Parece uma enorme contradição. Mas o McDonald’s e o Burger King localizados nas imediações da praça Zuccotti, no Distrito Financeiro de Nova York, ficam apinhados o dia todo. Os quase mil manifestantes que ocupam a área localizada a poucos blocos de Wall Street e se identificam como críticos ferrenhos das grandes corporações não estão se alimentando no QG inimigo.
Mas a concentração humana na praça, quatro semanas depois da dúzia de pioneiros anunciar que só sairia da propriedade da Brookfield (uma das maiores empresas do setor imobiliário dos EUA) quando o setor financeiro pagasse a conta pelo débâcle financeiro da maior economia do planeta, gerou a única prova clara da desorganização do “Ocupem Wall Street”: a falta de banheiros para atender às quase dez mil pessoas – nas estimativas dos organizadores – que circulam pelo local, localizado ao lado do terreno em que ficavam as torres gêmeas do World Trade Center.
“Mas este é o único porém. Confesso que estava preocupada em dormir no meio de Manhattan, na rua, mas a experiência está sendo sensacional. O silêncio é absoluto depois das dez da noite e assim que acordamos fazemos meditação e ioga. Este é, de longe, o exercício democrático mais saudável de que participei”, disse Elizabeth Albrecht, 29 anos, que acaba de se formar em Psicologia na Universidade da Virgínia e chegou à praça na sexta-feira com um grupo de militantes disposto a aprender com a experiência do “Ocupem Wall Street” a fim de bisá-lo já esta semana em Richmond, a capital do estado sulista.
Seu companheiro Darrick Gregory, 23 anos, recém-graduado em Geografia pela mesma universidade, conta que o grupo já conta com 300 participantes e já se chegou a um consenso sobre o local a ser ocupado na cidade. “Anunciaremos no dia da ocupação. E vamos unir nossas vozes a causas locais, como o combate ao projeto de lei que pretende dificuldade a possibilidade de aborto em clínicas públicas em todo o estado. Aprendemos aqui que nossa força vem do fato de não termos um objetivo específico, sonhamos alto, queremos mudar o funcionamento da democracia americana. O que nos alimenta é o nosso descontentamento e uma exigência, a de que nossa voz seja de fato ouvida”, diz, calmo, feliz da vida com o calor de verão em pleno outubro, como se os céus conspirassem para ajudar os moradores de rua mais barulhentos da cidade.
A organização do “Ocupem Wall Street” segue jogando por terra os argumentos dos setores de esquerda incomodados com a ausência de lideranças e de uma plataforma mais definida para o movimento. Se não há lista de demandas, basta olhar em volta para perceber que a praça é uma cidade em miniatura, onde o ideário hippie se encontra com as mídias sociais características da geração Steve Jobs. No centro da praça há uma cozinha comunitária, um sucesso de administração e bom gosto. A água é reciclada. Há uma livraria comunitária, com títulos que vão do gibi do Batman, a biografia recém-lançada do teórico da comunicação canadense Marshall McLuhan (1911-1980), clássicos das ciências sociais e políticas e livros de ficção da moda.
Na extremidade setentrional da Zuccotti, um telão mostra o site oficial do movimento e o número de pessoas, também via Facebook e Twitter, que se declaram simpatizante do “Ocupem Wall Street”. Até o momento em que esta reportagem era fechada, 440 mil pessoas dos quatro cantos do planeta afirmavam concordar com a “real democracia, a luta pela justiça social e um fim à corrupção”.
Na manhã do domingo em que a reportagem da Carta Capital passeou pela rebatizada “praça da liberdade” o filósofo esloveno Slavoj Zizek dava uma palestra para a multidão que o ouvia em um quase-silêncio quebrado por gritos excitados e murmúrios de aprovação. Zizek participou da assembléia-geral do “Ocupem Wall Street”, que acontece diariamente, sem o uso de microfones. A voz do professor-visitante da Universidade Colúmbia foi repetida em coro pelos moradores da praça, com alguma dose de emoção. Camiseta vermelha, barba longa, o acadêmico agradou: “Eles nos dizem que somos sonhadores. Não somos sonhadores! Estamos acordando de um sonho que está se transformando em um pesadelo. Nós não estamos destruindo nada. Somos apenas testemunhas da destruição autofágica do sistema. Todos conhecem a imagem clássica dos quadrinhos, do carrinho à beira do precipício. Nós somos as pessoas dizendo a Wall Street: êi, olhem para baixo!”, discursou, recebendo uma saraivada de palmas e gritos entusiasmados da plateia.
Celebridades outras já passaram pela praça desde que a repressão policial – com quase 700 manifestantes presos em uma marcha na Ponte do Brooklyn no fim de semana passado – colocou o “Ocupem Wall Street” na pauta do dia dos EUA. Susan Sarandon e Michael Moore circularam, com sucesso, pela área. E a líder da minoria governista na Casa dos Representantes – equivalente à Câmara dos Deputados no Brasil -, Nancy Pelosi, saiu em defesa do grupo no domingo, em entrevista a Christiane Amanpour, em seu programa semanal de entrevistas na rede ABC, afirmando ser justa a sensação de insatisfação dos manifestantes, que “tem uma mensagem bem clara: é preciso mudar o que está aí”.
O “Ocupem Wall Street”, que já se espalhou por dezenas de cidades do país – além dos jovens de Richmond, passaram o fim de semana na praça manifestantes de Washington, Portland, no Oregon, Los Angeles, Austin e Boston, dispostos a aprender com os nova-iorquinos como incrementar as mobilizações populares – poderia funcionar como pressão popular para a aprovação do plano recém-anunciado pelo governo Obama de investir 447 bilhões de dólares a fim de criar empregos no país (a taxa de desemprego segue na casa dos 9%), financiado por um aumento de taxas entre os mais ricos da nação.
A mensagem central do “Ocupem Wall Street”, presente em todas as marchas do grupo, é de representatividade óbvia – “somos os 99% que pagam impostos” – e de oposição ao abono de pagamento de impostos aos que ganham mais de 250 mil dólares, política fiscal criada no governo Bush II com o objetivo de esquentar a economia do país.
“Hoje é meu primeiro dia aqui, e estou muito bem impressionado. Vou voltar todos os dias. A matemática é simples: precisamos parar de financiar o almoço de 200 dólares do pessoal de Wall Street. Eles precisam pagar mais, a desigualdade social não pode crescer ainda mais no governo Obama!”, disse Brian Crosby, 30 anos, cozinheiro de um restaurante da cidade e crítico da semântica neoliberal, que, em sua visão, humaniza as corporações e valoriza os consumidores em detrimento dos cidadãos.
“Quem tem dinheiro, pode, quem não tem, vem pra praça. O problema é que cada vez mais aumenta o número dos lesados pela democracia americana. Nós só vamos crescer, você vai ver!”, promete Joe Fionda, 27 anos, relaxado na “praça do povo”, literalmente, segundo o bem-humorado nova-iorquino, “de frente para o crime”.
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