quinta-feira, 4 de março de 2010

Bom-senso radical

04/03/2010

Antonio Luiz Monteiro Coelho da Costa

Assim como as demais lideranças importantes do partido, a ministra Dilma Rousseff, ao ser aclamada pré-candidata, fez no IV Congresso do PT um discurso em defesa da continuidade, como seria de esperar de quem pretende beneficiar-se da altíssima aprovação popular ao atual governo. Com mais ênfase na prioridade para as camadas populares, distribuição de renda, políticas sociais e também do “trabalho importante que o nosso governo vem fazendo ao longo desses sete anos para ter um Estado forte”, em contraste com o anterior, no qual o papel do Estado “vinha sendo desmantelado”, e que, se a população não tivesse impedido, promoveria o “desmonte da Petrobras, da Caixa Econômica, do Banco do Nordeste e do Banco do Brasil”.

Os grandes jornais parecem, porém, ter prestado atenção a algum outro discurso que não o dos petistas. As três manchetes usaram o mesmo termo: “PT apresenta programa mais radical para Dilma” (Folha), “Petistas decidem radicalizar projeto de governo de Dilma” (Estadão), “PT aprova programa radical para a campanha de Dilma” (O Globo). Curiosamente, o título do editorial do jornal econômico Valor – cuja linha tende a refletir mais do que a elite realmente pensa, e menos do que gostaria que a classe média pensasse – foi “Programa de ‘esquerda’ do PT não é para valer”.

Em nenhum dos casos o rótulo de “radical” parecia dirigir-se à política social ou de direitos humanos, ou à repetição de antigas propostas de taxar as grandes fortunas e ampliar a reforma agrária. O “esquerdismo” consistiria na ênfase no papel do Estado, que a mídia quis traduzir como estatização – mero fantasma, pois isso não esteve em pauta.

Mesmo em períodos de triunfalismo liberal, como os anos 90, isso seria tolice, por mais que repetida com frequência. Em 2010 – pouco mais de um ano após o mercado financeiro ser resgatado pela intervenção estatal maciça dos principais governos capitalistas de todo o mundo –, interpretar uma defesa do papel do Estado na economia como “radicalização esquerdista” é um sinal espantoso de desconexão com a realidade, mais do que de mero atraso.

No Brasil, a discussão sobre o papel do Estado na economia é pelo menos tão velha quanto a República, mas foi mais claramente explicitada no clássico debate de 1945 entre o professor livre-cambista (hoje seria “neoliberal”) Eugênio Gudin e o empresário intervencionista (palavra mais tarde substituída por “desenvolvimentista”) Roberto Simonsen.

Simonsen, obviamente, nada tinha de radical ou esquerdista. Industrial, tratava de promover o desenvolvimento capitalista associado ao crescimento do mercado interno e a uma política social contrarrevolucionária, inspirada no papa Leão XIII, para reforçar o liberalismo, expandir investimentos, descentralizar a indústria e reduzir a pobreza.

Para Gudin, qualquer planejamento ou intervenção do Estado seria um passo para o “totalitarismo comunista”. Se o capital privado não queria ou não podia promover grandes projetos industriais por si só, estes não deveriam existir. Organizar a participação dos empresários em projetos estatais como a CSN – que não interessava ao capital estrangeiro e para a qual o nacional não tinha recursos – era um erro. “A agricultura é a única atividade econômica para a qual demonstramos capacidade.” Se Deus quisesse que os brasileiros tivessem indústria, teria lhes dado asas, digamos.

Apesar de Gudin ser tido como sumidade em teoria econômica, venceu o pragmatismo de Simonsen. Tanto os governos democráticos do pós-guerra quanto a ditadura pós-1964 foram “intervencionistas” e os ditadores militares de direita, mais que os “populistas”. A CSN tornou-se a base de uma indústria siderúrgica e metamecânica que se transformou no alicerce do crescimento econômico e do comércio exterior. Com a Embraer, os brasileiros até criaram asas e fizeram delas um dos itens mais importantes de sua pauta de exportações.

Mesmo a hoje demonizada reserva de mercado para a informática criou condições antes inexistentes para o desenvolvimento e cumpriu boa parte do seu objetivo de reduzir a dependência externa, criar empregos qualificados e incentivar a capacitação e o desenvolvimento tecnológico de informática local. A Itautec, produto da reserva, continua um dos maiores fabricantes brasileiros. A estatal Cobra continua ativa, a serviço do Banco do Brasil. Transnacionais como a IBM passaram a ter divisões de desenvolvimento no País.

Nem todo projeto estatal foi bem-sucedido. Fracassou boa parte das indústrias de bens de capital, semicondutores e química fina promovidas pela ditadura. Por diversos motivos: previsões de crescimento econômico exageradas, erro de avaliação das tendências tecnológicas, mudança súbita de política ou do ambiente internacional. Erros que investidores privados em ambiente desregulamentado também cometem, às vezes em massa – haja vista a bolha das pontocom nos anos 90 e imobiliária dos anos 2000 – e provocando prejuízos sociais ainda maiores.

Por outro lado, muitos são os projetos essenciais para a modernização e o desenvolvimento que não teriam existido se não fossem executados ou induzidos pelo Estado. Não só no Brasil, como na Alemanha, Japão, China, Coreia do Sul e em muitos outros que hoje se contam entre os mais desenvolvidos ou mais promissores entre os países periféricos.

Mesmo em países como os EUA, onde não há tradição do Estado como executor (salvo em setores restritos), é tradicional a intervenção do Estado como indutor (estimulando e incentivando certos setores, como a alta tecnologia e a indústria bélica), protetor (colocando certos setores a salvo da concorrência estrangeira), regulador (impondo normas de concorrência, segurança e ambientais) e, como se viu à farta em 2008 e 2009, salvador.

Onde o setor privado é menor, mais frágil e menos capacitado – ou depende de empresas estrangeiras que não atuam a contento por priorizar investimentos na matriz em outros países –, é natural que o Estado desempenhe um papel maior e mais direto. No Brasil, foi o caso do transporte ferroviário, da energia, do petróleo, da indústria pesada e das telecomunicações.

É fácil esquecer que nos anos 60, quando a telefonia era essencialmente privada e de capital estrangeiro, muitos escritórios de grandes cidades precisavam designar um office boy para esperar o telefone dar linha, o que podia demorar até meia hora, e o serviço de eletricidade era igualmente precário em grande parte do País.

Apesar de as propostas de estatização dos setores de telecomunicações e eletricidade terem sido um dos pretextos para acusar Jango de tendências comunistas, a própria ditadura se viu forçada a concretizá-la para melhorar a qualidade dos serviços e desfazer esse gargalo, que, além de impopular, prejudicava o desenvolvimento de outros setores privados. Ninguém negou, na época, que a estatização havia melhorado a qualidade dos serviços.

Entretanto, a ditadura, ao endividar-se em excesso e perder o controle sobre a inflação, usou estatais para captar créditos externos dos quais não tinham real- necessidade e, ao mesmo tempo, manteve seus preços e tarifas artificialmente baixos para frear a inflação e a insatisfação popular. As contas telefônicas, por exemplo, eram baixas pelos padrões internacionais – mas para se conseguir a instalação de uma linha era preciso entrar num plano de expansão, tornar-se acionista da Telebrás e esperar meses ou anos, ou então pagar muito caro por uma linha no mercado paralelo.

A política foi continuada no governo Sarney e agravada pela paralisação de investimentos no período pré-privatização, gerando sucateamento e risco de atraso tecnológico.

Enquanto o capitalismo brasileiro crescera e se capacitara desde os anos 60, o Estado se sobrecarregava e perdia condições de investir em infraestrutura econômica e social. Podia ser racional retirar-se de alguns setores. Mas isso foi feito sem preocupação ou planejamento sério de um novo papel concreto do Estado na economia e do Brasil no mundo. Por trás de discursos abstratos nos quais se misturavam a “terceira via” social-liberal de Tony Blair ao dogmatismo neoliberal herdeiro de Mises, Hayek e Gudin, setores estratégicos foram confiados, com ajuda de farto financiamento do BNDES, a empresários brasileiros inexperientes e transnacionais interessadas em lucros fáceis, em operações nas quais se fez valer a habilidade no tráfico de influência e laços pessoais com expoentes do governo FHC.

No setor elétrico, a privatização foi rea-lizada, “na marra”, sem regulamentação adequada e a quem pagasse mais, sem planos coerentes para investimentos futuros, qualidade dos serviços ou desenvolvimento da matriz energética. O governo facilitou o reajuste de tarifas e forneceu, por meio do BNDES, 5 bilhões de reais dos 28 bilhões usados na compra das empresas.

O resultado foi um caos que culminou no apagão de 2001, levou a reajustes acima dos contratados, custou caro a todos os brasileiros: a tarifa brasileira, de uma das mais baixas, tornou-se uma das mais altas do mundo.

O governador Itamar Franco foi ridicula-rizado por se opor à privatização da Cemig, que conseguiu bloquear e reverter na Justiça. Hoje a estatal continua lucrativa e está adquirindo várias das privatizadas – notadamente a Light do Rio, que chegou à beira de falir nas mãos da transnacional EDF.

No setor de gás, as privatizações aumentaram tarifas e proporcionaram taxas de lucro altíssimas em regime de monopólio, sem vantagens para os consumidores. A privatização ferroviária foi um desastre idem, que resultou no fim dos trens de passageiros e acumulou gargalos no transporte de carga na maior parte do País. A petroquímica foi privatizada sob um modelo inviável, pulverizado, separado do setor petrolífero e em crescente descompasso com os investimentos em refinarias.

Tucanos gostam de citar as telecomunicações como caso de sucesso. Mas cerca de metade dos recursos que compraram as fatias da ex-Telebrás veio do Estado, via BNDES ou fundos de pensão. E o setor cresceu não porque os novos gestores fossem mais competentes, mas por terem carta-branca para reajustar tarifas (e demitir) em um momento no qual uma revolução tecnológica permitia realizar investimentos e prestar serviços a custo muito menor para o empresário. Mesmo assim, o setor é campeão de queixas de consumidores.

Luiz Carlos Mendonça de Barros, Gustavo Franco e lideranças do então PFL defenderam abertamente, em vários momentos, a privatização de tudo que restava nas mãos do governo federal. Embora FHC tivesse prometido, na sua primeira eleição, não privatizar a Petrobras, era claro na imprensa especializada e nos cadernos de economia dos anos de 1996 a 1998 que era uma questão de tempo: estava sendo preparada para isso, à espera do momento politicamente oportuno. Mas a crise cambial veio antes.

Questões estratégicas e tecnológicas à parte, devia ser óbvio que vender estatais (e empresas privadas nacionais) a transnacionais deterioraria o balanço de pagamentos a médio prazo, como preveniam vozes dentro do próprio governo FHC, como Bresser-Pereira e Rubens Ricupero. Aumentaram as remessas de lucro para o exterior e diminuiu o interesse em exportação.

Para o então senador Jorge Bornhausen, em dezembro de 1998, “ou privatiza tudo, ou libera o câmbio, ou roda a guitarra (emite dinheiro)”, e vender a Petrobras e o BB a transnacionais seria a saída, pois traria recursos externos e adiaria desvalorização do real. Citava como exemplo a Argentina: “Privatizaram tudo e ultrapassaram sem problemas as crises da Ásia, da Rússia e do Japão”. Era tarde demais, mesmo que não fosse tolice. O fim do populismo cambial era questão de dias. Na Argentina, a situação era ainda mais aflitiva e o leitor de CartaCapital se lembrará de como a experiência neoliberal acabou.

Sorte do país. Com a continuação da Petrobras nas mãos do Estado, a prospecção e produção de petróleo continuou a crescer e novas tecnologias a serem desenvolvidas, até garantir a autossuficiência e descobrir as vastas reservas do pré-sal. Uma transnacional teria pouco interesse em pesquisar no Brasil – muito menos em criar capacitação tecnológica local – quando podia tirar petróleo a custo mais baixo em outras partes do mundo.

Na Argentina, a privatização da YPF (parcial a partir de 1991) foi completada em 1998. Desde então, a produção vem caindo. Praticamente não houve descobertas desde o início dos anos 90, embora nesse país, por razões geo-lógicas, o custo de prospecção e produção seja inferior ao brasileiro.

Os bancos que permaneceram sob controle federal também tiveram um papel decisivo para sustentar e reativar o mercado de crédito abalado pela crise internacional, quando bancos privados tão sólidos e supostamente bem geridos quanto o Unibanco tiveram de ser comprados (estatizado pelo BB, no caso do Votorantim) e os demais, mesmo socorridos, relutaram em voltar a emprestar.

Neste momento em que o Estado recupe-ra credibilidade e poder de investimento, enquanto o mercado financeiro privado está globalmente desarranjado, é racional que esses problemas voltem a ser enfrentados por meio do intervencionismo, que em certos casos pode significar estatização.
Na área de energia, o colapso está sendo adiado por investimentos estatais. Em vez de aumentar ainda mais as tarifas e minar a competitividade internacional do capitalismo brasileiro para tentar convencer o setor privado a iniciar ou continuar a construção de usinas que não lhe interessam, a Eletrobrás volta a assumir esses projetos.

Nas telecomunicações, quer-se reativar a Telebrás para realizar investimentos que o setor privado não pode ou não quer fazer, uma vez que as deficiências da banda larga criam um gargalo tão grave para o capitalismo de hoje quanto era a má qualidade da telefonia nos anos 60.

No setor de petróleo, a Petrobras adquire participações na petroquímica, uma verticalização inteiramente racional nesse setor – e a PetroSal deve assumir a gestão de reservas vastas e imprevistas que pedem um planejamento demasiado estratégico para ser submetido aos interesses de acionistas privados. É especialmente válida nesse caso a lógica geral da intervenção do Estado na economia, que pode ser resumida adaptando-se a tirada de Clemenceau originalmente endereçada aos militares: a economia é importante demais para ser deixada aos empresários. Para não falar dos economistas. CartaCapital

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