Texto fantástico.
Marcelo Neves
Uma
pergunta: por que o mesmo tribunal não julgou até agora o presidente da
Câmara dos Deputados? Está lá como réu desde janeiro do ano em curso
Daí que, ressalvadas as respeitáveis exceções, seria até o caso de se
afirmar que o STF, que inclui alguns ministros apequenados, propiciou
por "omissão" o golpe de domingo/17.04.2016, levado a cabo na Câmara, em
grande parte, por uma quadrilha de cleptomaníacos. (Raduan Nassar, 20/04/2016)
Nessa
época de investigação de escândalos de corrupção e condenação de
corruptos, não cabe insistir que o combate à corrupção é simplesmente a
expressão de um “moralismo lacerdista”. Ao contrário, cabe considerar
que há uma relação tendencial muito forte entre corrupção e exclusão
social ou entre corrupção e desigualdade[2]: quanto maior a exclusão
social – nos setores subintegrados, formados por subcidadãos, aquém da
lei e da constituição –, tanto maiores são as possibilidades de
ampliação da corrupção, especialmente nos setores sobreintegrados, no
qual se estão presentes verdadeiros sobrecidadãos, que vivem acima da
lei e da constituição[3]. Nesse sentido, a luta contra a “corrupção
sistêmica” faz parte de movimento dirigido à inclusão social e à
fortificação da cidadania. Portanto, em princípio, não cabem críticas às
ações judiciais, às atividades do ministério público e às investigações
da polícia federal destinadas ao combate à corrupção em uma perspectiva
de um Estado constitucional e democrático, orientado pelo princípio da
igualdade. De certa maneira, é constrangedor para muitos que lhe deram
apoio político e eleitoral constatar que membros do governo estiveram
envolvidos em corrupção durante os três últimos mandatos.
Entretanto,
o combate à corrupção no Estado democrático de direito não deve ser
realizado mediante violação à constituição e à lei, de maneira
arbitrária, como nos regimes autoritários e totalitários, cuja aparente
pretensão de banir a corrupção a todo custo, em vez de extingui-la e
“purificar” o país, redunda usualmente em novas formas de corrupção.
Exige-se de juízes e demais agentes públicos, no Estado constitucional,
que combatam a corrupção nos termos da lei e da constituição. Nem juízes
em geral nem ministros de corte suprema estão acima da lei e da
constituição.
No
início da chamada “Operação Lava Jato”, dirigida judicialmente pelo
juiz Sérgio Moro, houve algum sinal de esperança de que as atividades
policiais, ministeriais e judiciais fossem conduzidas imparcialmente,
dentro da lei e da constituição. Fatos posteriores fizeram esvanecer tal
esperança. A atitude arbitrária e de cunho partidário começou a se
delinear claramente com a “condução coercitiva” do ex-presidente Lula,
por aparato policial próprio para operações contra criminosos
internacionais de alta periculosidade. Já naquele momento, os indícios
de parcialidade e partidarização começavam a tomar corpo. No entretempo,
o pedido de prisão preventiva do ex-presidente, em trapalhada de três
promotores estaduais paulistas, não competentes no âmbito da “Lava
Jato”, fortificavam a suspeita de conspiração das elites paulistas de
desmoralizar um político com grande influência no cenário nacional.
O
ponto mais elevado de manifestação da parcialidade e partidarização do
judiciário ocorreu com os vazamentos de “interceptações de comunicação
telefônica” do ex-presidente da república, sem qualquer decisão ou ato
judicial motivador, pelo próprio juiz da causa, Sérgio Moro. Ele
simplesmente enviou todas as interceptações para os órgãos de imprensa,
especialmente para a TV Globo.
O
caso aponta claramente para a típica situação de “dois pesos, duas
medidas”. Por muito menos, por ser-lhe imputada a comunicação antecipada
de uma operação policial contra o empresário Daniel Dantas, o então
delegado Protógenes Queiroz foi demitido da polícia federal e condenado
criminalmente, nos termos do art. 325 do código penal[4]. Tentou-se
condenar também o juiz do caso, Fausto de Sanctis, mas esse se livrou ao
ser promovido a Desembargador Federal, pois a pena de censura que se
pretendeu esdruxulamente aplicar-lhe não caberia para magistrados de
segunda instância. Por fim, em um quiproquó de filigranas jurídicas, a
chamada “Operação Satiagraha” foi anulada[5], permanecendo o
controvertido empresário livre até hoje.
Naquela
ocasião, os hoje arautos da moralidade sustentavam que se tratava de um
“estado policial”. Nesse contexto, até mesmo a respeito da atuação
policial contra crime de sonegação perpetrada por proprietária da loja
de artigos de alto luxo “Daslu”, indagava o advogado Miguel Reale
Júnior: “Qual a razão de tantos policiais cercando a Daslu?”[6].
Atualmente, os mesmos arautos da moralidade, enfatizam o valor da
atividade arbitrária da polícia, do ministério público e do judiciário
contra as garantias do ex-presidente Lula e as prerrogativas da
Presidenta Dilma Rousseff.
Entretanto,
seria principalmente agora que caberia, em nome do Estado de direito (e
não de falso moralismo e de elites corruptas), exigir-se e promover-se o
processo de incriminação do juiz Sérgio Moro. Essa não é uma questão
pessoal ou moral (que atinge a pessoa em sua inteireza), mas sim uma
questão jurídica referente a condutas penalmente ilícitas. Ao divulgar,
sem nenhuma decisão motivada nos termos da lei, atos sigilosos de
“interceptação de comunicação telefônica” do processo criminal contra o
ex-presidente Lula, inclusive levando ao vazamento de conversas
telefônicas da Presidenta (em desrespeito ao fórum privilegiado), o juiz
Sérgio Moro incorreu nos artigos 8º, 9º e 10º da Lei 9.296, de 24 de
julho de 1996, que se fundamenta no art. 5º inciso XII e LX, da
Constituição Federal, que estabelecem:
“XII
- é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações
telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último
caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer
para fins de investigação criminal ou instrução processual penal;
[...]
LX
- a lei só poderá restringir a publicidade dos atos processuais quando a
defesa da intimidade ou o interesse social o exigirem”.
Por sua vez, os referidos dispositivos legais prescrevem:
“Art.
8° A interceptação de comunicação telefônica, de qualquer natureza,
ocorrerá em autos apartados, apensados aos autos do inquérito policial
ou do processo criminal, preservando-se o sigilo das diligências,
gravações e transcrições respectivas.
Parágrafo
único. A apensação somente poderá ser realizada imediatamente antes do
relatório da autoridade, quando se tratar de inquérito policial (Código
de Processo Penal, art.10, § 1°) ou na conclusão do processo ao juiz
para o despacho decorrente do disposto nos arts. 407, 502 ou 538 do
Código de Processo Penal.
Art.
9° A gravação que não interessar à prova será inutilizada por decisão
judicial, durante o inquérito, a instrução processual ou após esta, em
virtude de requerimento do Ministério Público ou da parte interessada.
Parágrafo
único. O incidente de inutilização será assistido pelo Ministério
Público, sendo facultada a presença do acusado ou de seu representante
legal.
Art.
10. Constitui crime realizar interceptação de comunicações telefônicas,
de informática ou telemática, ou quebrar segredo da Justiça, sem
autorização judicial ou com objetivos não autorizados em lei.
Pena: reclusão, de dois a quatro anos, e multa.”
Além
do crime e da pena tipificados no art. 10, relativo à interceptação de
comunicação telefônica da Presidenta Dilma Rousseff, pois a autoridade
judicial competente para autorização é o Supremo Tribunal Federal,
aplica-se ao juiz Moro, por desrespeitar o art. 8º (e também o 9º) da
Lei nº 9.296/1996, o art. 325 do Código Penal, o mesmo aplicado a
Protógenes Queiroz:
“Art. 325 - Revelar fato de que tem ciência em razão do cargo e que deva permanecer em segredo, ou facilitar-lhe a revelação:
Pena - detenção, de seis meses a dois anos, ou multa, se o fato não constitui crime mais grave.
§ 1o Nas mesmas penas deste artigo incorre quem: (Incluído pela Lei nº 9.983, de 2000)
I – permite ou facilita, mediante atribuição, fornecimento e empréstimo
de senha ou qualquer outra forma, o acesso de pessoas não autorizadas a
sistemas de informações ou banco de dados da Administração
Pública; (Incluído pela Lei nº 9.983, de 2000)
II – se utiliza, indevidamente, do acesso restrito. (Incluído pela Lei nº 9.983, de 2000)
§ 2o Se da ação ou omissão resulta dano à Administração Pública ou a outrem: (Incluído pela Lei nº 9.983, de 2000)
Pena – reclusão, de 2 (dois) a 6 (seis) anos, e multa. (Incluído pela Lei nº 9.983, de 2000)”
Parece-me
esdrúxula a alegação de que essas vedações e penas não se aplicam aos
magistrados. É claro que o magistrado pode e deve divulgar a parte
relevante para a caracterização do crime quando isso for necessário para
a motivação e fundamentação de decisão definitiva ou mesmo
interlocutória, após inutilização do que não interessa. Entretanto, isso
não significa o poder de divulgar, sem nenhum crivo seletivo ou decisão
motivada, às pressas e arbitrariamente, interceptações de comunicação
telefônica, muitas delas irrelevantes para o caso e respeitante apenas à
intimidade do investigado. Cumpre considerar que os referidos
vazamentos prejudicaram a própria investigação que se encontrava em
andamento. O fim, porém, não era judicial, era simplesmente o de criar
um estado de comoção política, patrocinado por meios de comunicação
exuberantemente parciais e partidários no contexto brasileiro. Entre
maquiavelismo vulgar em que os fins justificam os meios e “juizite”
histérica, o que ocorreu foi prática de crime pelo juiz Sérgio Moro.
Um
elemento a mais a afastar a inusitada alegação de que a proibição de
vazamento de interceptação de comunicação telefônica e as respectivas
penas não se aplicam aos magistrados encontra-se no art. 17 da Resolução
nº 59 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), de 9 de setembro de 2008, in verbis:
Art.
17. Não será permitido ao Magistrado e ao servidor fornecer quaisquer
informações, direta ou indiretamente, a terceiros ou a órgão de
comunicação social, de elementos sigilosos contidos em processos ou
inquéritos regulamentados por esta Resolução, ou que tramitem em segredo
de Justiça, sob pena de responsabilização nos termos da legislação
pertinente. (Redação dada pela Resolução 217, de 16.02.16).
Essa
Resolução, na sua forma originária[7], foi aprovada pelo CNJ sob a
presidência do Ministro Gilmar Mendes, que agora, informalmente, perante
a grande imprensa, parece defender posição contrária à sua aplicação
aos magistrados: “Dois pesos, duas medidas”.
Também
não se diga que cabe no caso uma ponderação entre proteção da
intimidade e interesse social. Essa ponderação judicial só teria sentido
se já não houvesse regra legal penal tipificando o crime e cominando a
pena. A ponderação, nesse caso, já foi feita politicamente pelo
legislador. Diante de princípios e regras constitucionais contrários,
não cabe ponderação de regra legal penal, mas tão só a declaração de sua
inconstitucionalidade parcial ou total. Regras, especialmente regras
penais completas, que não preveem exceções à luz de princípio, não
comportam ponderação à luz de princípio. Mesmo o teórico chamado
estridentemente por discípulos empolgados de “profeta da ponderação
estruturada”[8], Robert Alexy, reconhece essa impossibilidade. A
propósito, são suas as seguintes palavras:
“Isso
traz à tona a questão da hierarquia entre os dois níveis. A resposta a
essa pergunta somente pode sustentar que, do ponto de vista da
vinculação à Constituição, há uma primazia do nível das regras. [...]. É
por isso que as determinações estabelecidas no nível das regras têm
primazia em relação a determinações alternativas com base em
princípios.”[9]
Em
relação a regras penais, o recurso a sua ponderação ad hoc com
princípios constitucionais levaria à extrema insegurança jurídica,
contra o Estado, a sociedade e os cidadãos, servindo apenas à
arbitrariedade judicial.
A
essas práticas ilegais do magistrado, os ministros do Supremo Tribunal
Federal reagiram de maneiras as mais estapafúrdias. Em decisão
monocrática do ministro Gilmar Mendes suspendeu-se a nomeação do
ex-presidente Lula pela Presidenta Dilma Rousseff para Ministro Chefe da
Casa Civil. Como se sabe, o cargo de Ministro de Estado é de livre
nomeação e exoneração da Presidenta da República. A alegação de desvio
de finalidade baseou-se em um vazamento ilegal de interceptação de
comunicação telefônica entre o ex-presidente Lula e a atual presidenta. O
caso já se encontrava sub judice, a ser decidido pelo ministro Teori
Zavascki. A esse juiz caberia qualificar, liminarmente, a natureza
jurídica da interceptação e da respectiva comunicação. Às pressas e de
forma inusitada, o ministro Gilmar Mendes, após encontros públicos com
membros da oposição, adiantou-se e impediu que a Presidenta praticasse
um ato que lhe parecia fundamental para a melhoria política do seu
governo. A intromissão judicial na política apresenta-se chocante nesse
caso. Atos ilegais passaram a ser fundamento de decisão judicial
claramente partidária.
Nesse
contexto, cabe considerar que estão plenamente caracterizados os
requisitos necessários para que se declare a suspeição do ministro
Gilmar Mendes para julgamento de qualquer caso concernente a fatos
atribuídos à Presidenta e ao ex-presidente nas atuais circunstâncias,
seja no que concerne a eventual caracterização de crime comum ou
improbidade, ou a recursos referentes ao processo de impeachment. É
marcante a manifestação do ministro, em seminário no exterior, de que “o
Brasil vive um regime de cleptodemocracia” (sem nenhum comentário
crítico por parte do ministro Celso de Mello)[10], em clara referência a
casos que se encontram sub judice no STF ou poderão chegar a sua alçada
por via de recurso e, então, deverão ser julgados por esse tribunal.
Acrescentem-se a declaração do ministro Gilmar Mendes durante sessão do
STF, na qual, totalmente em descompasso com o caso em julgamento,
manifestou, em pré-julgamento esdrúxulo, juízos moral e juridicamente
negativos sobre o ex-presidente e a sua nomeação para Ministro de
Estado: “A presidente arranja um tutor para seu lugar e arranja outra
coisa para fazer. E um tutor que vem aí com sérios problemas
criminais”.[11] Essa linguagem de desprezo pela Presidenta e de
suposição de prática de crime de um ex-presidente, antes de julgamento
de casos relacionados a ambos, marca a caracterização de clara
suspeição, nos termos do art. 145, inciso IV, do Código de Processo
Civil, que prescreve haver suspeição do magistrado “interessado no
julgamento do processo em favor de qualquer das partes”. Não se descarte
também, em face da linguagem desprezo do ministro à Presidenta e ao
ex-presidente e em vista das suas notórias manifestações de amizade com
membros da oposição, a aplicação do inciso I do citado artigo, que
estabelece haver suspeição do juiz “amigo íntimo ou inimigo de qualquer
das partes ou de seus advogados”. A esse respeito, parecem serem
cabíveis ao caso o sábio preceito previsto no art. 11 do Código
Ibero-Americano de Ética Judicial, referente à imparcialidade do juiz.
“Art.
11 O juiz tem a obrigação de abster-se de intervir nas causas em que
veja comprometida a sua imparcialidade ou naquelas que um observador
razoável possa entender que há motivo para pensar assim.”
Nos
termos desse dispositivo, qualquer observador razoável poderia afirmar
que o ministro Gilmar Mendes não deveria participar de nenhuma causa
referente ao processo de impeachment em andamento ou que envolva a
pretensão de responsabilização civil, administrativa ou penal do
ex-presidente Lula e da Presidenta Dilma Rousseff.
Além
da questão referente à suspeição, cabe observar que caberia o
enquadramento das mencionadas condutas do ministro Gilmar Mendes, entre
outras, no art. 35, inciso IV, da LOMAN (Lei Complementar nº 35, de 14
de março de 1979), que impõe ao juiz o dever de “tratar com urbanidade
as partes”, e no seu art. 36, inciso III, que veda ao magistrado
“manifestar, por qualquer meio de comunicação, opinião sobre processo
pendente de julgamento, seu ou de outrem”. No caso tratava-se de casos
pendentes de julgamento, seja de magistrados de instância inferior, seja
do próprio STF, monocrática ou colegiadamente.
Nessa
mesma linha de argumento, incumbe observar também determinações do
Código de Ética da Magistratura Nacional. Embora possa se insinuar que
ele não inclui em seu âmbito pessoal de validade os membros do STF, pois
foi aprovado por órgão subordinado ao seu controle, o Conselho Nacional
de Justiça, o Código de Ética da Magistratura funda-se na Constituição
Federal (art. 103-B, § 4º, incisos I), dirigindo-se, inclusive por uma
questão de isonomia, a todo e qualquer magistrado, restando ao STF
declarar-lhe a inconstitucionalidade parcial ou total. Na presente
situação, é relevante o art. 22 do referido Código de Ética:
“Art.
22. O magistrado tem o dever de cortesia para com os colegas, os
membros do Ministério Público, os advogados, os servidores, as partes,
as testemunhas e todos quantos se relacionem com a administração da
Justiça.
Parágrafo único. Impõe-se ao magistrado a utilização de linguagem escorreita, polida, respeitosa e compreensível.”
Somando-se
às atitudes do ministro Gilmar Mendes que indiciam elementos de
suspeição no julgamento que envolvam o ex-presidente Lula e a Presidenta
Dilma Rousseff no âmbito dos recentes escândalos de corrupção e no
julgamento de remédios judiciais referentes ao impeachment em andamento,
assim como características de infringência de normas disciplinares da
LOMAN e de dispositivos do Código de Ética da Magistratura Nacional,
surgiram as bravatas do ministro Celso de Mello, em forma de
“supremites” histéricas, que denigrem a imagem do STF. Em um primeiro
episódio, veio a patética resposta ao conteúdo de uma interceptação de
comunicação telefônica, divulgada ilegalmente pelo juiz Sérgio Moro, na
qual o ex-presidente Lula, em conversa particular, afirmava que o
Supremo Tribunal Federal estava “acovardado” diante da atuação desviante
de órgãos políticos e judiciais. Que sentido prático teria a resposta
do ministro a essa opinião, em foro privado, de um político, senão a de
antecipar uma posição justificadora dos malfeitos do juiz Moro, no
âmbito de um caso sub judice no próprio STF. Embora esse episódio seja
grave, uma expressão mais gritante de uma postura politicamente parcial
encontra-se na declaração posterior do ministro Celso de Mello de que a
Presidenta não poderia utilizar o termo “golpe” em suas manifestações
políticas no exterior a respeito do processo de impeachment em
andamento. Dessa maneira, um membro do STF imiscuiu-se no jogo político,
não só tomando a posição de uma das partes envolvidas na contenda, mas
também pretendendo controlar, em termos de censura, as palavras da
Presidenta, em uma antecipação chocante de sua posição sobre futuros
julgamentos relativos à constitucionalidade e legalidade do processo de
impeachment em andamento. Às manifestações do Ministro Celso de Mello
juntaram-se as declarações dos ministros Dias Tofolli e Cármen Lúcia,
ambos a afirmarem publicamente, em meios de comunicação de massa, que o
impeachment em andamento não constitui um “golpe”, imiscuindo-se no
debate político-partidário e antecipando implicitamente suas posições
sobre futuro julgamento a respeito da regularidade jurídica do
impeachment em andamento. Também nessas hipóteses, infringem-se normas
da LOMAN e do Código de Ética da Magistratura Nacional e do Código
Ibero-Americano de Ética Judicial, acima citadas.
A
esse respeito, especialmente no que tange as referidas condutas do juiz
Sérgio Moro e do ministro Gilmar Mendes, em uma conversa privada
recente com um magistrado de uma pequena comarca do interior da Paraíba,
ele desabafava em tom fortemente crítico, nos seguintes termos: “Se,
muito menos do que esses magistrados graúdos estão fazendo, eu ou um
colega por aqui falássemos publicamente sobre um prefeito ou ex-prefeito
no âmbito de nossas respectivas comarcas, ou manifestássemos
publicamente sobre um processo de impeachment em andamento na
correspondente Câmara Municipal, já estaríamos sendo processados
disciplinarmente pelo Tribunal de Justiça ou pelo CNJ e, em certas
hipóteses, respondendo criminalmente perante o TJ.” É insofismável que,
por condutas muito menos graves de parcialidade, o CNJ e os Tribunais de
Justiças já condenaram disciplinarmente, inclusive aposentando
compulsoriamente, juízes de comarcas menos influentes no cenário
nacional.
Nesse
quiproquó de um judiciário e um STF altamente politizados, o presidente
do Supremos Tribunal Federal, ministro Lewandowski, passou a negociar
com a Câmara dos Deputados aumento elevado e diferenciado dos já
privilegiados vencimentos do pessoal do Judiciário e de ministros do
STF, em um momento de crise que tende a exigir sacrifícios de amplas
parcelas da população, especialmente da classe trabalhadora. Tudo isso
aponta para um reino de fantasias, mas que, paradoxalmente, é realidade
bruta e chocante, abaixo de qualquer mínimo exigido em uma Estado digno
de funcionamento.
Todas
essas observações sobre os desvios do judiciário em geral e do STF em
particular associam-se diretamente com as condições de surgimento e o
andamento do atual processo de impeachment. Os denunciantes pretenderam
envolver a presidenta nos escândalos recentes de corrupção, apontando-os
como uma das causas justificadoras do impeachment, o que obviamente era
uma ilação sem qualquer base jurídica. Nesse particular, salientei em
parecer de dezembro de 2015 que, ao contrário das ilações dos
denunciantes, que pretendem imputar à Presidente da República crime de
omissão por corrupção estrutural que tem chocado a esfera pública,
especialmente no âmbito da Petrobrás[12], há elementos claros de que a
Presidenta tem apoiado todo o trabalho da PF e do MPF na investigação e
persecução dos responsáveis, assim como qualquer apuração necessária
para o esclarecimento dos casos. A esse respeito, acrescentei que, ao
contrário de governos anteriores, o governo da Presidenta Dilma Rousseff
tem apoiado tanto a polícia federal como o ministério público federal
na atividade de investigação e persecução penal relativa aos recentes
casos escandalosos de corrupção, mesmo contrariando os seus
correligionários. Essa atitude é bem diferente do governo de que
participou um dos denunciantes, a saber, em que o ministério público
federal e a polícia federal ficaram nas mãos e sob controle de pessoas
ligadas politicamente ao presidente e de sua inteira confiança, tendo
sido típico os arquivamentos de inquéritos, de tal maneira que o
procurador-geral da república passou a ser chamado popularmente de
“engavetador geral da república”. Em certa medida, a atual Presidenta da
República é uma vítima da corrupção sistêmica que caracteriza o Estado
brasileiro historicamente. A propósito, um renomado membro do Partido da
Social Democracia Brasileira, o empresário Ricardo Semler, em um artigo
sugestivamente intitulado “Nunca se roubou tão pouco”, apontou até
mesmo para a redução da corrupção no âmbito das investigações que vinham
sendo protagonizadas no período do mandato anterior da Presidenta e que
permanecem até o presente:
“Nossa
empresa deixou de vender equipamentos para a Petrobras nos anos 70. Era
impossível vender diretamente sem propina. Tentamos de novo nos anos
80, 90 e até recentemente. Em 40 anos de persistentes tentativas, nada
feito.
Não
há no mundo dos negócios quem não saiba disso. Nem qualquer um dos 86
mil honrados funcionários que nada ganham com a bandalheira da cúpula.
Os
porcentuais caíram, foi só isso que mudou. Até em Paris sabia-se dos
‘cochons des dix pour cent’, os porquinhos que cobravam 10% por fora
sobre a totalidade de importação de barris de petróleo em décadas
passadas.
[...]
É
ingênuo quem acha que poderia ter acontecido com qualquer presidente.
Com bandalheiras vastamente maiores, nunca a Polícia Federal teria tido
autonomia para prender corruptos cujos tentáculos levam ao próprio
governo.” [13]
Uma
tal declaração põe-nos diante do perigo que o país venha ou viria a
incorrer após um provável impeachment da presidenta Dilma Rousseff,
passando o Executivo para as mãos de pessoas intimamente relacionadas à
corrupção sistêmica: passagem da presidência para Michel Temer, já
“ficha suja” e suspeito de corrupção (e soa estranho que o
Procurador-Geral da República, Rodrigo Janot, tenha pedido ao STF
autorização para investigar a Presidenta em virtude da delação do
senador Delcídio Amaral, mas não tenha feito o mesmo com relação ao
vice-presidente Michel Temer, amplamente acusado na referida delação);
e, até pouco, a passagem da vice-presidência, na prática, para Eduardo
Cunha, réu em processo criminal em andamento no STF (e também soa
estranho que só anteontem, 05/05/2016, em decisão tomada por
unanimidade, às pressas, o STF tenha afastado esse deputado do exercício
do seu mandato, após ele ter cumprido a sua principal função na
conspiração, a de viabilizar a abertura do processo de impeachment): as
expectativas confiáveis são que ele(s) atue(m), com seus parceiros, para
obstruir investigações, “apaziguando” a polícia federal, o ministério
público e o judiciário, fazendo tudo voltar ao status quo ante: a
“corrupção sistêmica” garantida pela falta de investigações e punições
adequadas.
Entretanto,
as ilações sobre o envolvimento da presidenta não foram admitidas no
ato de recepção da denúncia pelo então presidente da Câmara dos
Deputados, que sequer recebeu a denúncia com a imputação à Presidenta da
República de supostos desvios que decorreriam da reprovação das contas
do Poder Executivo referentes ao ano de 2014 pelo Tribunal de Contas da
União. Inúmeros juristas já haviam manifestado que fatos de mandatos
anteriores não poderiam ser objeto de processo de impeachment. Não
obstante, por força de uma apressada ampliação da denúncia, em uma
segunda versão, restaram recebidas pelo presidente da Câmara a parte da
denúncia concernentes a falhas atribuídas à Presidenta da República no
exercício de 2015: seis decretos de abertura de crédito suplementares
sem autorização do Congresso e um caso da chamada “pedada fiscal”.
Antes
de tudo, cabe observar que as contas do Poder Executivo em 2015 ainda
não foram sequer objeto de parecer do TCU nem de decisão do Congresso
Nacional, sendo possível ainda a sua aprovação pelas instâncias
competentes. Além disso, decretos da mesma natureza jurídica foram
expedidos por presidentes anteriores, chegando a mais de uma centena
durante o segundo governo de Fernando Henrique Cardoso, em 2001, mas as
contas sempre foram aprovadas pelo TCU, que apenas apontava para a
necessidade de saneamento e dava recomendações. Por exemplo, no
Relatório e Parecer Prévio referente ao exercício de 2002, o TCU
enfatizava:
“Há
que se destacar, no que se refere ao Poder Executivo, a inviabilidade
de se fazer uma análise mais efetiva no que tange à eficácia de todas as
ações relacionadas, devido à verificação de inúmeras inconsistências,
como por exemplo, informações errôneas ou incompletas sobre metas
previstas e realizadas.”[14]
A esse respeito, apontava-se para problemas persistentes de gastos sem autorização pela Lei Orçamentária:
“Sobre
a realização de despesas acima do valor autorizado pela Lei
Orçamentária, cabe observar que, de acordo com a Lei 8.443, de 16 de
julho de 1992, as contas das unidades gestoras serão julgadas
irregulares quando demonstrarem ‘prática de ato de gestão ilegal,
ilegítimo, antieconômico, ou infração à norma legal ou regulamentar de
natureza contábil, financeira, orçamentária, operacional ou
patrimonial’.”[15]
Em
geral, o Relatório advertia para a “falta de transparência na
visualização da programação orçamentária” e apontava que o “momento” era
de “alerta”[16].
Além
disso, a conclusão sublinha a “alteração para mais, mediante o Decreto
nº 4.120/2002, dos Programas Estratégicos definidos pela Lei
Orçamentária de 2002”[17]. Essa falha é esclarecida como repetida e
persistente no corpo do Relatório de 2003:
“Cabe
apontar que o aludido decreto foi sucessivamente alterado, no decorrer
do exercício, por outros decretos e portarias, que incluíram e excluíram
diversas ações, bem como alteraram sucessivamente os limites
orçamentários e financeiros, com acréscimos e reduções nos tetos
autorizados no período.
Tal
como em 2001, pode-se constatar que nem todos os programas e ações
eleitos como estratégicos no Decreto 4.120/2002 e suas alterações
estavam contidos na programação prevista na LDO/2002, que definiu as
metas e prioridades da administração pública federal para o exercício,
conforme orientou a Magna Carta.
Não
há perfeita congruência entre os programas e ações estratégicos, a
serem tratados com precedência na execução, e os programas e ações
prioritários, a serem tratados com precedência na alocação de recursos,
conforme fixou a LDO, de forma que constam programas e/ou ações na
referida Lei não contemplados no Decreto e vice-versa.
Reforçando
os termos anteriores, recorde-se que a Carta Constitucional define que a
LDO estabelecerá as prioridades e metas da administração pública
federal para o exercício financeiro subsequente. Os Decretos do
Executivo, quando estabelecem precedência na execução de outros
programas, elegem nova categoria de prioridade, não prevista na
lei.”[18]
Observa-se
do exposto que, não só no exercício de 2002, mas também de 2001,
Decretos do Presidente da República, além de autorizar aumento de
despesas em contrariedade à lei orçamentária, estabeleceram ações e
programas prioritários contrariamente às respectivas leis orçamentárias.
Apesar
dessas e de outras “falhas”, persistentes e abundantes, o Parecer
prévio do TCU referente ao exercício de 2002, opinava nos seguintes
termos:
“Considerando
que as falhas verificadas, embora não constituam motivo maior que
impeça a aprovação das Contas do Poder Executivo relativas ao exercício
de 2002, requerem a adoção das medidas recomendadas, observadas as
ressalvas constantes da concussão do Relatório”.[19]
Esse
modelo de parecer prévio com ressalvas concernentes às falhas,
reaparece, conforme os precedentes, nos pareceres prévios do TCU
referentes aos exercícios de 2003, 2004, 2005, 2008, 2009, 2012 e 2013,
como esclarecem os juristas Jefferson Garús Guedes e Thiago Aguiar de
Pádua:
“Mas
o que ora importa observar é o que se deixou fixado nos Pareceres
Prévios: em caso de irregularidades constatadas, isto é, que todas ‘as
contas são aprovadas com ressalvas’.”[20]
A
mudança casuística da jurisprudência do TCU em relação a essa matéria
não poderia justificar a responsabilização da Presidenta por crime de
responsabilidade, pois a hipótese fora tratada, no máximo, como falhas
suscetíveis de saneamento. Qual o elemento doloso nesse contexto?
Nenhum. Antes caberia recuperar a exigência da anterioridade penal, como
uma garantia do Estado de direito também em face de mutações
jurisprudenciais, especialmente quando tal alteração não tenha nenhuma
justificação exigível para o overruling, ou seja, para a superação de
precedentes por novos argumentos surgidos com a transformação de
circunstâncias institucionais.
No
que concerne à imputação de caso de chamada “pedalada fiscal” no ano de
2015, concernente ao Plano Safra, a situação é mais esdrúxula, pois o
ato não está no âmbito de competência da Presidenta da República. A esse
respeito, são esclarecedoras as palavras do jurista Ricardo Lodi
Ribeiro, renomado especialista em matéria jurídico-financeira:
“Em
relação às pedaladas fiscais, que, como já demonstramos nos referidos
artigos desta coluna, não se confundem com operações financeiras vedadas
pela Lei de Responsabilidade Fiscal, cumpre considerar que, no caso do
único contrato imputado em 2015, relativo ao Projeto Safra, a sua
regulação compete ao Conselho Monetário Nacional, ficando a execução a
cargo do Ministério do Desenvolvimento Agrário e do Banco do Brasil.
Aqui, a presidente da república, de acordo com as normas do legais do
Projeto, não possui qualquer atribuição. Nesse caso, se a norma que
prevê o crime de responsabilidade atribuído pelos autores da denúncia ao
caso em questão tipifica, no art. 10. 6 da Lei nº 1.079/50, a conduta
de ordenar ou autorizar a abertura de crédito em desacordo com os
limites estabelecidos pelo Senado Federal, sem fundamento na lei
orçamentária ou na de crédito adicional ou com inobservância de
prescrição legal, é de se perquirir: que atos praticados pela presidente
da república são imputados como criminosos? Ou que atuação desta
configura a conduta descrita no art. 11.3, de contrair empréstimo sem
autorização legal, que foi utilizada no parecer do relator da Comissão
Especial da Câmara para considerar esta atuação como crime de
responsabilidade? Nenhuma é a única resposta legalmente admitida pelo
regramento do Projeto Safra. No caso em questão, a gestão dos contratos
não está na competência presidencial, o que a impede de promover ou
determinar a abertura de operação de crédito. Até em razão disso, os
denunciantes ou o relator não foram capazes de apontar qualquer ato de
abertura de crédito à presidente, já que a prática deste não é a ela
legalmente atribuída, sendo conduta estranha ao exercício das suas
funções, o que, por si só, inviabiliza a responsabilização da Chefe de
Estado, nos termos do art. 86, §4º da Constituição Federal.”[21]
Inclusive
se admitidas ilegalidades e inconstitucionalidade nas práticas da
Presidenta, isso não poderia, por si só, justificar a sua destituição
por meio de processo de impeachment. Não é qualquer ilegalidade ou
inconstitucionalidade que justifica a denúncia da Presidenta da
República por crime de responsabilidade. Caso a cada vez que a
Presidenta editasse um decreto ilegal ou inconstitucional, contrário à
Lei orçamentária, à Lei de Reponsabilidade Fiscal ou qualquer outra lei,
ela já merecesse ser denunciada por crime de responsabilidade, toda e
qualquer Chefa de Estado estaria submetida a cada exercício ao processo
de impeachment. Na maioria dos casos, é suficiente a invalidação do ato
ou a determinação do seu saneamento por órgão de controle, seja
jurisdicional, de contas ou administrativo. Só em sendo algo
patentemente atentatório à Constituição, cabe discutir sobre a
possibilidade de impeachment. Isso significa que os crimes previstos nos
incisos do art. 85 da Constituição e tipificados na Lei nº 1.079/1950
devem ser compreendidos à luz do caput do art. 85 da CF, pertencendo a
todas as hipóteses normativas a exigência de que “atentem contra a
Constituição Federal”.
Todo
o casuísmo e artificialismo para condenar a presidenta da República foi
conduzido por um congresso em que grande parte está envolvida em casos
graves de corrupção. O então presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo
Cunha (tardiamente afastado pelo STF), que dirigiu o processo na câmara
baixa, além de envolvido em gravíssimos atos criminosos de corrupção,
sempre atuou de uma forma parcial e fraudulenta, tanto para levar a um
rápido desfecho do ato de admissibilidade da acusação contra a
Presidenta na Câmara quanto para se livrar do Conselho de Ética que deve
decidir sua cassação por falta de decoro parlamentar. Corrupto graúdo,
mancomunado com a oposição, liderou uma cleptocracia hegemônica na
câmara baixa para viabilizar a abertura do processo de impeachment no
Senado. Isso levou a uma matéria do New York Times, que veio a enfatizar
a posição de jornalista brasileiro de que “[a Presidenta] não roubou,
mas está sendo julgada por uma gang de ladrões”.[22] Essa é uma
afirmação baseada em amplas evidências que apontam para uma conspiração a
por em xeque a democracia brasileira.
A
essas práticas conspiratórias dos poderes legislativo e judiciário
junta-se a parcialidade corrupta das grandes organizações empresariais
midiáticas. Descaradamente, elas têm assumido um papel
discriminatoriamente seletivo em suas matérias referentes ao atual
processo de impeachment. Destaca-se a TV Globo de televisão, cujos
jornais tornaram-se instrumentos fundamentais da campanha da oposição
pelo impeachment. O “Jornal das 10” da Globo News tornou-se o
equivalente a um comitê eleitoral de um partido ou coalizão derrotada.
Essa postura discriminatória de desinformação foi percebida por dois
renomados jornalistas norte-americanos, Glenn Greenwald, Andrew Fishman,
e um brasileiro, David Miranda, em artigo no qual se destacam os
seguintes trechos:
“Ao
contrário da descrição romantizada e mal informada (para dizer o
mínimo) do Chuck Todd e Ian Bremmer de protestos sendo levantados ‘pelo
Povo’, esses são, na verdade, incitados pela mídia corporativa
intensamente concentrada, homogeneizada e poderosa, e compostos por (não
exclusivamente, mas majoritariamente) pela parte mais rica e branca dos
cidadãos, que por muito tempo guardaram rancor contra o PT e contra
qualquer programa social que combate a pobreza.
A
mídia corporativa brasileira age como os verdadeiros organizadores dos
protestos e como relações-públicas dos partidos de oposição. Os perfis
no Twitter de alguns dos repórteres mais influentes (e ricos) da Rede
Globo contém incessantes agitações anti-PT. Quando uma gravação de
escuta telefônica de uma conversa entre Dilma e Lula vazou essa semana, o
programa jornalístico mais influente da Globo, Jornal Nacional, fez
seus âncoras relerem teatralmente o diálogo, de forma tão melodramática e
em tom de fofoca, que se parecia literalmente com uma novela distante
de um jornal, causando ridicularização generalizada nas redes. Durante
meses, as quatro principais revistas jornalísticas do Brasil dedicaram
capa após capa a ataques inflamados contra Dilma e Lula, geralmente
mostrando fotos dramáticas de um ou de outro, sempre com uma narrativa
impactantemente unificada.
Para
se ter uma noção do quão central é o papel da grande mídia na incitação
dos protestos: considere o papel da Fox News na promoção dos protestos
do Tea Party. Agora, imagine o que esses protestos seriam se não fosse
apenas a Fox, mas também a ABC, NBC, CBS, a revista Time, o New York
Times e o Huffington Post, todos apoiando o movimento do Tea Party. Isso
é o que está acontecendo no Brasil: as maiores redes são controladas
por um pequeno número de famílias, virtualmente todas veementemente
opostas ao PT e cujos veículos de comunicação se uniram para alimentar
esses protestos.
Resumindo,
os interesses mercadológicos representados por esses veículos
midiáticos são quase que totalmente pró-impeachment e estão ligados à
história da ditadura militar. Segundo afirma Stephanie Nolen,
correspondente no Rio para o canadense Globe and Mail: ‘Está claro que a
maior parte das instituições do país estão alinhadas contra a
presidente’.
De
forma simples, essa é uma campanha para subverter as conquistas
democráticas brasileiras por grupos que por muito tempo odiaram os
resultados de eleições democráticas, marchando de forma enganadora sob
uma bandeira anti-corrupção: bastante similar ao golpe de 1964. De fato,
muitos na direita do Brasil anseiam por uma restauração da ditadura, e
grupos nesses protestos “anti-corrupção” pediram abertamente pelo fim da
democracia.”[23]
Essas
considerações enfáticas nos põem diante do problema da falta de
qualquer agência efetivamente encarregada da observação das organizações
empresariais de comunicação de massa. Contra a criação de uma agência
composta por membros da sociedade civil e do Estado, levantam-se
equivocadamente (quando não oportunisticamente) vozes em nome das
liberdades de expressão e de imprensa. Mas a liberdades de expressão e
de imprensa são primariamente direitos dos cidadãos e não das empresas
que exploram economicamente o jornalismo e a radiodifusão. Tais empresas
precisam ser observadas para que possam ser caracterizados os casos em
que tolhem a liberdade de expressão do cidadão. Não há nada de
antidemocrático (nem de “bolivarianismo” no sentido usado
pejorativamente pelo status quo). O país que mais preza a liberdade de
expressão, os Estados Unidos da América, conta com a Federal
Communication Commission, que, entre outras atribuições, tem competência
para impedir que alguém inicie transmissão de “conduzir investigações e
analisar reclamações”[24], tendo praticado multa a emissoras de
televisão que recusaram a sua inspeção[25]. Além disso, o papel da FCC é
fundamental para evitar a concentração de poder em uma ou algumas
organizações empresariais midiáticas, não apenas por determinação do
direito econômico de concorrência, mas também em nome da pluralidade e
diversidade na formação da opinião pública, do direito à informação e
também da liberdade de expressão dos cidadãos. Isso tudo falta no Brasil
em relação aos gigantes da informação, que são antes instrumentos de
lucro, do grande capital e de políticos oligárquicos do que das
liberdades de imprensa e de expressão, assim como do direito à
informação.
Nessas
circunstâncias, o processo de impeachment atua como um equivalente
funcional a um golpe de Estado. O objetivo é, na verdade, destituir a
Chefa de Estado com base na distorção de um instituto constitucional
legítimo. Ao falar de equivalente funcional a um golpe de Estado no
sentido clássico da expressão, não descarto ser também adequado
afirmar-se que se trata de um golpe parlamentar, judicial e midiático.
Retomando e relendo aqui uma velha distinção de Louis Althusser e entre
aparelhos repressivos e aparelhos ideológico de Estado[26], um tanto
fora de moda, pode-se dizer que, enquanto na versão clássica do golpe, a
dimensão repressiva do aparato estatal sobressai, na versão atual,
“moderna” ou (se quiserem) “pós-moderna”, prevalece a dimensão
ideológica de agentes estatais e atores da sociedade civil. Em certos
aspectos, esta talvez seja mais grave do que aquela, pois envolve uma
escamoteação ideológica que, pretensamente em nome da constituição,
distorce, corrói, erode a própria Constituição. O impacto de políticos
corruptos conduzindo o processo e um judiciário partidarizado poderá
levar a uma implosão da constituição e a um profundo descrédito das
instituições jurídicas, caso o impeachment seja aprovado.
Tudo
isso é a expressão de uma conspiração protagonizada por organizações
empresariais midiáticas corruptamente parciais, por um parlamento
dominado por uma cleptocracia, um Ministério Público ao mesmo tempo
parcial e anfíbio, e um judiciário, especialmente o Supremo Tribunal
Federal, não apenas acovardado, mas sobretudo politicamente capturado
por um projeto golpista liderado em sua origem por um gângster, ainda
solto e, portanto, capaz de liderar os seus cúmplices e manipular o
processo.
[1]
Nota do editor: a publicação do presente artigo foi rejeitada pelo
portal JOTA (jota.uol.com.br), com base no seguinte argumento do seu
editor, jornalista Felipe Recondo: “Caríssimo, agradecemos o texto, mas
não temos como publicá-lo. O texto, em verdade, é um manifesto
(legítimo, evidentemente). Mas já tivemos de deixar de publicar textos
neste formato recentemente. Não podemos abri o precedente, mas para
figura tão respeitada, como o professor Marcelo Neves (...). Espero que
compreenda. Obrigado mais uma vez e desculpe a demora.” Como nós, do
Crítica Constitucional, além de tudo, discordamos de que se trate de um
manifesto, pois entendemos ser um artigo de opinião com base
técnico-jurídica, resolvemos publicá-lo para estimular o debate sobre o
problema.
[2] Cf. Rose-Ackerman, Susan. Corruption and Government: Causes, Consequences, and Reforms. Cambridge: Cambridge University Press, 1999.
[3] Sobre subintegração e subcidadania versus sobreintegração e subrecidadania como formas de exclusão “por baixo” e “por cima”, respectivamente, na modernidade periférica, ver Neves, Marcelo. Verfassung und Positivität des Rechts in der peripheren Moderne: Eine theoretische Betrachtung und eine Interpretation des Falls Brasilien. Berlim: Duncker & Humblot, 1992, pp. 78 s. e 94 s.; Entre Subintegração e Sobreintegração: A Cidadania Inexistente. In: DADOS – Revista de Ciências Sociais, vol. 37, nº 2. Rio de Janeiro: Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro, pp. 253-76.
[4] STF, 2ª Turma, Ação Penal nº 563/SP, rel. min. Teori Zavaschi, julg. 21/10/2014: http://s.conjur.com.br/dl/ap-563-protogenes-acordao.pdf.
[5] Cf. sítio do CONJUR: http://www.conjur.com.br/2015-ago-19/anulacao-satiagraha-condenacao-protogenes-sao-definitivas.
[6] Cf. sítio de Exame.com: http://exame.abril.com.br/revista-exame/edicoes/848/noticias/um-pais-imprevisivel-m0056922.
[7] “Art. 17. Não será permitido ao magistrado e ao servidor fornecer quaisquer informações, direta ou indiretamente, a terceiros ou a órgão de comunicação social, de elementos contidos em processos ou inquéritos sigilosos, sob pena de responsabilização nos termos da legislação pertinente.”
[8] Zucca, Lorenzo. “Conflicts of Fundamental Rights as Constitutional Dilemmas”. In: E. Brems (org.). Conflicts between Fundamental Rights. Antuérpia: Intersentia, 2008, pp. 19-37, p. 28; Klatt, Mathias; Meister, Moritz. The Constitutional Structure of Proportionality. Oxford: Oxford University Press, 2012, p. 4.
[9] Alexy, Robert. Theorie der Grundrechte. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1986, pp. 121-2 [trad. bras.: Teoria dos direitos fundamentais. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 140].
[10]\ Cf. sítio da BBC: http//www.bbc.com/portuguese/noticias/2016/03/160329_frases_portugal_mf_np.
[11] Cf. sítio de Brasil 247: http://www.brasil247.com/pt/247/poder/221407/Contra-Lula-ministro-Gilmar-põe-STF-sob-suspeita.htm.
[12] Bicudo, Hélio Pereira; Reale Júnior, Miguel; Paschoal, Janaína Conceição. Denúncia (DCR 1/2015), pp. 47 ss.
[13] Semler, Ricardo. “Nunca se roubou tão pouco”. In: Folha de São Paulo, 21 de novembro de 2014: http://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2014/11/1551226-ricardo-semler-nunca-se-roubou-tao-pouco.shtml.
[14] Tribunal de Consta União. “Relatório e Pareceres Prévios sobre as Contas do Governo da República – Exercício de 2002”. Diário do Senado Federal, ano LVIII, Suplemento ao nº 083, 17 de junho de 2013, Brasília – DF, p. 501.
[15] Ibidem, p. 497.
[16] Ibidem.
[17] Ibidem.
[18] Ibidem, pp. 60-61.
[19] Ibidem, p. 512.
[20] Guedes, Jefferson Garús; Pádua, Thiago Aguiar de. “Pedaladas jurisprudenciais do TCU ou prospective overruling?” In: Consultor Jurídico, 16 de agosto de 2015, p. 1 (http://www.conjur.com.br/2015-ago-16/pedaladas-jurisprudenciais-tcu-ou-prospective-overruling#sdendnote9sym).
[21] Ribeiro, Ricardo Lodi. “Da farsa do impeachment ao golpe parlamentar”. In: Direito do Estado, 27 de abril de 2016: http://www.direitodoestado.com.br/colunistas/Ricardo-Lodi-Ribeiro/da-farsa-do-impeachment-ao-golpe-parlamentar.
[22] “She didn’t steal, but a gang of thieves is judging her” (Romero, Simone; Sreeharsha, Vinod. “Dilma Rousseff Targeted in Brazil by Lawmakers Facing Scandals of Their Own”. In: New York Times, 14/04/2016: http://www.nytimes.com/2016/04/15/world/americas/dilma-rousseff-targeted-in-brazil-by-lawmakers-facing-graft-cases-of-their-own.html?_r=0). Original: “Não roubou, e será julgada por muitos ladrões” (Conti, Mario Sergio. “O que quer uma mulher”. In: Folha de São Paulo, 29/03/2016: http://www1.folha.uol.com.br/colunas/mariosergioconti/2016/03/1755014-o-que-quer-uma-mulher.shtml).
[23] Greenwald, Glenn; Fishman, Andrew; Miranda, David. “Brazil is Engulfed by Ruling Class Corruption – and a Dangerous Subversion of Democracy” [“O Brasil está sendo engolido pela corrupção – e por uma perigosa subversão da democracia”]. In: Intercept, 18 de março de 2016: https://theintercept.com/2016/03/18/brazil-is-engulfed-by-ruling-class-corruption-and-a-dangerous-subversion-of-democracy/.
[24] Cf. sítio eletrônico da FCC: https://www.fcc.gov/about-fcc/what-we-do (acesso em 4 de maio de 2016)
[25] Idem: https://www.fcc.gov/enforcement (acesso em 4 de maio de 2016).
[26] Althusser, Louis. “Idéologie et appareils idéologiques d’État (Notes pour une recherche)”. In: Louis Althusser. Positions (1964-1975). Paris: Éditions Sociales, 1976, pp. 67-
125, pp. 81 ss.; Poulantzas, Nicos. L’Etat, le Pouvoir, le Socialisme. Paris: Presses Universitaires de France, 1978, pp. 31-8 [trad. bras.: O Estado, o poder, o socialismo. 2.a ed. Rio de Janeiro: Graal, 1985, pp. 33-40].
Marcelo Neves
Professor Titular de Direito Público da
Universidade de Brasília - UnB. Doutor em Direito pela Universidade de
Bremen, com bolsa do DAAD (1991). Obteve livre-docência pela Faculdade
de Direito da Universidade de Fribourg na Suíça (2000).
Foi bolsista-pesquisador da Fundação Alexander von Humboldt no
Departamento de Ciências Sociais da Universidade Frankfurt am Main,
Alemanha (2000). Foi Jean Monnet Fellow no Departamento de Direito do
Instituto Universitário Europeu, em Florença, Itália (2000-2001).
Destacam-se como suas principais obras, além da organização de livros no
exterior e de inúmeros artigos publicados em livros e periódicos
nacionais e internacionais, os seguintes livros:
Transcontitutionalism, Oxford: Hart, 2013;
Entre Hidra e Hércules: Princípios e Regras como Diferença Paradoxal do Sistema Jurídico, São Paulo: WMF Martins Fontes, 2013;
Transconstitucionalismo, São Paulo: WMF Martins Fontes, 2009;
Zwischen Themis und Leviathan: Eine Schwierige Beziehung Eine Rekonstruktion des demokratischen Rechtsstaats in Auseinandersetzung mit Luhmann und Habermas, Baden-Baden: Nomos, 2000 [trad. bras.: Entre Têmis e Leviatã: Uma Relação Difícil O Estado Democrático de Direito a partir e além de Luhmann e Habermas, São Paulo: Martins Fontes, 2006];
Grenzen der demokratischen Rechtsstaatlichkeit und des Föderalismus in Brasilien, Fribourg: Institute of Federalism / Basel: Helbing & Lichtenhan, 2000; Symbolische Konstitutionalisierung, Berlim: Duncker & Humblot, 1998 [1ª ed. bras.: A Constitucionalização Simbólica, São Paulo: Acadêmica, 1994; segunda ed. bras.: A Constitucionalização Simbólica, São Paulo: Martins Fontes, 2007; São Paulo: WMF: Martins Fontes, 2011 ];
Verfassung und Positivität des Rechts in der peripheren Moderne: Eine theoretische Betrachtung und eine Interpretation des Falls Brasilien, Berlim: Duncker & Humblot, 1992;
Teoria da Inconstitucionalidade das Leis, São Paulo: Editora Saraiva, 1988.
Transcontitutionalism, Oxford: Hart, 2013;
Entre Hidra e Hércules: Princípios e Regras como Diferença Paradoxal do Sistema Jurídico, São Paulo: WMF Martins Fontes, 2013;
Transconstitucionalismo, São Paulo: WMF Martins Fontes, 2009;
Zwischen Themis und Leviathan: Eine Schwierige Beziehung Eine Rekonstruktion des demokratischen Rechtsstaats in Auseinandersetzung mit Luhmann und Habermas, Baden-Baden: Nomos, 2000 [trad. bras.: Entre Têmis e Leviatã: Uma Relação Difícil O Estado Democrático de Direito a partir e além de Luhmann e Habermas, São Paulo: Martins Fontes, 2006];
Grenzen der demokratischen Rechtsstaatlichkeit und des Föderalismus in Brasilien, Fribourg: Institute of Federalism / Basel: Helbing & Lichtenhan, 2000; Symbolische Konstitutionalisierung, Berlim: Duncker & Humblot, 1998 [1ª ed. bras.: A Constitucionalização Simbólica, São Paulo: Acadêmica, 1994; segunda ed. bras.: A Constitucionalização Simbólica, São Paulo: Martins Fontes, 2007; São Paulo: WMF: Martins Fontes, 2011 ];
Verfassung und Positivität des Rechts in der peripheren Moderne: Eine theoretische Betrachtung und eine Interpretation des Falls Brasilien, Berlim: Duncker & Humblot, 1992;
Teoria da Inconstitucionalidade das Leis, São Paulo: Editora Saraiva, 1988.
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