Entre os dias 14 e 16 de fevereiro, realiza-se em Lisboa o XVIII Congresso Ibero-Americano de Direito Romano, promovido pela Faculdade de Direito local, sob a organização de seu diretor, o professor doutor Eduardo Vera-Cruz Pinto, contando com a presença de juristas portugueses, espanhóis e sul-americanos, dentre os quais brasileiros.
Ao contrário do que possa parecer ao leigo, o encontro que se realiza no Congresso não trata apenas de debater aspectos históricos do direito romano, mas sim da relação entre aspectos deste com temas da contemporaneidade.
Diríamos que, numa perspectiva inspirada em Foucault, procura-se entender temas do direito em sua teoria geral à luz de um método arqueológico de saber.
Não se trata apenas de “colher lições do passado” mas também de reinterpretar o passado à luz da conjuntura atual. Como disse um dos expositores na abertura do evento: “cada época tem o seu direito romano”.
O tema do evento trata de algo que aflige a todas as democracias constitucionais contemporâneas: as relações entre “Direito e Poder. Nó,s brasileiros, temos em geral o desacertado hábito de entender certos problemas universais como apenas locais, mas a questão tratada atinge nossa democracia tanto quanto as europeias, guardadas as devidas e evidentes diferenças e peculiaridades.
As relações tensas e conflitivas entre o direito e o poder político provavelmente acompanharão a historia humana ainda por muito tempo, sempre de formas e dimensões diversas de acordo com o período histórico.
Um dos expositores afirmou, corretamente, que a politica, entendida como exercício do poder estatal, se realizada sem estar submissa ao direito implicará no arbítrio e no autoritarismo; por outro lado, o direito sem a política entendida como poder transmuta em anarquia, pois as leis e normas jurídicas passariam a ser meras recomendações de condutas e não comandos coativos.
Na atualidade, o que tem preocupado juristas e cientistas políticos e dado margem a debates intensos no interior de nossas democracias é a invasão da política pelo direito, a jurisdicionalização da política e o chamado ativismo judicial.
Aqui no Brasil o tema encontra eco nas questões atravessadas por nossa democracia infante.
Recentemente nossa Suprema Corte, contrariando diversas decisões anteriores e farta doutrina produzida antes de sua decisão, houve por bem subtrair de nosso Legislativo sua competência para decidir de forma constitutiva sobre a cassação de mandatos de seus integrantes.
No plano jurídico a celeuma se estabelece na interpretação dos incisos IV, VI e paragrafo 2 do artigo 55 de nossa Constituição.
Enquanto o inciso IV do referido artigo determina que a supressão de direitos políticos, que tem como uma de suas razões a condenação criminal, gera a consequente perda do mandato do parlamentar por mera declaração da mesa da Casa Legislativa. O inciso VI e paragrafo 2 do mesmo dispositivo diz que no caso da condenação criminal transitada em julgado cabe ao plenário da Casa decidir após o devido processo com direito a ampla defesa.
Ao leigo pode aparentar um conflito entre normas. Alguns juristas de respeito usam o argumento do conflito entre normas para justificar uma decisão livre do STF sobre o tema.
Ora, em verdade o conflito é meramente aparente, para usar a expressão de Norberto Bobbio. A norma do inc IV é geral e a do inc. VI especifica, ou seja os parlamentares perdem seu mandato por mera declaração o da mesa do legislativo com direito de defesa no caso da supressão de seus direitos políticos, salvo no caso de condenação o criminal transitada em julgado, caso em que a cassação será julgada pelo plenário após processo com direito a ampla defesa.
A decisão do STF, contudo, foi por demais agressiva a todos os dispositivos invocados, pois resolveu cassar diretamente, por sua própria decisão, os mandatos dos parlamentares envolvidos no caso do mensalão, sem qualquer participação do Legislativo no processo, nem mesmo a mera declaração da mesa da Casa com direito a defesa, prevista no inciso IV referido.
Ou seja, além de invadir a competência do plenário do legislativo prevista no inciso VI e paragrafo 2 referidos, o STF suprimiu a própria competência declaratória com defesa prevista no inciso IV. Não deu vigência nem a norma especifica, que seria o correto, nem mesmo à norma geral que alguns juristas tentam usar como fundamento na defesa da decisão da Corte.
Ao não dar vigência a dispositivo expresso de nossa Constituição, atribuindo-se competência que seria, de uma forma ou de outra, do Legislativo, nossa Corte usa do direito para exercer de fato papel de iniciativa politica, revogando no caso concreto dispositivos constitucionais e os substituindo por regra de sua própria criação, conduta que atenta contra os mais comezinhos princípios de um verdadeiro Estado Democrático de Direito.
Ao Supremo cabe aplicar a Constituição interpretando-a e não inovando-a, negando vigência a dispositivos magnos expressos.
Qual a solução do problema? Como deve agir o Legislativo?
Obviamente o que se impõe no caso é a segurança jurídica. Mesmo equivocada, caso a decisão final da Corte após julgamento dos recursos cabíveis contra a infeliz decisão seja a mesma já proferida em primeiro plano, caberá ao Legislativo se submeter. A Corte Suprema tem o condão de definitividade em suas decisões. É como prevê nosso sistema jurídico-constitucional.
Em alguns países europeus, como a França, por exemplo, talvez o resultado fosse outro, por conta da forma como esses países equilibram seus poderes, com evidente superioridade do Legislativo. Não é nosso caso.
No Brasil , no conflito entre Jurisdição e Legislativo, deve prevalecer a Jurisdição. É o que estabelece nossa Constituição e a forma como construímos nossa democracia.
Que este poder maior sirva ao Judiciário como motivo de cautela e responsabilidade e não como fonte de arroubos autoritários.
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