Notícia que vem da Espanha nos dá conta de que uma empresa local – a companhia de elevadores Schindler-Catalunha – teria instalado chips nos celulares de seus funcionários para controlar os seus movimentos (ou a ausência deles) durante o serviço. Segundo se denunciou, os chips emitem um sinal que provoca o disparo de um alarme toda vez que identifica falta de movimentos do trabalhador por um período de dez minutos. O telefone, para tanto, fica junto ao corpo do funcionário, podendo detectar , também, sua localização, graças a um GPS componente do sistema..
Apresentada queixa por órgãos sindicais da Catalunha, a Secretaria de Trabalho ordenou a retirada dos chips, considerados instrumentos inadequados de controle. A assessoria de comunicação da empresa – ao recorrer da ordem – afirma que o sistema é “mecanismo de proteção e não de controle”. Mas essa “proteção” está sendo dada, em sua maioria, a trabalhadores responsáveis por inspeções ou reparos nos escritórios ou residências dos clientes. Uma forma de pressão, segundo alegam os funcionários, para a efetivação do trabalho com velocidade.
É ancestral o conflito entre a liberdade e o controle. O bom-senso recomenda que o controle só deva prevalecer se a liberdade em questão for manifestamente abusiva, voltada para o mal ou contrária ao interesse geral. Mas muitos se têm aproveitado dessas palavras para solapar os direitos humanos.
Nos anos 50 e 60, a UDN – partido político da direita organizada no Brasil – tinha como lema a frase : “O preço da liberdade é a eterna vigilância”, que alguns atribuem a Aldous Huxley, autor de “Admirável mundo novo”. Evidentemente ela pretendia significar que é preciso estarmos vigilantes para que não nos retirem a liberdade. Na prática, porém, o que viam os brasileiros de então era a tentativa golpista, o desrespeito à democracia, com repetidas ofensas aos poderes legalmente instituídos. Até que deu no que deu: a UDN, capitaneada por Lacerda e tantos outros, acabou mesmo sendo linha auxiliar do golpe militar de 1964, que a semântica direitista quis apelidar de revolução.
Um pouco antes disso, regimes políticos como o stalinismo, o fascismo e o nazismo, com variações significativas enquanto ideologia, mas não no que dizia respeito à dicotomia liberdade x vigilância (ou controle) inspiraram George Orwell a escrever, em 1948, o formidável “1984” - número invertido, para caracterizar um futuro então antevisto -, que nos fala de uma hipotética Inglaterra , parte de um megabloco denominado “Oceania”, na qual os cidadãos que cometessem uma “crimideia” (pensamento diferente daquele do partido governamental, liderado pelo “Grande Irmão”, o “Big Brother”) tendiam ao desaparecimento. O sexo com prazer era considerado crime, anotar e lembrar pensamentos ocorrentes era proibido e perigoso, apartamentos possuíam teletelas que vigiavam os moradores e seu comportamento.
Estranha ironia: no nosso “Big Brother” caboclo, que provoca noites indormidas nos telespectadores, uma dúzia de pessoas consentem em abrir mão da sua liberdade e querem ser espionados por milhões, em troca de quinze minutos de fama e/ou do enriquecimento, para cuja obtenção vale tudo, inclusive alguns desvios de caráter expostos na TV aberta.
Alguém dirá que fugi do tema, ou que, se não fugi, estou exagerando. Afinal, o que têm em comum os celulares alcaguetes da Espanha, o udenismo de meio do século passado, o livro do George Orwell e um “reality-show” de sucesso no Brasil? Para mim, tudo , pois colocam a nu um problema-ícone do mundo em que vivo. Em um tempo de individualismos, egocentrismos e do escancarar da vida pessoal que os meios eletrônicos estimulam, como distinguir a liberdade sadia do exibicionismo nefasto, como identificar os controles necessários e os arbitrários? Muitas vezes tenho falado aqui, por exemplo, dos mecanismos de controle social da informação, para evitar manipulações e disseminação de inverdades. É um tema que, como tantos outros do gênero, cabe inteirinho no assunto geral desta coluna.
Mas, voltando à Catalunha, creio que ali está um caso indiscutível de arbítrio, no qual, em nome da produtividade (leia-se: do lucro da empresa), esquecem-se valores primordiais da convivência humana, entregando-se às máquinas maravilhosas do mundo contemporâneo missões degradantes, que anteriormente se confiavam aos capatazes e feitores. Por isso, para quem acha que o episódio espanhol é pouco significativo ou está longe demais, quero terminar lembrando, com Brecht, que as pequenas ações negativas, se não denunciadas, podem se transformar em grandes tragédias: "Primeiro levaram os negros, Mas não me importei com isso. Eu não era negro. Em seguida levaram alguns operários, Mas não me importei com isso. Eu também não era operário. Depois prenderam os miseráveis, Mas não me importei com isso, porque eu não sou miserável. Agora estão me levando. Mas já é tarde. Como eu não me importei com ninguém, ninguém se importa comigo.".
Sobre o autor deste artigoRodolpho Motta LimaAdvogado formado pela UFRJ-RJ (antiga Universidade de Brasil) e professor de Língua Portuguesa do Rio de Janeiro, formado pela UERJ , com atividade em diversas instituições do Rio de Janeiro. Com militância política nos anos da ditadura, particularmente no movimento estudantil. Funcionário aposentado do Banco do Brasil.Direto da Redação.
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