segunda-feira, 22 de março de 2010

Um mundo órfão


Antonio Luiz Monteiro Coelho da Costa


Se não caiu, está muito abalada a supremacia dos Estados Unidos – ou mesmo do conjunto do chamado Ocidente, dada a aguda fragilização econômica da União Europeia e sua crônica incapacidade política de atuar unificadamente como uma força estabilizadora global. Deveríamos saudar a oportunidade de uma abertura a um mundo novo ou nos preocupar com o risco de caminhar para o fim de qualquer mundo civilizado?

Não está escrito nas estrelas, mas sim nas projeções econômicas, que em mais alguns anos a produção dos BRIC ultrapassará a do G-7, e a China, a dos EUA. Isso em si não precisa ser ruim, mas, quando o poder econômico se desloca, entidades políticas e militares costumam se mover, seja para se opor à mudança na correlação de forças, seja para consolidá-la. E, como diz um velho provérbio do Quênia, quando os elefantes brigam, quem sofre é a grama.

Na última vez em que o centro de gravidade da geopolítica se deslocou, foram necessárias duas guerras mundiais para assentar um novo equilíbrio de poder. Desta vez, não só uma guerra mundial tem alta probabilidade de não deixar sobrar muita coisa para partilhar, como há razões para recear, vista a fragilidade do ambiente ante a depredação pela atividade humana, que a civilização se destrua por seu próprio funcionamento “normal”, sem necessidade de violência explícita. Nunca foi mais necessário um consenso sobre o futuro da humanidade, mas isso se tornou um sonho mais distante do que jamais foi desde a derrota do nazismo.

A liderança moral que Washington chegou a ter sobre a aliança ocidental, forjada durante a Guerra Fria, conservada nos anos 90 por hábito ou falta de opção, dissolveu-se no Iraque. De maneira demasiado óbvia, a aventura atendeu a interesses econômicos e estratégicos dos EUA e Reino Unido com o falso pretexto de combater uma ameaça terrorista internacional e desperdiçou a oportunidade de estabilizar o Afeganistão.

O Taleban voltou a controlar grande parte do país, enquanto os governos europeus que se dispuseram a acompanhar os EUA se desgastaram inutilmente e agora se recusam a apoiá-los no esforço para recuperar o controle do país para o governo notoriamente corrupto de Hamid Karzai, reeleito por um processo admitidamente fraudulento.

Países que apostaram na exacerbação militarista do poderio estadunidense agem como quem desconfia que apostou no cavalo errado. Os países da Ásia Central que chegaram a se aproximar do Ocidente agora voltam a forjar laços estratégicos com Rússia, China e Irã. Os governos pró-ocidentais criados pelas chamadas “revoluções coloridas” deram-se mal: o da Geórgia, incentivado pelos EUA a desafiar Putin, foi surrado em batalha e perdeu território, o da Ucrânia levou ao desastre econômico e os eleitores o substituíram por um mais simpático a Moscou.

Na América Latina, pode-se dizer que a influência dos EUA voltou a ser contestada como não havia sido desde a Segunda Guerra Mundial. Contrariando os prognósticos de The Economist, a mudança de governo em Washington pouco fez para reverter o enfraquecimento de sua influência na região. China e Rússia continuam a fazer acordos comerciais e militares naquilo que a revista britânica chama de backyard (quintal) dos EUA, a Unasul combate a interferência de Washington na política interna de países sul-Americanos e o Grupo do Rio lança os alicerces de uma Comunidade Latino-americana capaz de substituir a OEA em muitas de suas funções, se não em todas. O périplo latino de Hillary Clinton em 2010 foi tão vazio de resultados quanto o de Bush júnior em 2005. Se foi recebida com menos protestos, é que as esquerdas deixaram de se preocupar tanto com os Estados Unidos.

Na África, a influência tradicional das ex-metrópoles europeias e a mais recente dos EUA também começa a se evaporar, graças à disposição da China de investir nesses países sem exigir, via FMI, que seus governos desmantelem seus precários aparelhos de Estado e exponham seus camponeses e fazendeiros à concorrência desleal da agricultura subsidiada dos países ricos.

No Extremo Oriente, o Japão, encerrado o longo monopólio do poder pelo decadente e corrupto Partido Liberal-Democrático, também começa a se afastar dos EUA – mais visivelmente pressionando o Pentágono para abandonar sua base em Okinawa – e a cortejar a China, seu tradicional rival, com o objetivo de construir um bloco asiático.

A predominância financeira, resgatada da crise de Bretton Woods pela política de Paul Volcker, está se esvaziando rapidamente, sem que haja espaço para a repetição da manobra. O FMI, símbolo do antigo consenso ocidental, consumiu sua credibilidade na crise asiática de 1997, quando se aproveitou das dificuldades dos países vitimados por ataques especulativos para impor, de maneira demasiado descarada, os interesses financeiros e comerciais dos Estados Unidos e a ideologia neoliberal em voga. Para não mais dependerem da boa vontade da agência de Washington, os países periféricos acumularam reservas de maneira obsessiva, a ponto de se tornar banqueiros do Ocidente e ser chamados, em 2009, a socorrer a entidade. Hoje, os países da Zona do Euro que enfrentam, pela primeira vez, dificuldades financeiras fogem do FMI como o diabo da cruz. França e Alemanha falam em criar um Fundo Monetário Europeu e países asiáticos cogitam de algo semelhante.

Mas não é só a discórdia entre as potências ocidentais: é também o consenso das elites dentro de cada país, principalmente os EUA. Outrora, republicanos e democratas se revezavam sem traumas. A alternância de poder era parte do jogo e não impedia que os partidos negociassem propostas e fizessem concessões mútuas.

Nos últimos anos, isso mudou. Desde os tempos de Ronald Reagan, o ambiente político vinha-se crispando pela aliança do neoliberalismo yuppie com o fundamentalismo cristão dos grotões dos EUA, mas desde a eleição de Barack Obama o problema cresceu de maneira exponencial. Aos efeitos da crise acrescentaram-se rancores racistas e xenófobos à mistura já explosiva e uma crescente infantilização e vulgarização do discurso político. Um número muito multiplicado de canais de comunicação (incluídos os da internet) compete por uma atenção pública limitada e dessensibilizada e tenta conquistá-la com as afirmações mais chocantes e os insultos mais estridentes e grosseiros. Continue lendo.


Fonte:CartaCapital

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