E eis que voltamos à discussão do aborto como elemento pretensamente definidor de um processo eleitoral. E aqui me lembro de que, poucos dias antes das eleições do primeiro turno, um conhecido comentarista político de um jornal aqui do Rio dizia, em tom de lamento, que a oposição ao Governo Lula não tinha conseguido “produzir novos fatos” capazes de alterar o quadro sucessório.
Penso que o tema “aborto” se enquadra aí. Trata-se de um assunto requentado, artificialmente requentado, para fazer crer a alguns incautos que é isso que está em jogo nessas eleições. Típica inserção promovida pelo que aqui na internet se convencionou chamar de PIG (Partido da Imprensa Golpista).
Mas é claro que o foco dessa eleição, nem de leve, deve passar por aí. O que se decide no dia 31 é se se quer ou não eleger um projeto político que se fundamenta na continuidade e no aprofundamento das mudanças sociais promovidas pelo atual Governo e que estão trazendo a dignidade que faltava aos lares de milhões de brasileiros.
Em um processo assim, não deve haver lugar para derivações desse gênero: o aborto e sua legalização é para ser discutido e equacionado em outra esfera, que não a da política. Não pode ser elencado como razão de voto. O Estado é laico e deve continuar assim. Não tem nem deve ter “predileções” religiosas. Não segue nem deve seguir ritos e mitos de qualquer igreja.
Recordo-me que, há muitos anos (e, claro, guardadas as proporções), um outro tema, caro à igreja católica, motivava debates acalorados. Era o divórcio que, combatido pelo Vaticano, andou elegendo aqui, na época, muita gente a favor e muita gente contra. Afinal, dizia-se naquele momento, “o que Deus uniu só Deus pode desunir”. Era uma posição retrógrada, como outras tantas da Igreja, e não resistiu. O divórcio, hoje, é instituição que rivaliza com o casamento. E não se veem mais – seria até ridículo – autoridades religiosas, maiores ou menores, fazendo campanha contra o candidato X ou Y por ser divorciado ou defender o divórcio. Deixou de ser um dividendo político, porque a vontade popular se impôs e a realidade consagrou a prática, que deu status de direito a milhares (milhões?) de situações de fato.
O Estado brasileiro é laico. E, fora do Estado, se é verdade que somos um país católico, não é menos verdadeiro que esse catolicismo divide espaço com diversas outras religiões, seitas ou o que se quiser nomear.Isso para não falar de uma certa religiosidade de fachada, de conveniência, para efeito de recenseamento.
A legalização ou não do aborto não pode ser usada como moeda de troca em um processo eleitoral. Se a polarização partidária aceita colocar isso na mesa, só posso lamentar, nunca concordar. Não concordo nem como estratégia, porque esse é o jogo que o PIG quer ver jogado.
As Igrejas, de uma forma geral, deveriam estar hoje preocupadas com outros aspectos que ameaçam a sua credibilidade como instituições. Uma, para citar um exemplo, deveria estar preocupada com os seus vergonhosos e recorrentes casos de pedofilia, que degradam o ser humano; outra com a mistura iguamente degradante entre as coisas da fé e do dinheiro, iludindo a boa fé dos crentes; e assim vai.
É a consciência das pessoas que deve levar ou não à efetivação do aborto. Não o permitir legalmente, sabemos todos, é uma hipocrisia. Em nossa sociedade, ele existe, legalizado ou não, e a não legalização penaliza mais ainda (como sempre) as mulheres pobres ou pouco instruídas que, sem recursos ou informação, ficam à mercê do curandeirismo e de inadequadas soluções domésticas, pondo em risco a própria vida. Porque as senhoras da sociedade, essas sempre saberão muito bem onde encontrar caras clínicas de excelência.
O pensamento religioso alega que só Deus, que dá a vida, pode tirá-la. Não sei por que razão, estou pensando agora nas Cruzadas, na Inquisição, em certas alianças históricas de autoridades religiosas com regimes beligerantes e assassinos, ao longo do tempo... Tudo isso é uma grande falácia.
Acredito, assim, que é pouco importante a filiação de um ou outro candidato a essa ou àquela religião (ou a religião alguma) e o respectivo posicionamento quanto ao aborto. Se uma coisa dessas pesou nos votos a favor da Marina Silva, é uma pena para a biografia da Marina.
O que se deve esperar é que o povo saiba optar, no dia 31, entre um ideário que dá continuidade às conquistas sociais e que se opõe à perversa acumulação e concentração de renda e um movimento de retrocesso representado pelos que não reconhecem esses ganhos para a sociedade. O que se deve discutir é a manutenção ou não de um projeto político de combate objetivo às injustiças, à exclusão, à miséria e à fome que, já disse alguém, “tanto marca a alma como o rosto”. Aí sim, estaremos dando um passo bem expressivo no sentido de garantir, com ações políticas, o verdadeiro direito à vida.
Rodolpho Motta LimaAdvogado formado pela UFRJ-RJ (antiga Universidade de Brasil) e professor de Língua Portuguesa do Rio de Janeiro, formado pela UERJ , com atividade em diversas instituições do Rio de Janeiro. Com militância política nos anos da ditadura, particularmente no movimento estudantil. Funcionário aposentado do Banco do Brasil Direto da Redação.
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