domingo, 23 de outubro de 2011

Passando a limpo a indignação




Como ninguém é de ferro e eu muito menos, fui a Roma em visita rápida de turista, aproveitando uma brecha em meus compromissos rotineiros. Não fui para ver o Papa, mas uma cidade que está sempre recontando a História, com seus monumentos e mesmo as suas ruínas. Como o personagem principal do filme “Meia-noite em Paris”, do Woody Allen, vejo em muitas coisas do passado um fascínio que não tem competidor no presente. É óbvio que essa postura corre o risco de ser tida como jurássica ou retrógrada, mas o que fazer? Tal qual Mário de Andrade, eu também não consigo “libertar-me das teorias-avós que bebi”...

O passado que estudei nos livros está presente em cada metro da velha Roma, lembrando a época de seu domínio absoluto sobre o mundo. Mas suas ruínas ensinam que os impérios caem e algumas, como as do Coliseu, nos recordam momentos inglórios a que pode chegar o engenho humano quando alcança um poder indiscriminado.

Em Roma, também revi um outro tipo de passado, não livresco, mas vivenciado quando jovem, em um tempo em que acreditava nas mesmas coisas em que creio hoje, julgava que o mundo se transformaria com a redenção dos menos favorecidos e me engajava de corpo e alma nessa luta. Na manifestação do dia 16 – participação romana no movimento planetário dos “Indignados” contra os caminhos que vem seguindo o sistema capitalista – revi mentalmente os movimentos de rua do Brasil dos anos 60, com o ambiente de truculência dos brucutus (que lá compõem a “força da ordem”, integrada por polícias de várias espécies, inclusive os famosos “carabinieri”). Lembrei-me de nossas passeatas aqui no Rio e, se não posso falar de saudade dessa época quando me recordo das prisões e da violência das “autoridades”, posso rememorar nostalgicamente a ambiência efervescente em que uma geração – aqui e no resto do planeta – achava que iria mudar o mundo.

Passando pelas ruas em que se deu a passeata italiana e vendo depois, no hotel, repetidas vezes, duas ou três cenas de esporádico vandalismo de alguns encapuçados que queimaram dois carros e depredaram estabelecimentos, percebi que, lá como cá, a mídia destorce as coisas segundo seus interesses ideológicos. A RAI preferiu valorizar imagens desses esparsos atos de violência – que chamou de “guerrilha urbana” -, a destacar o fato que milhares de romanos foram pacificamente às ruas para protestar contra a outra violência: a ferocidade de um sistema que pode levar o mundo à tragédia, sob o comando patético e irresponsável de Berlusconi, cujo “impeachment”, não por acaso, muitos italianos estão defendendo.

Manifestações como a da Itália ocorreram, aliás, em um grande número de cidades do planeta, e tendem a evoluir quantitativamente, tendo como origem o pessoal que resolveu acampar em Wall Street e apresentar seu brado de indignação diante dos descalabros planetários a que se assiste no mundo do capitalismo. Agora mesmo leio nos jornais a reação, nas ruas, dos gregos que questionam as medidas restritivas de seu governo

Há quem queira estabelecer um paralelo entre tais movimentos e as passeatas que, no Brasil, se promovem em “protesto contra a corrupção”. Embora sejam sempre saudáveis os movimentos de revolta contra atos fraudulentos na política, penso que não se podem comparar as duas intenções. Sem desmerecer os objetivos de muitos bem-intencionados participantes de nossas marchas, a verdade é que o movimento dos “indignados” coloca em cheque, mundo afora, algo muito mais relevante: um sistema econômico que escancara sua intrínseca perversidade, que aprofunda os bolsões de miséria à custa do enriquecimento de poucos e que, baseado no lucro, acaba sacrificando, em nome disso, os mais comezinhos princípios éticos. Um sistema que, mais do que qualquer outro, propicia a corrupção.

Penso que é da democracia o livre expressar de insatisfações, quaisquer que elas sejam. Mas, no caso de nossas passeatas contra a corrupção, julgo-me no direito de examinar suas origens e, a partir delas, seus objetivos. É indisfarçável que os promotores dessas manifestações, ainda que se declarando apartidários, servem a propósitos de desestabilização do Governo Federal, no qual buscam “colar” a pecha de generalizada corrupção. Para eles, embora não o digam, a corrupção é algo partidário, tem a ver com o PT e seus aliados. Não dizem, mas pensam que na oposição é que está sediada a ética e a dignidade que, para eles, falta ao pessoal da situação. Ignoram deliberadamente, nesse particular, os posicionamentos de não omissão do governo Dilma.

Como um filme que já vimos em outros tempos na história não tão remota de nosso país, sempre há um pessoal que não suporta projetos sociais, que contrariam o seu conservadorismo elitista e a lógica da economia de mercado. E essa turma, de forma oportunista, vê nesses movimentos a perspectiva de golpear as instituições e conseguir por vias tortas o que as urnas lhes negaram. Mas não dá para misturar “alhos com bugalhos”. Não temos, no Brasil, governos ditatoriais como os que se questionam no Oriente (e alguns, aliás, estranhamente, não são questionados, porque servem aos interesses petrolíferos dos senhores do Ocidente); não temos, aqui, um governo representativo do capital que, em nome disso, ignora as minorias e os desfavorecidos, como na Inglaterra, Itália e outros países da Europa; não temos entre nós um seguidor da direita no comando, como se dá no Chile, que já viu dias bem melhores. É por isso, talvez, que os movimentos de rua no Brasil têm sido pouco concorridos: a massa, intuitivamente, desconfia dos objetivos e fica na sua. Em um ato falho, que apenas ilustra o que digo, o Globo, no dia 13.10, publica declaração do organizador, no Rio de Janeiro, da marcha contra a corrupção, um empresário , que , falando sobre esse número pouco expressivo de participante, declara: “Sabemos que as redes sociais não atingem a todos, mas precisamos que esse não seja só um movimento de elite”...

Acreditarei nessas passeatas brasileiras quando incorporarem ao seu espírito um sentimento – que pode, é óbvio, contemplar o repúdio à corrupção - claramente manifestado a favor dos pobres, pela superação da miséria, pelas políticas sociais de inserção, contra a exclusão que, apesar dos esforços governamentais, ainda impera no país. Fora disso, o que temo é que alguns endinheirados e bem alimentados à custa da pobreza alheia, inocentemente ou não, estejam nas ruas – que conhecem pouco, aliás – para servir de instrumento a um golpe político de velhos atores que, mudados os tempos, não se conformam com as mudanças.


Rodolpho Motta LimaAdvogado formado pela UFRJ-RJ (antiga Universidade de Brasil) e professor de Língua Portuguesa do Rio de Janeiro, formado pela UERJ , com atividade em diversas instituições do Rio de Janeiro. Com militância política nos anos da ditadura, particularmente no movimento estudantil. Funcionário aposentado do Banco do Brasil.Direto da Redação

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