Por Tarso Genro – Carta Maior
O julgamento do chamado “mensalão” e o esforço que vem sendo feito pela
mídia, sustentado pelo presidente Fernando Henrique Cardoso, de separar a
presidenta Dilma do presidente Lula, configura um novo momento da luta política
no país e exige uma nova atitude da esquerda para disputar os rumos da revolução
democrática em curso no Brasil.
A tentativa de separar Lula e Dilma, como se o projeto de governo da
presidenta fosse uma ruptura com tudo que Lula representou para o país, nos seus
dois governos, redundou num fracasso completo. Só quem não conhece Dilma poderia
achar que ela embarcaria nesta armadilha primária. Mas a tática da direita e da
centro-direita brasileira, no contexto político que vive o país e a América
Latina, não foi ingênua. Ela revela uma estratégia bem concebida para restaurar
a hegemonia do “conglomerado” centro-direitista que já reinou no país.
Os protagonistas desta estratégia têm uma visão voltada, não somente para as
próximas duas eleições presidenciais, mas também para o esfacelamento do
principal partido de massas da esquerda brasileira. Com seus acertos, erros,
desvios e crises -que de resto atingem toda esquerda mundial no “pós muro”- o PT
vem mudando a estrutura de classes da sociedade brasileira e reorganizando os
interesses destas classes no cenário da “grande política”, aquela que decide os
rumos da democracia e dos modelos de desenvolvimento.
O PT, através dos nossos governos de “coalizão”, vem promovendo uma ascensão
extraordinária das classes populares, no plano social e também no universo da
política. O “incômodo PT”, formado por Lula, é o suporte principal, com seus
aliados de esquerda, das mudanças na letárgica desigualdade social que
imobilizava o país. O ascenso social de dezenas de milhões, conjugado com as
novas perspectivas para uma parte do empresariado compartilhar de um novo
projeto de nação – cooperativa, soberana e interdependente na globalização –
pode abrir um novo ciclo de mudanças.
A espetacularização do julgamento do “mensalão”, colocado como marco
“inaugural” da corrupção no Brasil e os vínculos deste processo manipulado com o
PT, como instituição; a insistência dos vínculos do “mensalão” com a figura do
ex-Presidente Lula; a demonização da política e a glorificação da gestão pública
“técnica”, isenta de “política”, que passa a ser sinônimo de pureza
institucional (tática sempre praticada pelo fascismo em momentos de crise); a
“revisão” do governo Lula, especialmente promovida por manifestações do
principal líder da oposição (FHC, o único que restou em avançada idade), tudo
isso aclara a tentativa de reorganização de um bloco político e social,
neoconservador e neoliberal, que já havia colocado o país numa situação
dramática. Como já registrou um editorial da Carta Maior:
“Para ficar apenas no alicerce fiscal/monetário: em dezembro de 2002 – último
mês do PSDB na Presidência da República – a relação dívida/PIB atingia
estratosféricos 63,2%, praticamente o dobro dos 30,2% existentes no início do
ciclo tucano, em 1994. Anote-se: isso, depois de um salto da carga fiscal, que
passou de 28,6% para 35% no período. Hoje a relação dívida/PIB é de 35%; a
previsão para 2013 é de 32,7%” – (03/09/2012 – Saul Leblon).
Este bloco organiza a direita intelectual de corte liberal e neoliberal, com
o apoio ideológico dos grandes meios de comunicação (que jamais engoliram Lula e
o PT), visando recuperar o partido tucano. Arruinado pelas suas lutas internas e
fracionado pelos seus interesses regionais e empresariais divergentes, é preciso
dar ao PSDB algum novo conteúdo para que ele possa renascer. Os Democratas não
conseguiram cumprir esta função, o PMDB está dividido segundo os seus interesses
regionais fracionários e o PSDB é o único sobrevivente autêntico do projeto
representado pelos dois governos de FHC.
A tática supostamente renovadora deste “novo“ conglomerado não leva em
consideração, porém, três mudanças fundamentais, que o país sofreu nos últimos
dez anos. Estas mudanças possivelmente impeçam a restauração neoliberal:
Primeiro, o país já tem um universo empresarial novo, que se fortaleceu nos
governos Lula, ao qual não mais interessa o projeto neoliberal em crise. Novos
processos de acumulação “via” mercado interno, pré-sal, construção civil pesada
e habitacional, setor de fabricação de máquinas e equipamentos, produção de
bioenergia, produção de alimentos para consumo interno, negócios originários das
políticas de cooperação e construção de infraestrutura – tudo orientado por
ações normativas do Estado – afastaram amplos setores burgueses
(tradicionalmente submissos à ideia de uma nação “associada e dependente”) dos
seus antigos comandantes. Agora estes setores vinculam a reprodução do seu
capital e dos seus negócios a outro modelo de desenvolvimento, ao qual o
neoliberalismo só atrapalha.
Segundo, como o projeto pretendido pelo “novo” conglomerado não difere muito
daquele do presidente FHC, e é uma restauração, ele tem impedimentos sociais de
monta.
A combinação ousada de reorganização financeira do Estado, com investimentos
em infraestrutura, políticas de inclusão produtiva e educacional voltadas para
as comunidades de baixa renda e, ainda, a incidência soberana do país no cenário
internacional, constituíram bases populares fortes no país, em defesa do projeto
comandado por Lula. Os governos Lula recuperaram a nossa autoestima, reduziram
as desigualdades sociais e regionais, que sempre marcaram a história do Brasil e
promoveram dezenas de milhões a condições de mínima dignidade. Ao não levar em
consideração estas mudanças, o “novo” conglomerado tucano, mais a mídia e a
intelectualidade liberal e neoliberal, descolam-se do sentimento popular e não
conseguem promover o seu “novo” projeto.
Terceiro, a organização do “novo” conglomerado não leva em consideração,
também, a existência nos dias de hoje das redes sociais, das novas tecnologias
de informação, das redes de comunicação e informação alternativas, que formam
núcleos de resistência e de produção de uma opinião pública livre. São os novos
espaços autônomos que não estão subordinados aos velhos métodos de manipulação
que permeiam a maior parte da grande imprensa. O controle da produção e formação
da opinião não é mais aquele legado pela ditadura, já que há um amplo espaço
autônomo de promoção da circulação da informação e da opinião, que é impossível
de controlar.
Concordemos ou não com as sentenças que advirão do “mensalão”, elas deverão
ser respeitadas por todos e por nós. É o Estado de Direito funcionando.
Especialmente nós, do Partido dos Trabalhadores, devemos tirar lições políticas
e jurídicas do episódio. Analisar todas as causas que abriram as maiores feridas
na nossa história não significa inculpar pessoas ou buscar bodes expiatórios,
pois a função de um partido político socialista não é a de ser sucursal de um
Tribunal ou de uma Delegacia de Polícia. A função de um partido como o nosso é
promover a condução intelectual e moral de um contingente do povo para levá-lo a
melhores níveis de emancipação política e social.
O nosso patrimônio é maior do que este legado do “mensalão”. O nosso dever,
agora, é compreender que se abre um novo cenário na luta política do Brasil e
que devemos compor uma força política orgânica e plural, que amarre fortemente
as convicções da esquerda democrática e socialista com os ideais progressistas
da centro-esquerda e do centro-democrático. É um novo patamar de unidade
política que deve ser pautado pelos partidos de esquerda, em conjunto, para
organizar e dirigir esses novos contingentes sociais, que se organizaram na
estrutura de classes da sociedade e cujo futuro não tem chances de ser
beneficiado pelo “novo” e velho conglomerado.
Tarso Genro é Governador do Estado do Rio Grande do Sul.
Nenhum comentário:
Postar um comentário