sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

Dilma e a arte de fazer a fisionomia de uma época





 
A Dilma tem uma inteligência estratégica que une, tanto na concepção como na prática, a Grande com a pequena política. Não é um jeito trivial, não, é uma força de ser. Tem a vocação de um pensamento nítido que não vacila no gesto. O que parece ser uma ligação da teoria com a prática: o conhecimento está irmanado com uma velha idéia grega, a do kairós, que quer dizer o senso de oportunidade. Nela há uma fraternidade dialética entre a idéia e a hora da ocasião. E o efeito deste movimento é o melhor possível – até agora, ao menos – pois a surpresa dos opositores, o aplauso dos adeptos e a indiferença dos que “não gostam e não entendem de política” se expressam numa aprovação inédita do país à presidenta.

 
Vou tratar da sua presidência de uma maneira rápida e sintética. Sei que a questão é vasta. Mas começo por colocar na roda e na pauta alguns aspectos que tenho por relevantes. Deixo para mais tarde uma melhor e mais ampla análise sobre a política da Dilma. Aproveito a sua viagem a Cuba para fazer uma pequena reflexão sobre este ano e um mês que tivemos de seu trabalho. O que se pode dizer sobre o assunto?

 
Lula e Dilma, a soma de um projeto de poder

 
A primeira coisa que gostaria de salientar é a continuação do lulismo, num agora lulismo-dilmismo. Parece incrível que as pessoas não notem este prosseguimento. E não notam. E não notam porque avaliam que a Dilma, para ser continuação do Lula, teria que ser uma cópia. Ela não é uma imitação, isso já ficou abusivamente claro. Portanto, é um continuar com qualidade própria. E quando Dilma faz algo diferente do que pensam que Lula faria, querem destacá-la dele. Esse país não está sabendo pensar. Como dizia um velho professor da direita na faculdade de Economia, “unir sem confundir” é preciso. Relacionar e diferenciar. Ver que a realidade tem uma solda e uma luz que põe os pontos do mundo no seu lugar.

 
Pois Lula e Dilma fazem parte do mesmo jogo. Um projeto de poder. Um projeto de poder nacional para transformar tanto o capitalismo financeiro e o neoliberalismo político como a condição do Brasil e da população brasileira. A estratégia da Dilma vai se fazendo, continuando e transformando a escultura de Lula, tanto na geopolítica como na geoeconomia. Não podemos deixar de salientar que com a Dilma houve um aumento de força neste projeto de poder. Juntos, Lula e Dilma, constroem um acréscimo de plasticidade na trajetória petista. Duas estrelas valem mais do que uma, tem mais céu e mais presença no combate político, tanto partidário, quanto entre nações. O lulismo se dilata, se fortalece, se adensa com o aporte da Dilma. Por isso, digo lulismo-dilmismo.


A dança da geopolítica e da geoeconomia

 
A crise do capitalismo pôs em questão o capitalismo financeiro e o neoliberalismo, e dividiu o eixo único do poder americano em dois, o novo eixo de Tio Sam e o eixo chinês, que se encontram num longo processo de constituição. Pois, na confusão do baile, a estratégia do Brasil, nesse momento, navega com algumas peculiaridades. A primeira coisa a constar é que o país tem que flutuar no jogo político, seja por causa da proximidade do comércio exterior com a China, seja porque os Estados Unidos trabalham em formas disfarçadas de protecionismo, seja porque os chineses têm ações predatórias nas relações com os outros países (África e mesmo América Latina, por exemplo), seja porque os americanos têm formas financeiras devastadoras. E por aí nós vamos.

 
O Brasil já mostrou que é um player médio no jogo internacional das nações, mas que não tem capacidade de organizar nem a geopolítica, nem a geoeconomia mundial. Dada a evolução da crise atual, aquela presença exuberante de Lula e do Brasil nos últimos anos não poderia continuar. Cabe aproveitar pequenas intervenções para marcar pontos, para segurar campos conquistados, aguardando o ressurgimento criativo no futuro para novos avanços. Trata-se, logo, de manter e reforçar a nossa posição. Assim, faz a Dilma. O discurso na ONU, a presença no G-20, a viagem à China, etc. Contudo, o horizonte da geoeconomia e da geopolítica mundial está a indicar que deve-se ir além de um reforço do estado atual do país. O salto sobre a crise passa por ordenar uma determinada região do mundo. A China arruma a Ásia e o Brasil amalgama a América do Sul, talvez a América Latina.

 
No caso brasileiro, a expansão da presença do Brasil no colorido continente sul-americano carrega um processo que projeta integrações produtivas, aduaneiras, integrações de infra-estrutura, de transporte, integrações educacionais e culturais, etc. O espaço deste itinerário adquire uma potencialidade altamente desejável e promissora. E essa flor, esse girassol, amadurecerá plenamente quando o rosto escuro do protecionismo chegar. Ele abrirá uma nova etapa da crise mundial – talvez no fim de 2012, quem sabe no decorrer de 2013. Nesse quadro, a integração regional será absolutamente decisiva para esses países. A América do Sul passa a ser, nessa paisagem, uma jogada geopolítica e uma jogada geoeconômica. Trata-se de uma oportunidade semelhante àquela que o Brasil teve por ocasião da crise dos anos trinta, só que agora num território continental. Dilma está com essa bola toda.


No campo geoeconômico, o principal norte é o futuro da economia mundial. No meu modo de ver, toda esta crise econômica serve para pautar a passagem de um padrão de acumulação de capital para outro, esse novo centrado na expansão das tecnologias de comunicação e informação, de novos materiais, das ciências médicas, etc. Essa passagem é longa e demorada, cheia de convulsões e rebuliços. Basta lembrar o que foi a crise da Grande Depressão. Portanto, temos um longo caminho a percorrer. Todavia – cabe salientar um ponto decisivo – o Brasil parece já estar neste futuro. Não pelo lado da fronteira tecnológica de vanguarda, mas pelo lado de uma certa infra-estrutura desse padrão. O Brasil vai de energia, de alimentos e de minérios. Contudo, é fundamental não ficar nessa primarização: o desenho da economia brasileira deve traçar um planejamento para a área de inovações e de tecnologia. E isso que daria ao país uma posição melhor na nova divisão internacional do trabalho.

É o curto prazo que está envolto num terreno de incertezas e de ameaças. Pois, se as contas do governo vão bem, o Brasil, como um atleta de salto triplo, se prepara – e essa é uma das preocupações da Dilma – para bloquear os efeitos da crise européia, para encarar as múltiplas facetas e repercussões do protecionismo variado, para conter o expansionismo complicado dos chineses. E, no entanto, o Brasil também não pode deixar de considerar as perspectivas de uma expansão do mercado interno. A vitamina virá de um programa de investimentos (PAC, Minha Casa, Minha Vida, por exemplo), acompanhado do consumo da classe mais necessitada, através dos gastos dos programas sociais do governo. E, como ampliação do mercado interno, pode-se apostar em tentativas de superar as questões vinculadas ao que se chama de desindustrialização da economia produtiva por causa do efeito chinês. Completa o espelho da incerteza atual os temores da repercussão da crise européia, o que Guido Mantega chama de guerra cambial, o tratamento mais consistente da taxa de juros e da atração insistente dos capitais financeiros pelo Brasil, etc.

 
A novidade estratégica de Dilma

 
Pensem os leitores, dispam seus preconceitos, e pensem mais atentamente o que Dilma está construindo no subtexto de sua presidência. De um lado, a unificação do Estado, que ela trabalha desde os tempos da Casa Civil e cujo maior êxito é a convergência do Banco Central com o governo. E de outro lado, dar uma cara nova à política, o que está se constituindo, a meu ver, como uma surpreendente novidade da área. Ousamos dizer que ela tenta mudar politicamente a política, introduzindo o campo dos valores como uma passagem de nível, como uma tarde de sol num inverno social.

 
Vou tentar explicar. A política é conflito, combate, diferença, tensão, discórdia. Perspectivas opostas, basicamente, valores distintos. Nela jogamos com a alteridade. Tudo aí se complica pois está presente a figura do outro. O outro é meu adversário, pode ser meu inimigo. O outro me escapa. Não sou capaz de fazer com que ele faça o que eu quero a não ser que ele esteja disposto a querer o mesmo. Na política contemporânea, houve o incremento de um padrão onde os valores da chantagem, da corrupção, da violência, por exemplo, predominam. O poder pelo poder. O realismo político passou a ser: se o outro não tem valores, ah! meu caro, eu também não preciso ter. Não preciso assumir valores coerentes, afirmativos, de uma cultura crítica, de um desenvolvimento social, da busca de um bem estar, da construção de um bem comum. Logo, valores coletivos, valores da dignidade, da legitimidade, da solidariedade, da liberdade, da fraternidade, da democracia. Valores para um poder criativo. Posso, pelo contrário, assumir os valores da força, da violência, da porrada, da prepotência, do ludibrio, do engano, do engodo, da burla, do exercício único do mando como o valor que interessa. Houve assim uma espécie de abolição de valores de um tipo em detrimento de outro no quadro da modernidade do jogo político.



Dilma vem articulando nos seus atos um conjunto de valores que não responde automaticamente aos atos dos adversários, ao menos, no mesmo nível deles. E isso tanto no jogo político partidário, parlamentar e ministerial como no jogo político da mundialização. Se duvidam, vejam o tema da corrupção de ministros e dos ocupantes de segundo escalão do governo. Ou a questão dos direitos humanos nos planos nacionais, como nos casos do Irã, de Cuba e dos Estados Unidos. Memorável o seu encontro com as madres de Mayo na sacada da Casa Rosada. Memorável também a resposta em Cuba sobre a questão dos direitos humanos. Todos os países cometem delitos, disse ela. O Brasil, Cuba e os Estados Unidos. Chamou a atenção para Guantánamo, que curiosamente os “defensores” dos direitos humanos não falam. Com atitudes como essas, Dilma vai compondo uma cesta de valores que passam pelas já citadas questões da corrupção e dos direitos humanos, como também pela presença das mulheres em cargos públicos de destaque, como a obstinação na erradicação da miséria, como a civilidade no trato da política. E assim, a viagem no campo dos valores vai se fazendo.Continue lendo no Sul 21.



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