Há alguns anos seria inimaginável, mas na segunda-feira 18, uma das principais agências mundiais de classificação de risco, a Standard & Poor’s, reduziu a perspectiva para a dívida soberana dos EUA de “estável” para “negativa”. Embora tenha mantido a classificação AAA, a mais alta possível, esse tipo de ressalva, historicamente, prenunciou em 33% dos casos um rebaixamento de fato no prazo de seis meses a dois anos.
Foi a primeira vez em 70 anos, dizem os jornais referindo-se a 1941, quando a companhia surgiu da fusão das duas precursoras, mas seria mais correto dizer em pelo menos 95 anos, pois a Poor’s iniciou sua atividade em 1916 e a Standard em 1922 sem ter jamais manifestado dúvidas sobre os sagrados Treasury Bonds.
O precedente mais próximo foi o da Moody’s, que em 1996 fez advertência semelhante (mas limitada a apenas alguns títulos que venciam naquele ano) devido à queda de braço entre Bill Clinton e um Congresso republicano que ameaçava rejeitar a lei orçamentária e “fechar o governo”, crise semelhante à enfrentada por Barack Obama há algumas semanas. Mas no caso tratava-se de um impasse político momentâneo: os Estados Unidos estavam no auge da prosperidade e as contas públicas eram muito mais sólidas.
É como o papa duvidar da virgindade de Maria. Para gerações de economistas, banqueiros e analistas, os T-Bonds eram o padrão-ouro da confiança financeira. A medida de risco de qualquer aplicação financeira, inclusive o risco-país das dívidas soberanas, costuma ser definida como a diferença entre o juro pago por essa dívida e o dos títulos da dívida dos EUA, assumidos como de risco zero.
Ainda assim, o impacto foi leve: uma queda de pouco mais de 1% nas bolsas estadunidenses no mesmo dia, que foi recupe-rada, com lucro, em dois dias. As cotações do ouro, indicador de insegurança quanto ao valor real da moeda e de títulos em geral, prosseguiram em sua tendência de alta, de 1,48 mil para o recorde de 1,5 mil dólares a onça de 31,1 gramas.
Talvez o mercado já não leve tão a sério essas agências, que acumulam sérios erros de previsão desde os anos 90, notadamente em relação à Enron e mais espetacularmente na crise de 2007-2008, durante a qual vários títulos subprime classificados como AAA derreteram em semanas ou meses e logo a seguir, quando só rebaixou a dívida da Grécia após a crise tornar-se incontornável. Além disso, lembrou Paul Krugman, a S&P rebaixou a dívida do Japão em 2002 e nada aconteceu.Apesar de pesadamente endividado, o país- paga por seus títulos de dez anos praticamente a mesma taxa de há nove anos, cerca de 1,2% ao ano. Da mesma forma, a taxa dos T-Bonds de mesmo prazo ficou inalterada após a notícia – ou melhor, até caiu ligeiramente, de 3,42% na sexta-feira para 3,36% na terça-feira seguinte.
Mesmo um rebaixamento de fato não significaria muita coisa. Historicamente, dos títulos classificados com AAA, 1,09% sofreram inadimplência em até 15 anos. Os que receberam nota um grau abaixo, ou seja, AA, tiveram problemas em 1,15% dos casos. A diferença é mais simbólica que prática.
Mas se as transações financeiras efetivas absorveram o factoide com um dar de ombros, a mídia fez estardalhaço, assim como o mundo político. A atitude da S&P é mais fácil de interpretar como uma intervenção no debate sobre as perspectivas orçamentárias de longo prazo entre o presidente Obama e os republicanos representado pelo presidente da comissão de orçamento da Câmara, Paul Ryan. Obviamente a favor deste último.
Os democratas propõem um aumento dos impostos para famílias de renda superior a 250 mil dólares anuais (de 35% para 39,6% em geral e de 15% para 20% em dividendos e ganhos de capital), para reduzir o déficit federal em 4 trilhões de dólares em 12 anos e estabilizar o endividamento público a longo prazo. Em contrapartida, admitem cortes comparativamente moderados, mas ainda assim criticáveis para os economistas keynesianos que julgam necessário aumentar os gastos públicos para combater o desemprego. E talvez irreais: o orçamento de Obama prevê reduzir as despesas discricionárias não-militares de 4,5% do PIB em 2010 a 2,8% do PIB até 2016, o que seria o índice mais baixo desde Eisenhower.
Mas se esses números são insuficientemente realistas, os dos republicanos viajam decididamente no mundo da fantasia. Até 2016, essas despesas cairiam a 2% do PIB, coisa não vista desde a Grande Depressão. Querem reduzir o déficit em 6,2 trilhões em dez anos e baixar os impostos ao mesmo tempo: as alíquotas máximas cairiam de 35% para 25% e as taxas sobre dividendos e ganhos de capital seriam abolidas. Pressupõem crescimento alto (2,7% ao ano ou 1,8% per capita na média dos próximos 70 anos, e cada vez mais rápido) e desemprego abaixo do plausível (2,8%, nível não visto desde 1953). Nas suas contas, cortariam os gastos com saúde pública de 5,5% para 4,75% do PIB (mesmo se a população envelhece e os cuidados médicos são cada vez mais caros) e, absurdo mais que evidente, reduziriam todos os gastos que não saúde e previdência de 12% para 3,5% do PIB até 2050, quando só a Defesa no sentido mais estrito absorve, hoje, 4,7% do PIB.
Até 2021, o plano republicano propõe cortar 53% do investimento federal em educação (o que significa reduzi-lo ao nível de Portugal), 37% em transportes e 28% em ciência e tecnologia. Tais cortes agiriam contra o crescimento econômico e tornariam a recuperação mais difícil de maneira óbvia para todos, exceto para os libertarians do Tea Party, para os quais é um dogma a tese de que tirar dinheiro do Estado para pôr nas mãos da empresa privada acelera o crescimento e melhora o bem-estar, seja qual for a conjuntura e a situação. Segundo o analista Rudy Narvas, da Société Générale, o plano republicano reduziria o crescimento do PIB em 1% a 3% anuais de 2013 a 2020.
Grande parte da mídia especializada fecha os olhos às inconsequências do projeto republicano e o trata como uma alternativa séria, por se identificar com as grandes empresas e instituições financeiras. Estas veem nos democratas uma ameaça aos negócios como usual, ou seja, enganar os clientes e apostar seus fundos em jogadas perigosas, na certeza de serem socorridos se for preciso, sem risco de punições, nacionalização ou fiscalização.
E o grande capital em geral, tendo atingido o limite da exploração possível no atual- quadro legal e sob pressão de uma concorrência internacional cada vez mais forte, vê o desmantelamento do governo federal, dos sindicatos e da legislação social e trabalhista como o caminho para prosseguir o crescimento desenfreado dos lucros que vem dos anos 80 e já foi retomado, mesmo se o desemprego e a pobreza continuam altos. Como não encontra maneira de acelerar o crescimento, resta-lhe aumentar a participação dos lucros no PIB, à custa do Estado e dos trabalhadores.
Mas se o público e os jornalistas deixam-se confundir pelos números esgrimidos por supostos especialistas, as medidas para concretizar esse projeto, mesmo em parte, vão necessariamente encontrar resistência. Em 15 de abril, a Câmara, de maioria republicana, votou e aprovou a abolição do Medicare – o sistema de saúde gratuito para maiores de 65 anos, vigente desde Lyndon Johnson – por 235 votos a 193. Segundo a medida, prevista no projeto de Ryan, os estadunidenses hoje com menos de 55 anos perderiam o direito à cobertura médica. Em vez disso, a partir dos 67 anos, receberiam vales de valor limitado para pagar seguros médicos privados.
A medida é tão extrema que quatro republicanos foram contrários e nenhum democrata a apoiou. Cairá no Senado e não tem chances de sanção presidencial. E o balão de ensaio foi rejeitado pelo público. Segundo pesquisa McClatchy-Marist, 80% dos eleitores em geral, inclusive 70% dos que apoiam o Tea Party, se opõem aos cortes no Medicare. Pela mesma pesquisa, 64% dos eleitores (mas só 45% dos que apoiam o Tea Party) aprovam aumentar impostos para as famílias de alta renda.
Entretanto, a desaprovação a Obama continua a subir e o apoio aos republicanos, não necessariamente às suas propostas concretas, tem-se mantido firme nos últimos meses, enquanto os democratas continuam a perder o entusiasmo dos eleitores. Isso bastará para garantir uma vitória republicana nas presidenciais de 2012? Talvez não, porque seus pré-candidatos falham em conseguir apoio popular, ou mesmo em serem reconhecidos como tais. Segundo uma pesquisa Pew divulgada em 20 de abril, 53% dos eleitores não sabiam indicar um só deles. O empresário e animador de reality show Donald Trump, o último a se lançar candidato, é o nome mais conhecido, com 26% – e é um crítico do corte ao Medicare, apesar de falar como radical ao duvidar da certidão de nascimento de Obama. Em todo caso, é mais conhecido que Mitt Romney, Sarah Palin, Mike Huckabee, Newt Gingrich e Tim Pawlenty somados. O mais provável é que nenhum deles consiga empolgar o público, garantindo mais quatro anos de impasse. E pode ser o mal menor.CartaCapital.
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