Respondendo a um processo administrativo pela acusação de ter sido
"negligente" no andamento de "245 feitos que estavam sob sua
responsabilidade," o procurador Valtan Timbó Martins Mendes Furtado é o
mais novo candidato ao panteão de personagens desses tempos inglórios em
que a justiça tornou-se acima de tudo um grande espetáculo
No dia 8 de julho, Valtan Timbó pediu a abertura de um inquérito para
investigar as suspeitas de "tráfico de influência" de Luiz Inácio Lula
da Silva para favorecer a Odebrecht em viagens internacionais.
É bom saber que as bases reais para essa apuração dividem-se em nulas
e ridículas, como vamos explicar mais adiante. Em situação de
normalidade política, quando os direitos e garantias fundamentais são
respeitados, e toda pessoa é tratada como inocente até que se prove o
contrário, esse pedido de abertura de inquérito seria um episódio
folclórico, condenado automaticamente ao esquecimento.
Mas vivemos outros tempos, anormais, como explicou o ministro do
Supremo Marco Aurélio Mello, onde prende-se primeiro para apurar depois.
Um dos presos da carceragem de Curitiba hoje, é o executivo
Alexandrino Alencar, que estava presente num jatinho alugado pela
Odebrecht para uma viagem de Lula em 2013. Foi essa viagem que deu
origem a uma reportagem em tom de escândalo da Época sobre um "vôo
sigiloso" à República Dominicana.
O pedido de abertura de inquérito, criminal, que pode levar à perda
de liberdade em caso de condenação, é preocupante exatamente por isso.
Mostra que a vontade política de perseguir o ex-presidente atravessou
a fronteira do razoável e deixou de ser uma questão individual ou do
futuro do Partido dos Trabalhadores nas eleições de 2018.
Gostem ou não seus inimigos, Lula confunde-se com a democratização e
as conquistas de direitos da população pobre do país, a inclusão e o
progresso social.
O esforço para atingir o ex-presidente, sem uma base jurídica
consistente, representa um risco para as conquistas democráticas da
sociedade. Trinta e cinco anos depois de ter sido preso por 40 dias
durante a ditadura militar, acusado de desrespeitar a Lei de Segurança
Nacional que proibia greves, a perseguição a Lula é uma tentativa óbvia
de retrocesso político.
Começando pela má qualidade da denúncia. As bases reais para essa
investigação já tinham sido descartadas há dois meses pela procuradora
original do caso, Mirella Aguiar.
Foi ela que acabou escalada para examinar um pacote de recortes de
jornais e revistas sobre as viagens de Lula, entregue ao Ministério
Público do Distrito Federal com o título oficial de Notícia de Fato.
Claro que era possível ler insinuações cabeludíssimas naquele
papelório. Segundo a Época, citando procuradores mantidos em conveniente
anonimato, "as relações de Lula com a construtora, o banco e os chefes
de Estado podem ser enquadradas, 'a princípio', em artigos do Código
Penal. 'Considerando que as obras são custeadas, em parte, direta ou
indiretamente, por recursos do BNDES, caso se comprove que [...] Lula
também buscou interferir em atos práticos pelo presidente do mencionado
banco (Luciano Coutinho), poder-se-á, em tese, configurar o tipo penal
do artigo 332 do Código Penal (tráfico de influência)', diz trecho da
peça reproduzido."
Num despacho assinado em 18 de maio, a procuradora Mirella de Aguiar
deixou claro que o calhamaço chamado Notícia de Fato não passava de um
boato. Não continha fato algum. Resumindo suas conclusões, ela escreveu
com clareza:
"Os parcos elementos contidos nos autos -- narrativas do
representante e da imprensa desprovidos de suporte provatório suficiente
-- não autorizam a instauração de imediata investigação formal em
desfavor do representado."
Em português claro: não havia nada para se fazer com os "parcos
elementos desprovidos de suporte provatório" a não ser esquecer o
assunto. Mas o Judiciário não funciona assim -- muito menos em casos de
alta repercussão política.
Pede cautela, precaução. Adora rever tudo mais uma vez, como já
percebeu todo mundo que teve um caso na Justiça. Ninguém quer mandar
para o arquivo um caso que pode ser desenterrado como escândalo, mais
tarde.
Também há -- vamos admitir -- o fator circo.
Utilizando os meios de comunicação para amplificar a dimensão de suas
investigações e ganhar prestígio social e mesmo força política, muitos
procuradores se tornaram obrigados a honrar uma contrapartida. Precisam
dar satisfação aos deuses que os glorificam. São particularmente
sensíveis ao coro midiático, que classifica toda declaração de inocência
como prova de impunidade. Isso, de uma forma ou de outra, assegura um
ambiente político no interior da instituição, que pré-dispõe a pedir
condenações pesadas. Não vamos esquecer: foi a partir do Ministério
Público que a teoria do domínio do fato sem prova, foi introduzida na
AP 470.
É bom esclarecer que não acho que isso ocorreu com Mirella Aguiar.
Ela despachou uma denúncia que recebeu, da forma que considerou mais
adequada.
No Brasil de nossos dias, muitas denúncias até nascem de parcerias
notórias entre jornalistas e procuradores interessados nos benefícios
mútuos a partir de um escândalo. Quando se prova que não tinha o menor
fundamento, denuncia-se a "pizza". Já leu Marco Zero, de Umberto Eco?
Pode ser útil.
Tudo isso permite entender porque, no mesmo despacho em que
assinalava a falta de "suporte probatório", Mirella Aguiar tenha dado um
prazo de 90 dias para novas informações, com exigências que chamam
atenção. Chegou a pedir que a Polícia Federal -- que faz o registro de
fronteiras -- informasse todas as entradas e saídas de Lula desde que
passou a faixa para Dilma Rousseff.
O prazo para uma nova decisão estava marcado para 17 de agosto.
Quarenta dias antes, porém, num movimento que uma nota do Instituto Lula
define como "irregular, intempestivo, injustificado," o procurador
Valtan Timbó decidiu apresentar o pedido de abertura de inquérito. Não
se sabe as consequências reais dessa iniciativa. Mas seu significado é
claro. Se havia a possibilidade de Mirella ou outro procurador mandar
arquivar o caso, o que seria totalmente coerente com o primeiro
despacho, o pedido de abertura trava essa decisão. A partir de agora, as
perguntas são outras. Você sabe muito bem aonde elas podem chegar,
certo?
O ponto ridículo é investigar Lula, ex-presidente que tem um empenho
reconhecido, dentro e fora do país, para ampliar o mercado para as
empresas e produtos brasileiros no exterior. Deveria ser aplaudido e não
criticado.
Só para ficar num caso conhecido, que envolve Lula, Dilma e a
Odebrecht -- o porto de Mariel, em Cuba. Foram anos de massacre. O que
se vai dizer agora, depois que Washington e Havana reataram relações?
Quem fez papel de bobo? Quem tentou atrapalhar um investimento que
trouxe e trará benefícios econômicos e diplomáticos?
Alô, provincianos: os estadistas da globalização fazem isso todo dia
-- Bill Clinton em primeiro lugar. É normal e benéfico. Só uma visão
absurda de relações internacionais no século XXI pode enxergar que "em
princípio" essa atividade pode ser enquadrada no Código Penal. Em
princípio, meus amigos, toda pessoa é inocente até que se prove o
contrário.
A diplomacia brasileira ganhou um novo eixo no governo Lula, nos
países fora do universo desenvolvido que se tornaram prioridade
econômica direta. Fora do governo, é natural que Lula seja recebido com
simpatia e até mais do que isso. Tem credibilidade para sugerir, propor,
conversar. Não pode ser acusado de fazer uma diplomacia oportunista,
pois sempre respeitou os países menos desenvolvidos e suas populações.
Na condição inteiramente nova de ex-presidente, ele pratica uma
continuidade com as prioridades construídas em seu governo. Prega o que
fez. Como se aprende em todo curso de relações pública, o aval de uma
personalidade admirada pode ser uma imensa alavanca para bons
investimentos. A boa imagem de Lula é um trunfo para o Brasil e os
brasileiros.
A questão essencial se encontra nos " parcos elementos contidos nos
autos," que não autorizam a instauração de imediato" de investigação
formal" contra Lula, como escreveu Mirella.
Lula, antes de mais nada, é um cidadão privado. Tem todo o direito de
andar pelo mundo, dizer o que pensa, conversar, sugerir. Sua caneta não
assina contratos pelo governo, não demite funcionários nem ministros.
No mundo dos "parcos elementos", não há provas. O que se quer é
construir uma narrativa em que tudo se insinua, nada se demonstra -- e
os meios de comunicação fazem sua parte.
(Quanto a Valtan Timbó, seu passivo de 245 acusações de negligência,
em denuncia formulada pelo Conselho Nacional do Ministério Público, era
uma notícia a espera de um repórter. Ele foi citado numa reportagem do
Globo sobre um escândalo sobre licitações no Tribunal de Contas da
União. O jornal registra a "insatisfação de policiais" com o procurador
que, para eles, "demorou demais em elaborar a denúncia." Conforme o
jornal, a operação foi deflagrada em dezembro de 2004 mas apenas em
maio de 2007 foi feita a denúncia, "sem nenhum ato adicional ao trabalho
da PF." Em outro motivo de reclamação, Valtan Timbó levou nove meses
para denunciar vândalos que depredaram o Itamaraty nos protestos de
junho de 2013).
Paulo Moreira Leite
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