segunda-feira, 15 de março de 2010

O plebiscito em marcha



Sergio Lirio


A última pesquisa eleitoral do instituto Datafolha, publicada no fim de fevereiro, aponta uma queda de 14 para 4 pontos na diferença entre José Serra e Dilma Rousseff. O presidenciável tucano tem agora 32% das intenções de voto, contra 28% da petista. No segundo turno, Serra venceria por 45% a 41%.

Os mais maldosos poderão atribuir o veloz encurtamento da distância entre os dois, para usar uma expressão do também presidenciável Ciro Gomes, ao “efeito âncora”. A âncora, no caso, responde pelo nome de Fernando Henrique Cardoso.

Coincidência ou não, o fato é que a queda de Serra se deu no mês em que FHC decidiu topar o desafio sonhado por Lula: transformar as eleições de outubro em um plebiscito entre as gestões. Em artigo dominical publicado em 7 de feveiro nos jornais O Estado de S. Paulo e O Globo intitulado “Sem medo do passado”, o ex-presidente decidiu fazer por conta própria o que a maioria do tucanato se recusa a fazer, uma defesa de seu legado. Fernando Henrique rejeitou o rótulo de socialmente insensível e propôs: “Se o lulismo quiser comparar, sem mentir e descontextualizar, a briga é boa. Nada a temer”.

Será? Para defender os oito anos de FHC no poder é preciso muito mais do que a disposição de reparar o passado mostrada por grande parte dos colunistas da mídia, de quem justamente o ex-presidente espera uma comparação “isenta” e “contextualizada” dos números. Com um tom de crítica crescente que vai do ex-ministro Luiz Carlos Bresser-Pereira ao próprio Serra, poucos são os tucanos interessados em relembrar um período no Brasil e na América Latina que mais se assemelha a uma literatura barata de rea-lismo fantástico. Sob o domínio do Consenso de Washington, o México vendeu sua autonomia para ingressar no Nafta, o tratado de livre-comércio com os Estados Unidos e o Canadá. O resultado não deixa dúvidas: o México é hoje uma economia dominada pelo narcotráfico.

Na Argentina, o governo de Carlos Menem prometeu o paraíso do desenvolvimento com a paridade do peso com o dólar. Em 2001, os argentinos acordaram em um pesadelo de panelaços, desordem e desesperança. Até hoje pagam o preço da aventura.

O Brasil não chegou a tanto, lembrarão muitos. É verdade, mas não por vontade de quem esteve no poder. FHC nunca esconde que seu maior sonho era desmanchar a herança de Getulio Vargas e teria obtido sucesso se o Brasil tivesse ingressado na Alca, privatizado a Petrobras e o Banco do Brasil e se sucessivas crises financeiras internacionais não tivessem interrompido o processo de desenvolvimento por meio de poupança externa.

É nesse cenário que desembarcamos em junho de 1998. Faltam quatro meses para as eleições presidenciais e Lula aproxima-se perigosamente de FHC. Em um provável segundo turno, indicam as pesquisas, a diferença entre o presidente em busca da reeleição e o petista cai para 4 pontos porcentuais: 45% a 41%. Os marqueteiros do PSDB sacam da cartola a teoria do caos- (que, com nuances, viria a se repetir em 2002, quando a atriz Regina Duarte foi ao ar revelar seu medo caso Lula fosse eleito). Ou FHC ou o caos, como ilustrou bem a capa da edição 76 de CartaCapital. A mídia saiu a campo para testar a hipótese.

O Estado de S. Paulo, por exemplo, foi ouvir o economista Francisco Gros, à época diretor para a América Latina do banco Morgan Stanley. Gros é um ortodoxo neoclássico. Entre 2000 e 2002, no segundo mandato de FHC, presidiu o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). De 2002 a janeiro de 2003, quando Lula tomou posse, comandou a Petrobras. Foi na sua gestão, aliás, que nasceu a ideia de mudar o nome da estatal para Petrobrax. A oposição acusou os tucanos de querer privatizar a empresa. Os tucanos defenderam a tese de que a troca de nome facilitaria a internacionalização da companhia.

De volta a 1998. Para o Estadão, o executivo financeiro Gros analisou a teo-ria do caos. Suas observações saíram na edição de 15 de junho do diário paulistano: “Os investidores não se impressionarão se a campanha de Fernando Henrique Cardoso pintar Lula como o fim do mundo, porque eles sabem que isso pode ocorrer no atual governo se continuar o descontrole das contas públicas”.

A declaração de Gros desmonta um dos silogismos mais caros aos tucanos. O PSDB pretende-se o benemérito da responsabilidade fiscal no Brasil e suas lideranças costumam repetir o mantra de que a única coisa boa do governo Lula – a manutenção da estabilidade e das metas de superávit primário – é continuidade de FHC.

A história foi diferente e os verdadeiros heróis do equilíbrio fiscal brasileiro são o ex-presidente dos Estados Unidos Bill Clinton e o então presidente do Fundo Monetário Internacional, Michel Camdessus. Mais adiante, relembraremos suas glórias.

Lançado em 1993, ainda no governo-tampão de Itamar Franco, o Plano Real alcançou sucesso imediato no controle da inflação, fruto da engenhosidade da URV e auxiliado pelas boas condições da economia internacional, mergulhada em uma fase dourada de crescimento dos EUA e sobra de capitais em busca de bons investimentos mundo afora.

Cego pelo exercício obtuso do papel de oposição, o PT afundou-se nas críticas ao Real. Quanto mais o partido classificava o plano de “estelionato eleitoral”, mais FHC, apresentado como pai do Real, subia nas pesquisas. Até vencer no primeiro turno e adiar por oito anos o sonho de Lula de conquistar a Presidência.

O controle da inflação não só produziu uma imediata melhora no poder de compra dos brasileiros. Abriu também um novo capítulo na história da gestão pública: após uma década e meia de uma contabilidade esquizofrênica decorrente dos altos índices de inflação, foi possível controlar as contas da União, estados e municípios. A renegociação de dívidas estaduais e de grandes cidades e a incorporação de esqueletos antes escondidos em estatais e autarquias tornaram os números mais transparentes e manejáveis. Méritos, sobretudo, do ministro Pedro Malan.

No mais, o primeiro mandato de FHC representou o caos. No atual debate público nacional, o colunista de CartaCapital Delfim Netto é um dos poucos a não sofrer de amnésia. O ex-ministro nunca deixa de lembrar que em 1998 o Brasil estava FA-LI-DO, como gosta de frisar. Em 2002, no fim do segundo governo tucano, Delfim definiu assim a era fernandina em entrevista à IstoÉ: “O primeiro governo se caracterizou pela conquista da inflação. Foi a única coisa, na minha opinião, realmente interessante. Quando a inflação caiu, se esqueceu de tudo, até do mais importante, que é fazer o equilíbrio fiscal. Os quatro primeiros anos do Fernando foram de farra fiscal, déficits, câmbio controlado, destruindo o setor produtivo brasileiro e ganhando insolvência”.

Ainda Delfim: “O Brasil quebrou em 1998, teve de ir correndo ao FMI pedir 41 bilhões de dólares para acomodar a situação na véspera da eleição. Se o Clinton não tivesse ajudado, o Fernando não teria sido reeleito”.

O câmbio quase fixo virou uma obsessão de Gustavo Franco, presidente do Banco Central. Desenvolvimentistas e ortodoxos se digladiavam no Planalto. A morte de Sergio Motta, primeiro, e os grampos da privatização da Telebrás que derrubariam Luiz Carlos Mendonça de Barros selariam a vitória do que se chamou de malanismo.

Para sustentar o câmbio franquista, o Banco Central do primeiro mandato manteve, entre 1994 e 1998, uma das mais altas taxas de juros da história do País e do mundo. O pico chegou a 45,67%, em meio à crise que abalou os chamados Tigres Asiáticos, em 1997. Na média, ficou em 21%. O real valorizado, por sua vez, estimulava as importações e reduzia a competitividade dos produtos brasileiros no exterior. Os efeitos sobre a estrutura industrial e a taxa de desemprego foram assombrosos (leia o texto).

O populismo cambial provocou efeitos arrasadores nas contas públicas e nas transações correntes, situação que só viria a ser controlada no governo Lula. Entre 1995 e 1998, o saldo nas transações correntes, resultado de todas as operações do Brasil com o exterior, acumulou um déficit de 105,7 bilhões de dólares. Nos quatro anos seguintes, o buraco cresceria em mais 81 bilhões.

Na tentativa de cobrir o rombo, a equipe econômica de FHC valeu-se de três expedientes: as privatizações, o aumento da carga tributária e o endividamento. De 1994 a 2002, a dívida líquida do setor público em relação ao Produto Interno Bruto saltou de 30% para 51,3%. No ano passado, após sete anos de gestão petista, ela ficou em 43% do PIB (em 2008, antes da crise financeira, o índice estava em 38,8%). Outro porcentual: na era fernandina, a dívida cresceu 485% ante cerca de 30% nos anos Lula.

A carga tributária, cuja redução virou a principal bandeira do ameaçado de extinção DEM, o aliado histórico do PSDB, subiu de 25,72% do PIB em 1993 para 31,86% em 2002, 6 pontos porcentuais a mais. Em 2003, ela ficou em 31,41% e, em 2009, fechou em 35,02% (4 pontos acima).

Malan sempre atribuiu a disparada da dívida pública à incorporação de esqueletos (débitos estaduais por conta da renegociação e rombos nas estatais). Tem razão em parte o ex-ministro. Sem os juros estratosféricos do período, a elevação da dívida pública estaria mais para uma maratona do que para uma prova de 100 metros rasos. Em 1994, a dívida líquida do setor público era de 153,2 bilhões de reais. Em 1998, de 385,9 bilhões (em 2002 alcançaria a marca de 896,1 bilhões). Os tais 485%. De 2003 a 2008, passou de 933,6 bilhões de reais para 1,2 trilhão.

O Brasil teria afundado em 1998 não fosse a intervenção de Bill Clinton. Principal voz do FMI, os Estados Unidos queriam evitar o fracasso de FHC e a vitória eleitoral do “populista” Lula. Por determinação de Clinton, o Fundo emprestou 41 bilhões de dólares, a maior operação de crédito na história da instituição criada em 1945. Quando a cavalaria do FMI veio em socorro, os caciques das finanças globais já haviam retirado do País cerca de 30 bilhões de dólares. O empréstimo viabilizou a reeleição do presidente tucano, que prometeu durante a campanha não desvalorizar o real. A promessa foi quebrada no primeiro mês do segundo mandato. Em janeiro de 1999, após a adoção da peripatética banda diagonal endógena de Francisco Lopes, o mercado forçou a desvalorização e lançou a economia brasileira em uma espiral de desarrumação e inflação. Arminio Fraga, funcionário do megainvestidor George Soros, foi chamado para apagar o incêndio. Os juros voltaram ao patamar de 45% e o Banco Central adotou as metas de inflação. Os custos sociais e econômicos perduraram até a metade do primeiro mandato de Lula. Empresas e consumidores endividados em dólar quase foram à falência. A mídia brasileira, que tanto louva o legado de FHC, esteve à beira da bancarrota, em uma crise de endividamento que custou mais de mil postos de trabalho só em São Paulo.

Presidente do FMI, Camdessus atendeu a ordem de Clinton, mas impôs condições ao governo brasileiro. O câmbio passaria a ser flutuante, o Estado seria obrigado a produzir um superávit primário, inicialmente da ordem de 3% do PIB. Os técnicos do fundo também enviaram à equipe econômica o modelo de uma legislação adotada em países que enfrentaram crises de balanço de pagamentos, o México entre eles: a chamada lei de responsabilidade fiscal.

A César o que é de César, portanto. O pai do equilíbrio fiscal nativo é o francês Camdessus. Em números: em 1996, o setor público registrou um déficit primário de 0,10% do PIB. No ano seguinte, o rombo subiu para 0,96%. Em 1998, um ligeiro resultado positivo, de 0,02%. Após o acordo com o FMI e até 2009, por causa da crise, a economia da União, estados e municípios nunca ficou abaixo de 3% do PIB.

Senhores absolutos da opinião pública, os neoclássicos nativos impuseram a tese de que o desenvolvimento se daria pelo financiamento externo. Segundo essa teoria, os investidores internacionais atraídos ao País pela privatização e abertura da conta de capitais provocariam um aumento na taxa de investimento da economia e levariam a um ciclo virtuoso de crescimento, inovação tecnológica e geração de empregos.

Ministro do Planejamento no primeiro governo FHC, o economista Luiz Carlos Bresser-Pereira sempre foi um crítico dessa teoria e dessa opção. O tempo lhe deu razão (a propósito, ler entrevista nesta edição à pág. 54). “Em 1994, tínhamos praticamente zero de déficit em conta corrente e a taxa de investimento da economia era de 17% do PIB. Em 1999, o déficit chegou a 4,7%, mas a taxa de investimento estava estacionada nos mesmos 17%.” Tradução: a poupança externa foi usada para financiar o consumo tão celebrado nos primeiros anos do Real (do iogurte à dentadura).

A ideia de um Estado enxuto e eficiente na era fernandina em contraposição a uma máquina pública aparelhada e inchada no período Lula é outro ponto que não resiste aos fatos. Apesar da tentativa inicial de Bresser-Pereira e da forma atabalhoada como as agências regulatórias foram implantadas, nem FHC nem Lula se dedicaram a uma reforma real do Estado. O total de servidores públicos em 1994 era de 583 mil. Em 2002, por conta das privatizações e das aposentadorias precoces estimuladas pelos projetos de reforma da Previdência do setor, o número caiu para 485,7 mil. Durante o governo petista houve uma recuperação: em 2009, a quantidade de servidores beirava os 550 mil. Em termos de gastos em proporção do PIB, FHC gastava mais com o funcionalismo em seu último ano de mandato do que Lula (4,93% ante 4,7%). Dos 20 mil funcionários em cargos de confiança até junho do ano passado, 26,6% não tinham vínculos com o serviço público.

O PT argumenta que os reajustes salariais e os concursos públicos durante a era Lula tiveram o objetivo de refazer a máquina desmantelada no período anterior. Trata-se de novos médicos, professores, fiscais, policiais. O argumento esconde, porém, que parte dos aumentos de salários foi simples concessão a uma das bases mais sólidas do partido, os servidores, e não veio acompanhada de critérios objetivos de avaliação e controle de eficiência. A péssima qualidade dos serviços públicos e a incapacidade de o Estado planejar e executar projetos de longo prazo são o custo altíssimo dessa concessão.

Em tese, o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) foi uma resposta a esse imobilismo, sustentado no primeiro mandato de Lula quando pairava sobre o governo a aliança de Antonio Palocci com o setor financeiro. O PAC, administrado por Dilma Rousseff continua aquém de seus propósitos e até o momento não foi capaz de elevar a taxa anual de investimento da economia, que fechou em 18,97% do PIB em 2008. Na China, o porcentual roça os 40%.

Por fim, o crescimento da economia foi muito mais medíocre com os tucanos que com os petistas. Em média, o PIB expandiu-se a 2,32%, enquanto a média mundial ficou em 3,53%. Com Lula, o País não alcançou o desempenho de China, Índia, Rússia ou mesmo da Venezuela, mas nos aproximamos mais da média planetária: 4,20% ante 4,38%.

Um comentário:

Anônimo disse...

Faltou falar que a taxa de juros era mais de 40% MAIS variação cambial, garantida pelo governo.....