados. Como vivem e o que pensam as brasileiras no início do século XXI”, baseado em pesquisas nacionais feitas em outubro de 2001.
Os motivos da expansão da identidade feminina, seja no mercado de trabalho e na educação, seja também na sua vida sexual estão ali bem expressos. Três quintos das entrevistadas têm orgulho de ser mulher; 39 % identificam ser mulher com ter a sua própria autonomia econômica no mundo do trabalho, 33 % associam ser mulher com a liberdade e independência social, mas apenas 8 % fazem tal associação com ter os mesmos direitos que os homens. Praticamente 80 % dizem estar satisfeitas com a sua vida sexual e 74 % julgam que a sua vida vai melhorar, independente da situação do país, graças ao seu auto-esforço.
Mas se 89 % julgam que há muito machismo no Brasil, só 22 % consideram-se total ou parcialmente feministas. Este índice cai inclusive com a escolarização. Explica-se: as décadas de oitenta e noventa foram décadas duramente conservadoras do ponto de vista moral no Ocidente, com grandes reflexos na nossa cultura brasileira. Houve como que uma onda de retrocesso em relação aos tempos mais libertários e igualitários dos anos sessenta e setenta. Em parte, essa configuração se deveu a involução conservadora da Igreja Católica no período, reforçando e retirando seus dividendos do quadro geral de retrocesso. Ser feminista, neste contexto cultural, associou-se a algo negativo, ruim ou até pejorativo.
Após a primeira fase épica de sua vida, Dilma, como mulher emancipada, retomou a sua vida pessoal em compasso com a sua vida profissional e pública, como fazem hoje as dezenas de milhões de mulheres brasileiras. A sua vida após o cárcere faz parte, então, desta “expansão da identidade feminina” na sociedade brasileira, que a pesquisa da Fundação Perseu Abramo demonstrou muito bem. Mas a cultura pública desta expansão da identidade feminina, isto é, uma cultura real e cotidianamente experimentada de emancipação das mulheres, com suas histórias centenárias, suas gramáticas, seus motivos, seus valores, seus personagens, seus argumentos e profunda beleza, não está ainda composta ou estabelecida na cena pública brasileira. Até mesmo a universidade brasileira, de norte a sul, leste a oeste, com toda a sua inteligência consolidada, apenas balbucia em seus currículos e programas de ensino, o feminismo.
É impressionante como a propaganda de Serra abusou desta falha democrática da cultura brasileira: caluniando de ser contra a vida aquela cultura das mulheres que exige o direito de decidir sobre o seu próprio corpo, proclamando a sua evidente limitação para ser governante do Brasil, lançando todo tipo de suspeições sobre a personalidade das mulheres emancipadas do Brasil. Ao fazer isto, mobilizava milenares, ancestrais, retrógrados estereótipos sobre as mulheres inscritos numa cultura tradicional Ocidental e em centenários arquétipos patriarcais formados e ainda preservados na cultura brasileira.
O segundo momento efetivamente épico de Dilma foi enfrentar não o torturador, mas o caluniador. Sua primeira sobrevivência foi em nome da liberdade; a sua segunda vitória será em nome da dignidade de todas as mulheres livres do Brasil.
Mulher cidadã
“Se as mulheres podem ir ao cadafalso, por que não podem também ir à tribuna?”, perguntou Olympe de Gouges, a redatora da esquecida Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã durante a revolução francesa e, afinal, guilhotinada . Por que esta mulher que foi ao cárcere pelo fundamento da democracia em nosso país, dos direitos fundamentais da liberdade, não pode agora ir agora à presidência da República?
Qual é hoje, afinal, o lugar das mulheres nas tribunas da democracia brasileira? É, sem dúvida, um lugar menor. Não nos referimos às eleitoras, já que estas, paradoxalmente, são maioria, nos referimos aqui às mulheres titulares de cargos públicos, as parlamentares ou aquelas no executivo. Há uma brutal subrepresentação, que não pode deixar de ter repercussão na agenda política do país, em seus costumes, em seus regulamentos e procedimentos, porque diz de uma déficit, de uma falha no processo de consolidação da democracia brasileira. Para gerar o seu filho, a deputada federal pelo PC do B, Jandira Feneghali foi instada a obter licença por doença porque não havia no Regulamento da Câmara Federal a figura da licença maternidade!
Dilma eleita presidente descortina uma nova história que começa na relação das mulheres com a política institucional no Brasil, que teve início há tempos com os movimentos sufragistas liderados nos inícios do século XX com Bertha Lutz. É apenas o começo de um amplo movimento político e social pela paridade e a justiça na representação – um direito devido as mulheres brasileiras – que certamente ganhará maior profundidade nos próximos anos. E, sem partilhar de nenhuma presunção sobre a natureza das mulheres, se poderá dizer que outra será a agenda, outra devera ser a relação dos temas públicos e privados, outra a linguagem da democracia brasileira em formação. Pois é, finalmente, a figura plena da mulher cidadã política que está tardiamente se formando entre nós.
No momento mais lírico de sua nova jornada épica, Dilma Roussef, na Convenção Nacional do PT, citou o verso de Drummond “Teus ombros suportam o mundo/ e ele não pesa mais que a mão de uma criança”, para lembrar que o seu reencontro com a vida após a experiência do cárcere foi quando sentiu em seu ombro, pela primeira vez, a mão da sua filha recém nascida. Será que, como imaginou Chico Buarque em uma das suas muitas canções inesquecíveis, virá, com Dilma, enfim, o “tempo das delicadezas”?
Juarez Guimarães é professor de ciência Política da UFMG e autor de “a esperança crítica” ( Editora Scriptum, 2008). Marlise Matos é professora do Departamento de Ciência Polaítica da UFMG e autora de “Reivenções do vínculo amoroso” ( Editora da UFMG/Iuperj, 2000)
CartaCapital
20 de outubro de 2010
Pense em Cecília Meireles e logo se ouvirá uma canção lírica: “Pus o meu sonho num navio/ e o navio em cima do mar;/- depois, abri o mar com as mãos,/para o meu sonho naufragar.”
Leia Clarice Lispector e, então, um feminino dramático tomará de assalto sua respiração: “(…) sobretudo um dia virá em que todo meu movimento será criação, nascimento, eu romperei todos os nãos que existem dentro de mim, provarei a mim mesma que nada há a temer, que tudo o que eu for será sempre o meu princípio…”
Ouça Clementina de Jesus e saiba de pronto, assim com a certeza dos mistérios, que a raiz da raiz de nossa humanidade comum é negra, é África, é Brasil.
Imagine Leila Diniz: nenhuma chance de não sentir o mar e suas canções libertárias.
Imagine agora as milhares de mulheres anônimas deste pais (uma em cada cinco mulheres brasileiras) que recebem de seus parceiros e companheiros, ao invés de gestos de carinho, acolhimento e amor, a forca bruta da mão pesada, e ainda assim se levantam e seguem em frente, na busca permanente do amor.
Pense também naquele um terço de famílias brasileiras que tem na forca de uma mulher o sustento, o alimento, a forca e a coragem para seguir construindo um futuro melhor para si e para os seus.
Lembre-se daqueles milhões de mulheres que conquistaram os bancos escolares, ousaram estudar, se escolarizar, se instruir para através da forca da palavra romper os muros da ignorância, do preconceito e do desconhecimento acadêmico da história e das lutas das mulheres.
Por fim, lembre-se daquelas mulheres, ainda poucas, mas corajosas e resistentes, que estão na vida política pública, construindo pontes entre os nossos poderes constituídos e os direitos das mulheres.
Quando sentimos esta força interior que vem de Dilma Roussef – “esta mulher não tem medo de nada, enfrenta tudo”, disse Chico Buarque em público diante de seu mistério – ainda não sabemos direito o que sentir, o que imaginar, como identificá-la na gramática das nossas impressões.
Força, coragem, grandes feitos públicos, os valores mais associados ao gênero épico, são desde sempre valores e atos concebidos como masculinos. Tanto é assim, que se o substantivo for feminino, quando se fala de uma heroína e não de um herói épico, logo a ele se associa um adjetivo da ordem masculina: corajosa e dura como um homem, “dama-de-ferro”, valente como se não fosse mulher.
Mas Dilma, não tenhamos mais dúvidas, é personagem de um grande momento épico brasileiro. Lula encarnou um grande movimento épico dos operários e dos pobres. Dilma promete hoje, diante dos nossos olhos, um grande épico feminino.
“Luta, substantivo feminino. Mulheres torturadas, desaparecidas e mortas na resistência à ditadura” é o livro de nosso “Direito à memória e à verdade”, recém editado pela Caros Amigos Editora, em parceria com a Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres e a Secretaria Especial dos Direitos Humanos. E se Dilma fosse Catarina, Marilena, Iara, Ísis, Ligia, Ana Maria, Aurora, Soledad, Sonia, Maria Regina, Miriam, Lourdes ou Anatália, ou muitas outras incógnitas ainda assassinadas entre 1964 e 1974? “Quem perde, ganha uma grande capacidade de lutar e resistir. Disso, uma geração não pode abrir mão. Eu tenho muito orgulho das minhas derrotas, que fizeram parte da luta correta”, disse Dilma na noite de seu encontro com artistas e intelectuais no Rio de Janeiro.
Os motivos da Folha de S. Paulo, ao publicar uma ficha falsificada do Dops sobre Dilma e ao editar o depoimento de um homem das engrenagens do cárcere sobre a sua personalidade, valem-se do fato de que entre nós a cultura do que se chama direitos de transição – o direito de julgar os crimes cometidos durante a ditadura militar a partir dos valores e procedimentos da democracia – é ainda muito fraca. Na verdade, querem julgar Dilma com os valores próprios da ditadura militar! Mas este momento mais escabroso da campanha de calúnias contra Dilma – o de apagar o contexto da sua corajosa luta e sofrimento pela liberdade em seu pais e de denunciá-la como “bandida”, “terrorista”, “criminosa” – vale-se também do fato de que a uma mulher, ao modo mais rasteiro e machista, não se associam os dons da luta mais dura, aguerrida, guerreira, aqueles que opõem o mais desvalido ou a mais vulnerável à desumanidade do torturador.
Dilma eleita presidente é como se Catarina, Marilena, Iara, Isis, Lígia, Ana Maria, Aurora, Soledad, Sonia, Maria Regina, Miriam, Lourdes ou Anatália, e tantas outras companheiras assassinadas, esquecidas e anônimas estivessem permanentemente evocadas, no centro da vida pública brasileira. E se os caluniadores de Dilma ganhassem sua aposta tenebrosa de transformar mártires da luta democrática em bandidos, ao modo de Walter Benjamin, seria possível dizer que até os nossos mortos correm perigo.
Expansão da identidade feminina e feminismo
Mas os lugares comuns da calúnia – Dilma já é, certamente, a mulher mais caluniada, difamada, da história brasileira (e também a mulher mais votada da historia brasileira – haverá aqui alguma transgressão?) – concentram-se ali nos pontos falhos ou fracos da nossa cultura democrática. Há uma vastíssima e profunda defasagem entre a expansão da identidade social das mulheres e a cultura pública do feminismo no Brasil contemporâneo. Este abismo está nitidamente expresso no livro editado pela Fundação Perseu Abramo, “A mulher nos espaços públicos e privados. Como vivem e o que pensam as brasileiras no início do século XXI”, baseado em pesquisas nacionais feitas em outubro de 2001.
Os motivos da expansão da identidade feminina, seja no mercado de trabalho e na educação, seja também na sua vida sexual estão ali bem expressos. Três quintos das entrevistadas têm orgulho de ser mulher; 39 % identificam ser mulher com ter a sua própria autonomia econômica no mundo do trabalho, 33 % associam ser mulher com a liberdade e independência social, mas apenas 8 % fazem tal associação com ter os mesmos direitos que os homens. Praticamente 80 % dizem estar satisfeitas com a sua vida sexual e 74 % julgam que a sua vida vai melhorar, independente da situação do país, graças ao seu auto-esforço.
Mas se 89 % julgam que há muito machismo no Brasil, só 22 % consideram-se total ou parcialmente feministas. Este índice cai inclusive com a escolarização. Explica-se: as décadas de oitenta e noventa foram décadas duramente conservadoras do ponto de vista moral no Ocidente, com grandes reflexos na nossa cultura brasileira. Houve como que uma onda de retrocesso em relação aos tempos mais libertários e igualitários dos anos sessenta e setenta. Em parte, essa configuração se deveu a involução conservadora da Igreja Católica no período, reforçando e retirando seus dividendos do quadro geral de retrocesso. Ser feminista, neste contexto cultural, associou-se a algo negativo, ruim ou até pejorativo.
Após a primeira fase épica de sua vida, Dilma, como mulher emancipada, retomou a sua vida pessoal em compasso com a sua vida profissional e pública, como fazem hoje as dezenas de milhões de mulheres brasileiras. A sua vida após o cárcere faz parte, então, desta “expansão da identidade feminina” na sociedade brasileira, que a pesquisa da Fundação Perseu Abramo demonstrou muito bem. Mas a cultura pública desta expansão da identidade feminina, isto é, uma cultura real e cotidianamente experimentada de emancipação das mulheres, com suas histórias centenárias, suas gramáticas, seus motivos, seus valores, seus personagens, seus argumentos e profunda beleza, não está ainda composta ou estabelecida na cena pública brasileira. Até mesmo a universidade brasileira, de norte a sul, leste a oeste, com toda a sua inteligência consolidada, apenas balbucia em seus currículos e programas de ensino, o feminismo.
É impressionante como a propaganda de Serra abusou desta falha democrática da cultura brasileira: caluniando de ser contra a vida aquela cultura das mulheres que exige o direito de decidir sobre o seu próprio corpo, proclamando a sua evidente limitação para ser governante do Brasil, lançando todo tipo de suspeições sobre a personalidade das mulheres emancipadas do Brasil. Ao fazer isto, mobilizava milenares, ancestrais, retrógrados estereótipos sobre as mulheres inscritos numa cultura tradicional Ocidental e em centenários arquétipos patriarcais formados e ainda preservados na cultura brasileira.
O segundo momento efetivamente épico de Dilma foi enfrentar não o torturador, mas o caluniador. Sua primeira sobrevivência foi em nome da liberdade; a sua segunda vitória será em nome da dignidade de todas as mulheres livres do Brasil.
Mulher cidadã
“Se as mulheres podem ir ao cadafalso, por que não podem também ir à tribuna?”, perguntou Olympe de Gouges, a redatora da esquecida Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã durante a revolução francesa e, afinal, guilhotinada . Por que esta mulher que foi ao cárcere pelo fundamento da democracia em nosso país, dos direitos fundamentais da liberdade, não pode agora ir agora à presidência da República?
Qual é hoje, afinal, o lugar das mulheres nas tribunas da democracia brasileira? É, sem dúvida, um lugar menor. Não nos referimos às eleitoras, já que estas, paradoxalmente, são maioria, nos referimos aqui às mulheres titulares de cargos públicos, as parlamentares ou aquelas no executivo. Há uma brutal subrepresentação, que não pode deixar de ter repercussão na agenda política do país, em seus costumes, em seus regulamentos e procedimentos, porque diz de uma déficit, de uma falha no processo de consolidação da democracia brasileira. Para gerar o seu filho, a deputada federal pelo PC do B, Jandira Feneghali foi instada a obter licença por doença porque não havia no Regulamento da Câmara Federal a figura da licença maternidade!
Dilma eleita presidente descortina uma nova história que começa na relação das mulheres com a política institucional no Brasil, que teve início há tempos com os movimentos sufragistas liderados nos inícios do século XX com Bertha Lutz. É apenas o começo de um amplo movimento político e social pela paridade e a justiça na representação – um direito devido as mulheres brasileiras – que certamente ganhará maior profundidade nos próximos anos. E, sem partilhar de nenhuma presunção sobre a natureza das mulheres, se poderá dizer que outra será a agenda, outra devera ser a relação dos temas públicos e privados, outra a linguagem da democracia brasileira em formação. Pois é, finalmente, a figura plena da mulher cidadã política que está tardiamente se formando entre nós.
No momento mais lírico de sua nova jornada épica, Dilma Roussef, na Convenção Nacional do PT, citou o verso de Drummond “Teus ombros suportam o mundo/ e ele não pesa mais que a mão de uma criança”, para lembrar que o seu reencontro com a vida após a experiência do cárcere foi quando sentiu em seu ombro, pela primeira vez, a mão da sua filha recém nascida. Será que, como imaginou Chico Buarque em uma das suas muitas canções inesquecíveis, virá, com Dilma, enfim, o “tempo das delicadezas”?
Juarez Guimarães é professor de ciência Política da UFMG e autor de “a esperança crítica” ( Editora Scriptum, 2008). Marlise Matos é professora do Departamento de Ciência Polaítica da UFMG e autora de “Reivenções do vínculo amoroso” ( Editora da UFMG/Iuperj, 2000)
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