segunda-feira, 31 de outubro de 2011

A Esquerda e o Lacerdismo do Monopólio Midiático

 

Diorge Konrad *



Demos a mão à palmatória. Carlos Lacerda deixou um legado importante para o Brasil: o legado abjeto da fabricação das crises políticas, da manipulação dos fatos, do denuncismo eleitoreiro, de anticomunismo rasteiro, de uma imprensa que direciona a meia-verdade para os interesses espúrios das classes dominantes, tal qual a tática de Goebbels na Alemanha nazista.

No Brasil, a prática é recorrente e conhecida desde os tempos de Vargas. O conteúdo ideológico dos ataques é o mesmo, com a defesa da não-intervenção do Estado na economia e nas relações de trabalho. Assim, tudo que visa melhorias sociais e econômicas para a maioria da população, mesmo nos limites do capitalismo, é intolerável. Políticas públicas de distribuição de renda ou programas sociais são taxadas de populistas, crescimento econômico centrado no mercado interno e industrialização por bens de capitais são acusados de xenofobia, empresas públicas em setores estratégicos recebem a pecha de estatistas, leis e direitos sociais ampliados são caracterizados como demagógicos.

A União Democrática Nacional (UDN), criada em 1945, a soldo dos interesses imperialistas, especialmente dos Estados Unidos, foi a mãe deste discurso no Brasil. Os jornalistas Carlos Lacerda, Assis Chateaubriand e Roberto Marinho, os filhos queridos das classes dominantes, junto com os Mesquita e os Frias, seus melhores porta-vozes, foram os “corvos” da democracia e das reformas estruturais que o Brasil até hoje necessita. Atrás de si, setores importantes do empresariado e do latifúndio, além de uma “classe média” conservadora e moralista, consumista de panfletos da direita, ávida por ascensão social e se lixando para a maioria explorada da Nação. Uma camada social propensa ao discurso que utiliza termos que nem a ciência política burguesa ousou consolidar, atacando os partidos políticos progressistas e criminalizando os movimentos sociais transformadores, vilependiando os socialistas e comunistas. “Mar de lama”, “república sindicalista”, “peleguismo”, “ouro de Moscou”, etc., etc., etc, tudo isso saído da pena e da voz dos escribas do capital.
Foram estes liberais-conservadores, como já demonstrou o historiador Jorge Ferreira que no pós-1945 colocavam em desconfiança quaisquer atitudes de Getúlio Vargas e, durante o seu Segundo Governo (1951-4) centraram o fogo em seu ministro do Trabalho, João Goulart, chamando-o de “demagogo, manipulador de sindicatos e fomentador de greve” (Ver seu artigo “Crises da República: 1954, 1955 e 1961”. In. FERREIRA, Jorge; DELGADO, Lucília de A. N. O Brasil Republicano, vol. 3. O tempo da experiência democrática. Da democratização de 1945 ao Golpe Civil-Militar de 1964. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, p. 301-342).

A tragédia daquele processo histórico todo sabemos: suicídio de Vargas em 1954, tentativa de impedimento da posse de Jango em 1961, deposição golpista de João Goulart em 1964, vinte e um anos de Ditadura Civil-Militar, primeiro destroçando os movimentos sociais e os partidos políticos contrários a ordem e de esquerda, depois emparedando os partidários das reformas, em seguida atacando a resistência sócio-cultural, por fim matando os reformistas e afastando/reprimindo até os liberais mais radicais e anti-autoritários. Na sequência, assassinatos, torturas, desaparecimentos, exílios, censura, manipulação política e ideológica. De roldão, arrastou a prática política esquerdista, no sentido dado a ela pelo clássico de Lênin, justamente os setores que, ou subestimaram as forças das classes dominantes brasileiras e seus aliados imperialistas ou somaram-se às práticas denuncistas da pequena-burguesia raivosa, que marchava com Deus, Pátria, Família e Liberdade, com balizamento ideológico oriundo do Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais (IPES) e o pragmatismo político eleitoral do Instituto Brasileiro de Ação Democrática (IBAD), como tão bem mostrou o saudoso René Dreifuss em “1964: a conquista do Estado”. Escorados pelo financiamento de milhões da Coca-Cola, da Wolkswagen, do Bradesco, do Itaú, da Votorantim, das FIESPs da vida e tantos outros serviçais e proprietários do capital financeiro, subsidiados cotidianamente pelas injúrias da Tribuna da Imprensa, de O Globo, pelos diários da Avenida Paulista como O Estado de São Paulo e a Folha de São Paulo, destinaram um Brasil com uma das maiores concentrações de renda e terra do mundo, de pior relação entre o tempo de trabalho e os aviltados salários, de idiotia cultural e de ensino avesso ao humanismo e a defesa da igualdade social.
Nosso povo resistiu até com armas, foi massacrado, se ergueu novamente e se reorganizou pedindo Anistia, Constituinte, Diretas-Já, foi para as ruas exigir democracia, não teve força política suficiente para vencer a “transição pelo alto”, evitar a vitória de Collor e impedir a consolidação neoliberal com FHC, sua desestatização da economia e privatização de sonhos. Porém, os trabalhadores vão aprendendo com a História e voltaram às ruas e às urnas para derrotar a direita brasileira alicerçada no PSDB e no DEM, elegendo Lula e Dilma, com todos os limites de uma democracia em sua infância, de reformas tímidas para a sociedade, de um governo que concilia com políticas econômicas do capital, mas que coloca pequenas cunhas na ofensiva destruidora do capital, o bastante para ser atacado como faziam os algozes do povo há quarenta, cinqüenta, sessenta anos atrás.

Carlos Lacerda se foi, a Tribuna da Imprensa se foi, suas práticas não. Pelo contrário, estão mais do que vivas. Que o digam Veja, Época, Isto é, O Globo, Folha de São Paulo, O Estado de São Paulo e seus caudatários. Derrotados nas urnas, assim como no pré-1964, procuram fraturar a unidade popular por mudanças. Tendo a imprensa liberal e conservadora como arma, pautam a minoria parlamentar sem força de oposição, artificializando a luta política e levando para o campo, mais uma vez, do denuncismo, do discurso ardiloso e recorrente da corrupção, visando à desestabilização dos governos, como ocorreu em 2005 com Lula, como acontece agora com Dilma.
Se a História nos traz lições, que o governo de Dilma Roussef aprenda com elas, assim como a esquerda e o esquerdismo.
Primeiro, nossas classes dominantes só são desmascaradas com os movimentos sociais nas ruas, como foi com a Campanha da Legalidade há cinqüenta anos, como foi no impeachment de Collor.
Segundo, a imprensa golpista e os monopólios midiáticos, como nos ensinou Antônio Gramsci, são o Partido da Burguesia em momentos em que seus partidos políticos não conseguem exercer a hegemonia na sociedade e no Parlamento, como agora, em relação ao PSDB e ao DEM.
Terceiro, não há o que se ter ilusões com esta imprensa para a ampliação da democracia em nosso País, pois estes setores estiveram, estão e estarão na contra-mão de qualquer aprofundamento de mudanças estruturais para o Brasil.
Quarto, que a esquerda e os comunistas não reforcem para si as próprias armadilhas que o neoliberalismo inventou no caminho para desobrigar o Estado de políticas públicas, como ONGs e terceirizações, caminho fácil para os oportunistas, os desvios e apropriações particulares dos recursos públicos, nem consolidem o Estado, o Parlamento e a questão nacional como sua estratégia, pois dali se fortalecerá a burocracia que perpetuará a existência e a dominação de classe.
Quinto, que a oposição de esquerda se diferencie do discurso moralista, campo em que a direita é soberana, pois de instrumentos táticos do golpismo reacionário, rapidamente se transformam em vítimas do despotismo da classe dominante no poder, que não titubeia para igualar a todos, frente única ou frente popular, na criminalização dos movimentos sociais e na prática do terrorismo de Estado.
Por último, que não basta a defesa de um novo projeto nacional de desenvolvimento e do socialismo, contra o imperialismo e seu capital rentista, enquanto também não centrarmos as baterias táticas no desmascaramento da mídia golpista. A derrota do neoliberalismo está para o socialismo na mesma proporção que a derrota do monopólio da mídia para o avanço da democracia participativa, popular ou direta.



* Doutor em História Social do Trabalho pela Universidade Estadual de Campinas - UNICAMP, Professor Adjunto de História do Brasil e de Teoria da História do Departamento de História da UFSM - RS.No Vermelho

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