A Argentina viveu na última quarta-feira (24/03) o 35º aniversário do golpe de Estado que deu início a uma das ditaduras mais brutais da América Latina. Estima-se que entre 8.691 e até 30 mil pessoas tenham sido assassinadas ou desaparecidas pelo regime militar entre março de 1976 e dezembro de 1983. A cifra verdadeira talvez nunca seja conhecida.
Por João Paulo Charleaux, em Opera Mundi
Mesmo de luto, os argentinos tiveram do que se orgulhar – 35 anos após o golpe, 196 criminosos foram condenados por violações dos direitos humanos no país. O desenlace desta história dá uma lição importante ao Brasil. Aqui, a punição aos criminosos da ditadura nunca se tornou realidade.
Em 1979, cinco meses depois de assumir, o general João Figueiredo promulgou, ainda sob o governo militar, a Lei nº 6.683, que concedia, em seu Artigo 1º, anistia aos que tivessem cometido “crimes de qualquer natureza relacionados com crimes políticos ou praticados por motivação política”.
A medida respondeu a um anseio de muitos democratas, presos políticos e exilados, mas, ao mesmo tempo, varreu para debaixo do tapete os crimes de tortura, execução sumária e desaparecimento forçado cometidos por agentes do regime, além de ataques deliberados contra civis, cometidos por guerrilheiros sujeitos às obrigações impostas pelo Protocolo Adicional II de 1977 às Convenções de Genebra de 1949, aplicável no Brasil naquele momento, embora o assunto seja muito pouco comentado.
A Lei de Anistia foi uma saída de “mão dupla”, recebida pela Constituição de 1988 com uma grande dose de conveniência política, mas com base jurídica nula aos olhos do direito internacional.
Esta nulidade ficou demonstrada em dezembro do ano passado, quando a Corte Interamericana de Direitos Humanos, órgão jurídico da Organização dos Estados Americanos (OEA), condenou o Brasil pela “detenção arbitrária, tortura e desaparecimento forçado de 70 pessoas, entre membros do Partido Comunista do Brasil e camponeses da região” do Araguaia, “resultado de operações do exército brasileiro empreendidas entre 1972 e 1975”. A Corte criticou ainda a falta de informação e obstacularização imposta pelo governo brasileiro às investigações sobre o caso e, de quebra, declarou ilegal a Lei de Anistia.
A novidade poderia marcar uma guinada na forma como o Brasil negligenciava o assunto, mas, ao contrário, a decisão da Corte em nada abalou as mais altas instâncias jurídicas brasileiras. Em 29 de abril de 2010, o Supremo Tribunal Federal já havia, por sete votos a dois, confirmado a vigência da Lei de Anistia. Na ocasião, o STF também declarou improcedente a arguição da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), segundo a qual a lei protegia agentes do regime responsáveis por inúmeras violações dos direitos humanos.
Por conveniência política, o STF finge não saber que as leis de anistia não se sobrepõem ao dever dos Estados de investigar, reparar as vítimas e punir os culpados por graves violações aos direitos humanos e crimes contra a humanidade. Isso ficou demonstrado não apenas no exemplo argentino, mas também em casos como o Barrios Altos e La Cantuta, no Peru, e Almonacid Arellano, no Chile.
Além destes dois contextos, a Corte usou o exemplo de decisões anteriores semelhantes, de países que desconheceram a lei de anistia, como em El Salvador, Haiti e Uruguai. O Grupo de Trabalho Sobre Desaparecimentos Forçados ou Involuntários da Organização das Nações Unidas (ONU) diz ainda que leis de anistia como a brasileira são ilegais mesmo quando tenham sido aprovadas em referendo ou consultas populares, como ocorrido no Uruguai.
E esta não é uma especialidade latino-americana ¬¬– mesmo em Serra Leoa, país da África Ocidental imerso em guerras civis que se confundem em conflitos sucessivos e permanentes desde sua independência, ou no Camboja, onde o regime liderado por Pol Pot foi responsável pela morte de mais de dois milhões de pessoas, há a convicção de que certos crimes, quando atentam contra a humanidade, mais do que contra uma ou outra vida em particular, são imperdoáveis.
Não foi isso o que aconteceu no Brasil. Aqui, o governo pediu que a Corte “julgue improcedentes os pedidos, uma vez que está sendo construída no país uma solução, compatível com suas particularidades, para a consolidação definitiva da reconciliação nacional”. O Brasil só reconheceu a competência da Corte em 10 de dezembro de 1998 e, portanto, questionou a “retrocidade para os fatos posteriores” a essa data. Mas há um detalhe jurídico importante neste aspecto.
Os crimes de desaparecimentos constituem violações continuadas e permanentes enquanto os corpos não aparecem. Significa dizer que estes crimes estão sendo cometidos ainda hoje, a cada dia, na medida em que a ocultação do cadáver continua acontecendo. Estes crimes não podem, portanto, ser anistiados por uma lei de 1979.
“Nosso compromisso é observar a convenção, mas sem menosprezo à Carta da República, que é a Constituição Federal”, diz o ministro do STF Marco Aurélio. Ele ainda afirmou que a decisão da Corte tem eficácia apenas política, mas “não tem concretude como título judicial. Na prática, o efeito (da decisão da Corte) será nenhum, é apenas uma sinalização”.
Marco Aurélio ainda afirmou que o governo brasileiro não atuou errado ao não punir torturadores porque a Lei da Anistia foi bilateral e implica o perdão em sentido maior. “Foi a virada de página para nós avançarmos culturalmente”, avalia.
O ministro Antonio Cezar Peluso foi ainda mais contundente: “há algumas coisas que são indiscutíveis. Primeiro: a Corte Interamericana não é instância revisora do STF. Eles não têm competência nem função de rever as decisões do STF. Nossa decisão no plano interno continua tão válida quanto antes. Morreu o assunto. Se o presidente da República resolver indenizar as famílias (de mortos durante a Guerrilha do Araguaia), não há problema. Mas se abrirem um processo contra qualquer um que o STF considerou anistiado, o tribunal mata o processo na hora.”
A argumentação é tortuosa e faz parecer que o Brasil ¬– que ambiciona ser ouvido no mundo e se candidata abertamente a um assento no Conselho de Segurança da ONU – impõe uma política seletiva de adesão às suas obrigações internacionais, alternando a defesa do diálogo e do fortalecimento dos órgãos multilaterais, dos direitos humanos e dos tratados internacionais, com o que chama de suas “particularidades” domésticas, o que não deixa de reproduzir a arrogância de governos mais poderosos que, em casos recentes, jogaram no lixo o sistema das Nações Unidas em nome de um imperativo de ordem interna.
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