Luiz Antonio Cintra
Na disputa comercial com Washington, a mídia nacional prefere se alinhar aos interesses dos EUA
Que a mídia brasileira integra uma cruzada para desqualificar a diplomacia do governo Lula, mesmo quando eventuais méritos não podem ser atribuídos apenas ao comando - do chanceler Celso Amorim, é sabido. Mas no episódio das retaliações aos Estados Unidos autorizadas pela Organização Mundial do Comércio a turma se esbalda. Nem a imprensa do Grande Irmão do Norte defenderia tão bem os interesses de Washington. O Jornal Nacional, da Rede Globo, evocou o medo da inflação e o risco de alta no preço dos pães franceses. Um texto no UOL, portal do Grupo Folha, viu uma ameaça de alta na taxa básica de juros caso o Brasil insista em retaliar os produtos dos EUA. É uma amostra de até onde pode chegar a sanha de uma mídia que faz oposição aberta disfarçada de postura crítica.
Analistas com distanciamento e cérebro têm aplaudido a iniciativa de Brasília de negociar com o porrete na mão, à moda americana e conforme autorizou a OMC. O Brasil ameaça aumentar impostos de importação de 102 produtos made in USA, de automóveis a têxteis. Entre os automóveis, as marcas Chrysler e BMW seriam as mais afetadas, segundo uma associação de importadores.
Quando o Tio Sam defende o mercado doméstico ou tenta abocanhar praças estrangeiras – no caso do algodão, 40% das exportações globais são dos EUA –, é costume entrar em ação a mão nem sempre visível dos lobbies setoriais e regionais. Estes são capazes de criar punições aos seus parceiros comerciais, mesmo na ausência de base jurídica. Em 1989, os EUA retaliaram o Brasil por supostamente desrespeitar patentes farmacêuticas, apesar de o acordo internacional vigente, o Acordo Geral de Tarifas e Comércio (Gatt), precursor da OMC, não tratar do tema. No imbróglio do algodão, assiste-se a outra modalidade de postura: atropela-se o acordo internacional cujos efeitos vão contra os interesses do país.
“Na disputa que envolveu as patentes farmacêuticas, cheguei a ser chamado de pirata pelo representante dos EUA em uma sessão de debates. E eles partiram para as retaliações cruzadas, mesmo sem amparo legal. Atingiram itens de grande dinamismo na pauta brasileira de exportação, como o papel e a celulose. Rebati dizendo que os piratas em geral tinham nomes como Cavendish ou Drake, que não soavam exatamente ibéricos”, recorda com ironia o ex-ministro da Fazenda Rubens Ricupero, na ocasião embaixador brasileiro no Gatt. “Cheguei a pedir um painel sobre o caso, mas os EUA conseguiram bloquear.” A ofensiva dos EUA deu resultados: o então presidente Fernando Collor aprovou no Congresso as medidas exigidas pelos EUA.
Vinte anos depois, o xadrez geopolítico mudou – e no sentido de favorecer o Brasil, conforme indicam as pressões que o governo Barack Obama e o Congresso americano têm sofrido nas últimas semanas, diante do risco representado pelas reações dos países importadores de produtos americanos. Como um gesto de boa vontade, esteve no Brasil o secretário de Comércio, Garry Locke, que tratou do assunto, embora não seja a autoridade máxima neste caso, de responsabilidade do Representante Comercial dos EUA (USTR, em inglês).
Em Brasília, Locke reconheceu a inquestionável vitória jurídica brasileira e garantiu que em breve sairá a proposta para contornar o impasse. Em Wash-ington, Ron Kirk, titular do USTR, afirmou acreditar em um acordo. As barreiras ao etanol brasileiro parecem estar na mesa de negociação. “Se não chegarmos a um acordo com o Brasil, teremos de persuadir os congressistas a mudar o programa do algodão, como querem os brasileiros”, disse Kirk em um discurso no National Press Club.
Quem acompanha de perto a disputa sustenta que a proposta terá de ser realmente graúda, pois a OMC calculou a perda anual do Brasil em 829 milhões de dólares, relativos às exportações de algodão perdidas para a concorrência desleal dos EUA. Esse também é o montante limite para a retaliação brasileira. Até aqui a taxação a mais se concentrou em produtos industrializados, no valor potencial de pouco mais de 500 milhões de dólares. Em alguns dias, ficará pronta a lista de serviços e patentes alvejados.
A estratégia brasileira mirou um amplo leque de cadeias produtivas, com o objetivo de aumentar a repercussão e o desgaste das autoridades e do Congresso americanos. “Caso os EUA persistam em não cumprir a decisão da OMC, eles poderão perder vários compromissos assumidos com o organismo multilateral que hoje os beneficia. O governo brasileiro insiste na tese de que o descumprimento de uma decisão da OMC significará a desvalorização de todo o sistema”, afirma o ministro Carlos Márcio Cozendey, chefe do Departamento Econômico do Ministério das Relações Exteriores. “Sabemos que a retaliação é difícil e não interessa a ninguém, por isso tomamos o maior cuidado nos produtos escolhidos e estamos negociando. No caso do trigo, sabemos que a Argentina, o Canadá e a Rússia são alternativas viáveis que terão condições de garantir o fornecimento do mercado. Todos os produtos incluídos na lista foram analisados a partir dessa perspectiva.” Tradução: donas de casa, não se preocupem, não haverá escassez ou alta no preço dos pãezinhos.
Em outubro de 2002, quando o processo foi protocolado em Genebra, onde se localiza a sede da OMC, não havia no governo brasileiro consenso a respeito do melhor caminho a seguir, comenta Pedro de Camargo Neto, hoje presidente da Associação Brasileira da Indústria Produtora e Exportadora de Carne Suína, então secretário do Ministério da Agricultura. “Havia uma ala, principalmente no Itamaraty, mais cautelosa, que preferia apostar na conclusão das negociações internacionais. Mas a Rodada de Doha, iniciada em 2002, até hoje não terminou.” Camargo acrescenta: “Houve um processo de convencimento interno a partir da constatação de que o subsídio ao algodão americano representa quase a metade do preço final. O pedido do painel foi algo inovador, e o resultado agora é uma vitória muito importante, inclusive pela repercussão internacional”.
Na mesma ocasião, o governo brasileiro pediu a abertura de um painel para investigar os subsídios europeus aos seus produtores de açúcar, que dominavam o mercado internacional da commodity. “A reação da União Europeia foi completamente diferente da americana”, comenta Camargo. “Eles usaram o pedido brasileiro como uma forma de pressão política interna, que sustentou a reformulação de toda a política açucareira do bloco. O resultado dessa reforma é que a Europa perdeu competitividade e deixou de exportar açúcar.”
Então presidente da Associação Brasileira dos Produtores de Algodão (Abrapa), o produtor rural Jorge Maeda chama atenção para o fato de a categoria ter sido a principal prejudicada pela política agrícola dos EUA. “Foi a associação que contratou os advogados em Genebra, somente mais tarde é que entrou em cena o governo. É uma causa justa em um mundo que precisa de isonomia de oportunidades. As vitórias na OMC tiveram inclusive o efeito de fortalecer a posição do Brasil e também a do G-20. Agora não acho justo se os benefícios vierem para outros setores. Se isso acontecer, vamos questionar o Itamaraty.”
Para cuidar da defesa brasileira foi contratado um dos mais respeitados escritórios de advocacia dos EUA em assuntos ligados ao comércio internacional, o Sidley Austin LLP. Com 140 anos de atividades, a banca conta com 1,7 mil advogados espalhados em 17 capitais nos EUA, na Europa e na Ásia. Em resposta a CartaCapital, o advogado Scott Andersen, responsável pela defesa dos interesses brasileiros, não confirmou os honorários recebidos, que, estima-se, tenham superado os 3 milhões de dólares. Andersen também se recusou a comentar a decisão da OMC, pelo fato de o processo ainda estar em tramitação.
Na avaliação de Ricupero, a despeito dos lobbies, os Estados Unidos se encontram em uma posição “insustentável”. “Caso os EUA continuem a ignorar a resolução, o próprio sistema de solução dos conflitos ficará desmoralizado. Esta foi uma vitória memorável, e o governo brasileiro tem atuado com moderação, desde o início. Neste caso, os EUA não têm razão legal nem moral.”
Ricupero recorda outra história reveladora do estilo americano de negociar, dos tempos em que foi embaixador em Washington. “O governo brasileiro havia reduzido tarifas, simplificado os processos de importação, tinha atendido, digamos, a 90% da demanda do governo americano, que nos acusava de protecionismo.” Logo após o anúncio da abertura, Ricupero foi ao encontro da então secretária de Comércio, Carla Hills. Ricupero esperava ouvir elogios pelas medidas adotadas. Em vez disso, recebeu críticas pelos 10% de barreiras e tarifas restantes, com o argumento de serem contrárias às teses de Adam Smith e David Ricardo, papas do liberalismo. O diplomata argumentou que as barreiras ao suco de laranja brasileiro também eram contrárias às teses de Smith e Ricardo. E Carla Hills rebateu: “No caso do suco de laranja, senhor Ricupero, a autoridade máxima é a bancada da Flórida”.
Na disputa comercial com Washington, a mídia nacional prefere se alinhar aos interesses dos EUA
Que a mídia brasileira integra uma cruzada para desqualificar a diplomacia do governo Lula, mesmo quando eventuais méritos não podem ser atribuídos apenas ao comando - do chanceler Celso Amorim, é sabido. Mas no episódio das retaliações aos Estados Unidos autorizadas pela Organização Mundial do Comércio a turma se esbalda. Nem a imprensa do Grande Irmão do Norte defenderia tão bem os interesses de Washington. O Jornal Nacional, da Rede Globo, evocou o medo da inflação e o risco de alta no preço dos pães franceses. Um texto no UOL, portal do Grupo Folha, viu uma ameaça de alta na taxa básica de juros caso o Brasil insista em retaliar os produtos dos EUA. É uma amostra de até onde pode chegar a sanha de uma mídia que faz oposição aberta disfarçada de postura crítica.
Analistas com distanciamento e cérebro têm aplaudido a iniciativa de Brasília de negociar com o porrete na mão, à moda americana e conforme autorizou a OMC. O Brasil ameaça aumentar impostos de importação de 102 produtos made in USA, de automóveis a têxteis. Entre os automóveis, as marcas Chrysler e BMW seriam as mais afetadas, segundo uma associação de importadores.
Quando o Tio Sam defende o mercado doméstico ou tenta abocanhar praças estrangeiras – no caso do algodão, 40% das exportações globais são dos EUA –, é costume entrar em ação a mão nem sempre visível dos lobbies setoriais e regionais. Estes são capazes de criar punições aos seus parceiros comerciais, mesmo na ausência de base jurídica. Em 1989, os EUA retaliaram o Brasil por supostamente desrespeitar patentes farmacêuticas, apesar de o acordo internacional vigente, o Acordo Geral de Tarifas e Comércio (Gatt), precursor da OMC, não tratar do tema. No imbróglio do algodão, assiste-se a outra modalidade de postura: atropela-se o acordo internacional cujos efeitos vão contra os interesses do país.
“Na disputa que envolveu as patentes farmacêuticas, cheguei a ser chamado de pirata pelo representante dos EUA em uma sessão de debates. E eles partiram para as retaliações cruzadas, mesmo sem amparo legal. Atingiram itens de grande dinamismo na pauta brasileira de exportação, como o papel e a celulose. Rebati dizendo que os piratas em geral tinham nomes como Cavendish ou Drake, que não soavam exatamente ibéricos”, recorda com ironia o ex-ministro da Fazenda Rubens Ricupero, na ocasião embaixador brasileiro no Gatt. “Cheguei a pedir um painel sobre o caso, mas os EUA conseguiram bloquear.” A ofensiva dos EUA deu resultados: o então presidente Fernando Collor aprovou no Congresso as medidas exigidas pelos EUA.
Vinte anos depois, o xadrez geopolítico mudou – e no sentido de favorecer o Brasil, conforme indicam as pressões que o governo Barack Obama e o Congresso americano têm sofrido nas últimas semanas, diante do risco representado pelas reações dos países importadores de produtos americanos. Como um gesto de boa vontade, esteve no Brasil o secretário de Comércio, Garry Locke, que tratou do assunto, embora não seja a autoridade máxima neste caso, de responsabilidade do Representante Comercial dos EUA (USTR, em inglês).
Em Brasília, Locke reconheceu a inquestionável vitória jurídica brasileira e garantiu que em breve sairá a proposta para contornar o impasse. Em Wash-ington, Ron Kirk, titular do USTR, afirmou acreditar em um acordo. As barreiras ao etanol brasileiro parecem estar na mesa de negociação. “Se não chegarmos a um acordo com o Brasil, teremos de persuadir os congressistas a mudar o programa do algodão, como querem os brasileiros”, disse Kirk em um discurso no National Press Club.
Quem acompanha de perto a disputa sustenta que a proposta terá de ser realmente graúda, pois a OMC calculou a perda anual do Brasil em 829 milhões de dólares, relativos às exportações de algodão perdidas para a concorrência desleal dos EUA. Esse também é o montante limite para a retaliação brasileira. Até aqui a taxação a mais se concentrou em produtos industrializados, no valor potencial de pouco mais de 500 milhões de dólares. Em alguns dias, ficará pronta a lista de serviços e patentes alvejados.
A estratégia brasileira mirou um amplo leque de cadeias produtivas, com o objetivo de aumentar a repercussão e o desgaste das autoridades e do Congresso americanos. “Caso os EUA persistam em não cumprir a decisão da OMC, eles poderão perder vários compromissos assumidos com o organismo multilateral que hoje os beneficia. O governo brasileiro insiste na tese de que o descumprimento de uma decisão da OMC significará a desvalorização de todo o sistema”, afirma o ministro Carlos Márcio Cozendey, chefe do Departamento Econômico do Ministério das Relações Exteriores. “Sabemos que a retaliação é difícil e não interessa a ninguém, por isso tomamos o maior cuidado nos produtos escolhidos e estamos negociando. No caso do trigo, sabemos que a Argentina, o Canadá e a Rússia são alternativas viáveis que terão condições de garantir o fornecimento do mercado. Todos os produtos incluídos na lista foram analisados a partir dessa perspectiva.” Tradução: donas de casa, não se preocupem, não haverá escassez ou alta no preço dos pãezinhos.
Em outubro de 2002, quando o processo foi protocolado em Genebra, onde se localiza a sede da OMC, não havia no governo brasileiro consenso a respeito do melhor caminho a seguir, comenta Pedro de Camargo Neto, hoje presidente da Associação Brasileira da Indústria Produtora e Exportadora de Carne Suína, então secretário do Ministério da Agricultura. “Havia uma ala, principalmente no Itamaraty, mais cautelosa, que preferia apostar na conclusão das negociações internacionais. Mas a Rodada de Doha, iniciada em 2002, até hoje não terminou.” Camargo acrescenta: “Houve um processo de convencimento interno a partir da constatação de que o subsídio ao algodão americano representa quase a metade do preço final. O pedido do painel foi algo inovador, e o resultado agora é uma vitória muito importante, inclusive pela repercussão internacional”.
Na mesma ocasião, o governo brasileiro pediu a abertura de um painel para investigar os subsídios europeus aos seus produtores de açúcar, que dominavam o mercado internacional da commodity. “A reação da União Europeia foi completamente diferente da americana”, comenta Camargo. “Eles usaram o pedido brasileiro como uma forma de pressão política interna, que sustentou a reformulação de toda a política açucareira do bloco. O resultado dessa reforma é que a Europa perdeu competitividade e deixou de exportar açúcar.”
Então presidente da Associação Brasileira dos Produtores de Algodão (Abrapa), o produtor rural Jorge Maeda chama atenção para o fato de a categoria ter sido a principal prejudicada pela política agrícola dos EUA. “Foi a associação que contratou os advogados em Genebra, somente mais tarde é que entrou em cena o governo. É uma causa justa em um mundo que precisa de isonomia de oportunidades. As vitórias na OMC tiveram inclusive o efeito de fortalecer a posição do Brasil e também a do G-20. Agora não acho justo se os benefícios vierem para outros setores. Se isso acontecer, vamos questionar o Itamaraty.”
Para cuidar da defesa brasileira foi contratado um dos mais respeitados escritórios de advocacia dos EUA em assuntos ligados ao comércio internacional, o Sidley Austin LLP. Com 140 anos de atividades, a banca conta com 1,7 mil advogados espalhados em 17 capitais nos EUA, na Europa e na Ásia. Em resposta a CartaCapital, o advogado Scott Andersen, responsável pela defesa dos interesses brasileiros, não confirmou os honorários recebidos, que, estima-se, tenham superado os 3 milhões de dólares. Andersen também se recusou a comentar a decisão da OMC, pelo fato de o processo ainda estar em tramitação.
Na avaliação de Ricupero, a despeito dos lobbies, os Estados Unidos se encontram em uma posição “insustentável”. “Caso os EUA continuem a ignorar a resolução, o próprio sistema de solução dos conflitos ficará desmoralizado. Esta foi uma vitória memorável, e o governo brasileiro tem atuado com moderação, desde o início. Neste caso, os EUA não têm razão legal nem moral.”
Ricupero recorda outra história reveladora do estilo americano de negociar, dos tempos em que foi embaixador em Washington. “O governo brasileiro havia reduzido tarifas, simplificado os processos de importação, tinha atendido, digamos, a 90% da demanda do governo americano, que nos acusava de protecionismo.” Logo após o anúncio da abertura, Ricupero foi ao encontro da então secretária de Comércio, Carla Hills. Ricupero esperava ouvir elogios pelas medidas adotadas. Em vez disso, recebeu críticas pelos 10% de barreiras e tarifas restantes, com o argumento de serem contrárias às teses de Adam Smith e David Ricardo, papas do liberalismo. O diplomata argumentou que as barreiras ao suco de laranja brasileiro também eram contrárias às teses de Smith e Ricardo. E Carla Hills rebateu: “No caso do suco de laranja, senhor Ricupero, a autoridade máxima é a bancada da Flórida”.
Fonte:CartaCapital
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