domingo, 24 de abril de 2011

Para começar a entender nosso mundo


Tenão na aldeia global
A primeira coisa visível é certamente a passagem de uma sociedade unipolar, dominada sem pudor pelos americanos da era Bush, para uma sociedade em transição para algo diferente, com um pano de fundo oriental. O comunicado dos BRICS fala em uma sociedade multipolar. Mas acho que a tendência está marcando outra coisa. Temos sim a ascensão da China e, claramente, China e Estados Unidos farão o que Braudel chama a economia mundo tornar-se bi-polar. A China cresce, cresce e vai se expandindo como o sorriso de Ji Hintao. E ela reorganiza países em torno de si, inclusive o nosso Brasil. Tem uma fome de política e de economia, contida há muito tempo. O comunicado dos BRICS fala em sociedade multipolar. Se olharmos um pouco mais, o que estamos vendo é que, na verdade, corre um vento levando a convergência para a dualidade citada acima. Quer dizer que Índia, Brasil e Rússia e África do Sul estão fora? Não, o que eles estão construindo é uma espécie de multipolaridade junto à biopolaridade, que vai funcionar como um pêndulo, ora caindo para o lado americano, ora para o caminho chinês. Basta ver o Brasil. Comércio com este, diplomacia com aquele. E assim, cada integrante da BRICOLÂNDIA tem a sua própria oscilação, o seu próprio movimento, a sua figura pendular.
 
 
Leitor amigo, precisamos nos entender bem. Temos dois motivos da tensão e da instabilidade no atual sistema mundial. Primeiro, é a passagem do sistema unipolar para o sistema bipolar. Esse trânsito tem a suas próprias perturbações, os seus próprios entraves, os seus próprios floreios. Por exemplo: a tensão entre um Estado dominado pelo capitalismo financeiro, que é o americano; e um outro, com um caráter de capitalismo estatal, obviamente chinês. O efeito visível maior dessa tensão aparece candente no câmbio. O segundo motivo é que o crescimento da economia mundial, financeiramente dominado pelos Estados Unidos e produtivamente pela China, criou um sistema econômico mundial crítico. A crise de 2007 encaminha o mundo agora para a necessidade de um rearranjo político e econômico. É preciso pintar uma nova casa. E nesse ponto, dado a ausência ainda de uma nova ordem internacional, países como Brasil, Índia e Rússia estão afetados por diversos fatores, por uma instabilidade sem perspectiva de resolução imediata. Só resta agirem pendularmente, em torno da bipolaridade, aumentando a tensão do sistema mundial. Já os europeus se inclinam em decadência, com uma preponderância alemã, para o lado americano e a África para o lado chinês.
 
 
A modelagem da tensão
 
 
A competição entre os Estados Nacionais se acantonou entre duas formas de Estado. Como a realidade mundial antes era organizada pelos Estados Unidos, esse foi capaz de modelar politicamente o mundo pós-guerra fria. Primeiro, uma hegemonia da democracia liberal; segundo, a manutenção do dólar como moeda, mas com a instituição de um dólar financeiro, baseado na taxa de juros e na venda dos títulos do Tesouro Americano. Por qual razão? Simplesmente, porque os anos 70 do século passado foram os anos da mutação fundamental do capital financeiro. O capital financeiro é uma forma de expansão do capital, aparecida no final do século XIX, que se dá via órbita produtiva e via órbita financeira. Só que nos anos que estamos falando, ele fez uma metamorfose exemplar. Antes, o que tínhamos era a hegemonia do produtivo. E a partir daqueles anos, o capital passou, astuciosamente, a ter uma preponderância do outro ramo. Portanto, uma metamorfose impar do capitalismo, com o triunfo total das finanças.
 
 
(Em parêntese: quem quiser conhecer num texto sintético, mas rigoroso, sobre a época, pode recorrer a um trabalho de André Scherer e meu. Ele leva o título de “Período 1979-2009: Ascensão e Queda do Capital Financeiro”, publicado pela FEE no conjunto de trabalhos sobre as “Três décadas de Economia Gaúcha”. Está no marco do primeiro livro “O ambiente regional”).
 
 
De onde virão o novo Estado e a nova moeda?
 
 
1) A queda das finanças em 2007, numa rocambolesca crise que deu uma pausa enganadora em 2009/2010 ao mudar de nível, combinando agora crises políticas e econômicas, não trouxe até o momento uma mutação substancial no plano do Estado, da hegemonia financeira. A produção não retornou nem retomou o comando da economia e da sociedade. O Estado americano se enrolou todo nas trapalhadas financeiras. E as finanças, com o poder do dinheiro, por intermédio dos lobbies, conseguiram parar as possíveis transformações do Estado americano, atando as mãos e os atos e as idéias de Obama. E fez mais: enfiou a culpa de suas trapalhadas nele, Estado, e nele, no novo presidente, depois de ter alcançado, com açúcar e com pacotes econômicos, a sua salvação. E a crise política americana em andamento é resultado da crise conjugada financeira e produtiva.
 
 
2) Tudo é muito claro: terminou uma época do capital; só que terminou, mas não acabou, nem a hegemonia foi ultrapassada. As finanças continuam a respirar. E ajudadas pelo Estado americano, a quem continuam mandando, engenharam um esquema. O resultado é a ação do FED dando dinheiro para os bancos -– uma expansão de liquidez -– que permite ao setor, como diria ex-governador gaúcho Olívio Dutra, se espraiar pelo mundo. E especular com as commodities (petróleo e alimentos!). E penetrar em sistemas financeiros internacionais, como o Brasil, trazendo o aumento do valor da moeda local (o que facilita as exportações de Tio Sam), causando problemas para as dívidas nacionais e para os déficits dos governos. E com um poder sinistro: aportarem parte da inflação que a liquidez do sistema causa. Ora, tudo isso vem do dólar. Um dólar sustentado por um Estado que permite o respiro das finanças, que, ao respirar, incomoda. Não a si, mas aos outros.
 
 
3) De outro lado, como desdobramento do sistema mundial, cresceu nele, como uma planta um pouco exótica, o dragão chinês. E os americanos sempre acharam que a China era útil para receber as empresas americanas em busca de baixo custo, e que a política chinesa de saldos comerciais, poderia financiar o déficit do Tesouro. Uma esperteza dos “ours boys”. Mas o que a gente quer, não determina a vida dos outros. Resultado: a China construiu um Estado burocrático, descendente da revolução comunista de Mao, um Estado no mínimo autoritário, que usou todas as suas forças para resolver a crise asiática, que também bateu nela, nos anos 1990. E resolveu via exportação e atração de capitais que se deslocavam para lá e, com isso, deu um dos maiores saltos desenvolvimentistas da história. Trouxe, na curva do processo, uma posição muito simples quanto a moeda. Ela tinha que ser dirigida, manejada e controlada pelo Estado. Era assim, foi assim, e assim continua.
 
 
4) Quando começa a estourar a crise financeira mundial as coisas saem do plano do desenho ligeiro e pouco nítido e a crise traz dois graves problemas para os Estados Unidos: uma decadência da produção e um atravancamento do sistema financeiro. E daí, meus caros amigos, os banqueiros e os políticos americanos queriam e pensavam que iam ter pela frente uma dócil China. Os chineses, de fato, sorriam sim, mas não faziam, nem fazem o que os americanos sonhavam e sonham. De repente, a realidade aparece, aquela planta exótica torna-se a segunda potência econômica do mundo. E que joga estrategicamente bem: negaceia as insistências americanas, continua a manejar o yuan e acaba por questionar o dólar como moeda mundial, moeda de conta, moeda de comércio e moeda de reserva. Esse questionar surge agora de forma mais ampla, pois o mundo se deu conta das manobras americanas. E veio nessa nova trajetória algo mais forte, uma proposta da última reunião dos BRICS em Sanya. A BRICOLÂNDIA, na sua diversidade e nas suas divergências, tem, entre convergências, essa de discutir o papel do dólar como moeda. Ou seja, trata-se de propor uma nova. E, claro há uma pretensão no ar. Se por acaso não for possível colocar outra moeda no lugar, se os Estados Unidos resistirem como tem resistido, existe em oculto ao menos uma idéia em exame. Quem sabe, um projeto: cindirem o sistema financeiro mundial em dois. Um regido pelo dólar e outro por uma moeda, do estilo do DES (Direito Especial de Saque) do FMI.
 
 
5) Esta cisão seria uma estratégia para conter as manobras escandalosas dos americanos de expandirem sua liquidez para o resto do mundo, visando reconstruir as finanças e a sua economia à custa dos outros. Sempre vem aquela idéia da locomotiva americana. Ou dito de outra forma: o que é bom para os “States”, é bom para o mundo. Mas o mundo mudou e o sistema internacional –com essa tensão Estados Unidos e China emergindo tanto na questão do Estado como na questão monetária — seguramente já marca um passo no processo de transformação da ordem política mundial A viagem parte da estação unipolar para a bipolar, com escalas na multipolaridade do Brasil, Índia e Rússia. Da janela do avião se enxerga o colorido desses múltiplos atores. Que ninguém se engane: ao mesmo tempo, essa ordem política mundial precisa reorganizar toda a sua estrutura paraestatal, de ordem supranacional. ONU, FMI, Banco Mundial, OMC, etc… Há igualmente que reformular a relação dos países e regiões (vão ter que ser definidas a posição da Europa – enfim, da Inglaterra, da Alemanha, da França — do Oriente Médio, da América Latina, da África, para que esse novo modelo emerja com força e com dominância. E nesse panorama, a moeda — manutenção ou não do dólar – dará o sinal, no devido tempo, de que o sistema passou para uma nova ordem.
 
 
Quantos debates, quantas chantagens, quantas concepções, quantas estratégias, quantas reuniões, quantos acordos, quantos combates militares, quantas ações e conflitos políticos, quantas competições de mercados, quantas soluções produtivas e financeiras, quantas inovações tecnológicas, quantos arranjos entre as nações serão necessárias para chegarmos a uma nova organização das ordens política e econômica mundial?

 
Eneas de Souza
Publicado em Econobrasil

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