São Paulo – Qualquer que sejam os governos a emergir da movimentação nos países árabes, Estados Unidos e Israel já foram derrotados. Lejeune Mirhan, sociólogo e integrante da Academia de Altos Estudos Ibero-Árabes de Lisboa, acredita que nenhum presidente das nações do Norte da África e do Oriente Médio será tão subserviente aos interesses de Washington quanto os que estão em decadência e queda neste momento.
Em entrevista à Rede Brasil Atual, ele pontua que o Brasil acertou ao se abster na votação do Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU) que autorizou uma ação aérea militar contra a Líbia. Mirhan considera mentirosa a versão dos Estados Unidos de que conseguem promover ataques cirúrgicos que poupam a vida de civis – a prova são as mortes ocorridas desde sábado (19), quando EUA, França, Grã Bretanha, Itália e Canadá iniciaram os bombardeios em Benghazi e Trípoli.
Confira a seguir os principais trechos da conversa.
RBA - Podemos detectar raízes em comum para essa movimentação nos países árabes?
Sim, a raiz em comum é o massacre nos últimos 30 anos, massacre político, ideológico, governos completamente comprometidos com os EUA, aliados de Washington e Israel, e mais recentemente a aplicação do modelo neoliberal, que chegou tarde lá, há 15 ou 20 anos no máximo. Isso provocou o aumento da miséria nos países árabes. São as condições objetivas para que a revolução tivesse seu estopim. Repressão política, são governos traidores do ideal nacionalista e patriótico árabe, e essa crise econômica pela aplicação das ideias neoliberais.
RBA - Já podemos dizer que os EUA saíram perdendo dessa situação?
Saíram perdendo, sem dúvida nenhuma. É claro que a condução ainda está em disputa. Uma das polêmicas é se aquilo é uma revolta ou uma revolução. Sou um dos estudiosos que acham que há uma revolução em curso, cuja liderança ainda está está em disputa.
E com quem disputamos a liderança do movimento árabe revolucionário? Com a grande potência do imperialismo hoje, os EUA. Eles também disputam essa liderança. Você pode resumir em duas situações: os países que são amigos dos EUA, eles fazem de tudo para que os governos não caiam, e os países que não são amigos ou têm contradições, como é o caso da Líbia, eles vão tentar derrubar.
Qualquer que seja o governo que vai emergir desse processo, nunca mais será igual ao que já foram esses que caíram. São governos que podem até não romper os acordos com os EUA e Israel, mas não serão subservientes da forma que eram. Nós então fazemos de tudo para que o processo seja mais avançado, mas ainda não está claro o rumo.
RBA - No Bahrein, tanto os EUA quanto parte da imprensa não parecem dar tanta atenção. Por que?
A imprensa de um modo geral esconde, você vê que a Arábia Saudita invadiu o Bahrein, atravessou a fronteira e ocupou o país. Isso é uma invasão, mas não usam esse termo. O Bahrein tem uma característica, é um protetorado, uma monarquia absolutista de 800 mil habitantes, não chega a um milhão, dos quais nascidos no país são 160 mil. Então é um país pequeno demais, é uma ilhota na ponta do Golfo.
Nessa pontinha está estacionada a 5a. Frota dos EUA, então é um país estratégico, vizinho da Arábia Saudita, um país poderoso, o maior produtor de petróleo, o maior exportador para os EUA, que dependem do petróleo saudita. Se cai o Bahrein fica em dificuldade a 5a. Frota, o novo governo pode dizer “olha, vocês não vão mais ficar no meu país”. Sem falar que a maioria do povo do país é xiita e o governo é sunita, como na Arábia Saudita. E aí eles dizem que o Irã atravessaria o Golfo e colocaria um pé no lado de cá que é toda a região árabe. Isso apavora o imperialismo norte-americano, eles não vão dar cobertura a isso. e eles vão fazer tudo para que o monarca Al Khalifa não seja derrubado.
RBA - Como você viu a resolução no Conselho de Segurança da ONU e as posições de Brasil, Rússia e China?
De um modo geral foi uma surpresa, não estava nem na pauta, foi uma surpresa muito grande. De qualquer forma foi uma resolução que tem muita dubiedade. Ela veda qualquer ocupação territorial por desembarque de tropas, é a parte menos ruim. Agora, ela autoriza a exclusão aérea, que é quase impossível de ser feita sem massacrar civis. Não tem bombardeio cirúrgico, que eles divulgam nos últimos 20 anos, não existe isso.
E depois que o bombardeio começou, no sábado (19), uma parte das potências europeias, imperiais e tal se dividiram. A Rússia e a China meio que recuaram, há uma chiadeira em vários países, o próprio Brasil pediu o cessar-fogo. A posição brasileira foi excepcionalmente correta, foi impecável. Apoiar não daria, porque a solução não tem que ser militar, a ONU não pode ser instrumento de aplicação da política imperialista dos EUA no mundo. Essa é a posição da diplomacia brasileira. O Brasil teve uma grande vitória, uma política justa, pra mostrar que o caminho tem que ser o do diálogo, da diplomacia, da soberania do país, não aceita uma solução militar. Infelizmente não conseguimos uma vitória, mas foi extremamente positivo.
RBA - Rússia e China, depois do começo dos ataques, parece que se arrependeram.
Se arrependeram. O Putin deu uma declaração dura contra, inclusive mencionando o termo cruzada. E na verdade é mesmo, é o terceiro país islâmico que está sendo bombardeado pelos EUA, um país cristão, nos últimos 9 anos. O Afeganistão está ocupado, o Paquistão praticamente ocupado, o Iraque ocupado e agora o ataque, a agressão à Líbia. Isso é muito ruim, o sentimento antiamericano vai proliferar. A minha análise é que cresce o sentimento antiamericano no mundo islâmico e particularmente no mundo árabe.
RBA - Isso pode aumentar uma frente de resistência a favor de Kadafi?
Na Líbia não tenho certeza, temos que ver como vai evoluir. Mas no mundo árabe de um modo geral, eu acho que essa agressão está fazendo crescer o sentimento pra derrotar esses monarcas absolutistas e essas ditaduras, como o Iêmen, que deve cair rapidamente. A Arábia Saudita deve ser a última, porque lá estão em jogo muitos interesses, 20% do petróleo no mundo, e os árabes como um todo têm 50%, então precisa controlar aquele petróleo, não é pouca coisa.
RBA - Uma intervenção externa acaba melhorando a situação para o Irã?
Uma das minhas conclusões é que o Irã é o grande vitorioso. O Irã corria o risco de ser atacado a qualquer momento por Israel para bombardear as usinas de enriquecimento de urânio que estão dentro dos padrões científicos e medicinais, normais, energéticos. Esse programa não visa fabricar a bomba. Para criar um inimigo artificial no mundo árabe, Israel falava que o grande inimigo era o Irã, que deveria ser atacado. Então o Irã poderia ser atacado a qualquer momento, estava muito isolado, o discurso bélico anti-Irã era muito forte e hoje não se ouve mais falar.
É bom registrar que os fundamentalistas muçulmanos perderam. Ninguém defende o estado islâmico na região, nem o Irã está fazendo isso. O Irã respeita, o Hezbollah não defende, o Hamas está modificando sua posição na Palestina sobre o Estado islâmico. Por que eles foram derrotados? Porque eles pregavam duas coisas que não se comprovaram. A primeira é o Estado islâmico, que não foi alternativa, e o segundo é a violência em qualquer região, ninguém defende isso.
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