terça-feira, 19 de novembro de 2013

Gurgel e Barbosa serão condenados pela História



Eu considero que a AP 470 é um todo viciado. Tratou-se de um julgamento de exceção e um julgamento político e a execução parcial da sentença penal é apenas mais uma prova disso, fato do qual qualquer cidadão honesto deve envergonhar-se. E seus principais condutores, Gurgel e Joaquim Barbosa, serão julgados e condenados pela História como carrascos e inquisitores que são.
Aliás, a ação da Procuradoria Geral da República na AP 470 durante todo o processo careceu de técnica jurídica. A ponto de Luiz Moreira, membro do Conselho Nacional do Ministério Público e direito da Faculdade de Direito de Contagem, ter afirmado que a acusação da AP tem uma estrutura montada a partir de ficção literária, conforme a associação de versões verossimilhantes.
Mais uma "inovação" é colocada em prática para prender o Ministro José Dirceu. Nesse momento a PGR e a Presidência do STF iniciam execução parcial da sentença. Não há execução parcial de sentença penal porque as liberdades são indisponíveis, isto é, não há acordos que resultem em antecipação de penas, pois o regimento jurídico ainda vigente no Brasil é o dos direitos fundamentais.
"É evidente o afobamento dos inquisidores, a falta de cuidado e esse ultrapassar as barreiras civilizatórias, em que os direitos são negligenciados, fazendo-se coincidir o "fazer justiça" com justiciamento" (leia aqui).
Não podemos esquecer-nos da casuística negativa de remessa dos autos à Primeira Instância. O STF negou a remessa dos autos à primeira instância, em relação aos réus que não tinham foro privilegiado mudando, sem qualquer fundamento legal, entendimento do próprio colegiado. Só esse fato vicia a AP 470 e os Princípios do devido processo legal e a ampla defesa e afetou à morte a necessidade de aplicar-se o duplo grau de jurisdição. O Supremo julgou todos os denunciados como se estivessem incursos no único dispositivo que permite isso — o artigo 101 da Constituição o que não é verdade.
A regra dos dois graus de jurisdição é universal, por assim dizer. Os ministros do Supremo passaram por cima dessa regra, eles não quiseram nem saber sua importância. Isso é um absurdo em minha opinião. Esse é o primeiro ponto.
O segundo ponto é que os ministros do Supremo adotaram um princípio que, a meu ver, é incabível. O princípio de que as pessoas são culpadas até que se prove o contrário. A regra é outra: as pessoas são inocentes até que se prove o contrário.

E no caso de José Dirceu, a PGR partiu da tese que o Dirceu era culpado, porque ele era hierarquicamente superior às outras pessoas. E que isso bastaria para configurar a responsabilidade dele. Portanto, uma responsabilidade objetiva. Isso é outro absurdo. Isso cria uma insegurança jurídica enorme. A AP 470 contrariou a tradição jurídica ocidental, talvez "até universal", mas, "com certeza, a tradição jurídica ocidental", como disse o jurista Celso Antonio Bandeira de Mello. E o caso paradigmático disso é justamente o do José Dirceu. Esse julgamento foi levado a circunstâncias anômalas. Tanto que o ministro Luís Roberto Barroso, antes de ser empossado no Supremo, disse que aquela decisão era um ponto que ele considerava fora da curva. O que ele quis dizer com isso? Que alguma coisa estava fora da linha de julgamento do Supremo. Houve casuísmo.
O fato é que parte da mídia, a serviço de seus interesses e de seus patrocinadores, sempre pré-julga. E no caso do mensalão, pré-julgou. A pessoa que corresponde às expectativas da mídia passa a ser o herói nacional e quem não corresponde passa a ser o vilão. Esse é um problema muito sério, que se vê, sobretudo, em casos criminais. O mensalão é um caso criminal, de pressão da mídia que forma a opinião pública. Não é a pressão da opinião pública, porque a opinião pública é manejada pela mídia. Eu não estou querendo defender a posição do relator ou do revisor, porque eu não conheço o processo. Mas nos casos criminais do Brasil, o que é proibido em outros países, a mídia condena sem processo e dificilmente absolve. As interceptações telefônicas, por exemplo, devem correr em segredo de Justiça, mas sai tudo no jornal! Isso é crime. Mas quem é que forneceu a informação? Quem tem interesse em fornecer a informação? Ninguém nunca foi atrás, como afirmou a Jurista Ada Pellegrinni, professora da Faculdade de Direito da USP.
E há fatos antecedentes à própria AP 470 que merecem nossa atenção, como por exemplo, a necessidade de mudança casuísta da Jurisprudência do STF para possibilitar a cassação de Zé Dirceu pela Câmara dos Deputados. O então Deputado Federal Zé Dirceu foi cassado pela Câmara dos deputados por quebra de decoro parlamentar, em razão de supostos atos praticados enquanto estava licenciado. Até então a jurisprudência afirmava que deputado licenciado não poderia ter seus atos apurados, enquanto licenciado, mas não podemos esquecer que a cassação só foi possível porque o Supremo alterou a jurisprudência (por 7 x 4).
Alterou-se a jurisprudência especialmente para cassar Zé Dirceu?
Desde o oferecimento da denúncia, é evidente que houve pressão externa sobre o Supremo para que esse julgamento tivesse o caráter político e de exceção, tanto que se partiu da "verdade" que Zé Dirceu era culpado.
Outro fato inédito: toda vez que um partido denunciante retirava denúncia junto à Comissão de Ética a comissão arquivava o processo, o PTB retirou a representação contra Zé Dirceu, mas, pela primeira vez, não ocorreu o arquivamento. Por quê?
Não foram apresentadas provas pela PGR, o então Procurador Geral da República afirmou, em relação ao Zé Dirceu, que "as provas são tênues". Então, para condenar Zé Dirceu (essa era tarefa do isento colegiado do STF?) foi adaptada a "Teoria do Domínio do Fato" e o julgamento foi deliberadamente marcado no período eleitoral, um absurdo. Por quê? Apenas para condenar os réus do mensalão e Zé Dirceu?
Quem afirma que a aplicação da "Teoria do Domínio do Fato" deu-se erroneamente é o jurista alemão Claus Roxin, estudioso da teoria do domínio fato. Ele afirmou que a teoria foi usada casuisticamente pelos ministros do Supremo Tribunal Federal para condenar Zé Dirceu e discordou da interpretação e aplicação dada a ela. Não é demais lembrar que Roxin aprimorou a teoria, corrige a noção de que só o cargo serve para indicar a autoria do crime e condena julgamento sob publicidade opressiva, como está acontecendo no Brasil. "Quem ocupa posição de comando tem que ter, de fato, emitido a ordem. E isso deve ser provado", diz Roxin. Penso que alguns aspectos da decisão do STF em relação a AP 470, como a injustificada e equivocada aplicação da "Teoria do Domínio do Fato", nos colocam num estado de unsicherheit e de profunda tristeza.
Mas Gurgel, seu sucessor Barbosa e outros maus juízes serão condenados pela História.
E não podemos esquecer-nos da tragédia pessoal que isso causa a inocentes como Zé Dirceu. Mas o ódio, as infâmias, a calúnia não abateram o ânimo de José Dirceu de Oliveira e Silva. Ele segue sua vida militante e nos oferece como exemplo seu otimismo e confiança no povo brasileiro, na democracia e nas instituições. Parece nada recear e serenamente segue fazendo de sua vida História.
Zé Dirceu enfrenta tudo com luta e dignidade, mês a mês, dia a dia, hora a hora, resistindo a uma pressão constante, incessante, tudo suportando em silêncio, tudo esquecendo, renunciando a mim mesmo, pois sabe o valor de sua obra e tem a consciência limpa. Talvez seja essa uma das razões pelas quais seus amigos estão e estarão com ele, não haverá desamparo. As aves de rapina querem sangue, querem continuar sugando o povo brasileiro, e contra isso Zé Dirceu oferece seu silencio como fortaleza e sua consciência como exemplo. E aos que o pensam derrotado ele responde com um sorriso largo e generoso e com atos que buscarão a afirmação de seus direitos pelas vias democráticas e institucionais, um exemplo.


Pedro Maciel


Advogado, sócio da Maciel Neto Advocacia, autor de “Reflexões sobre o estudo do Direito”, Ed. Komedi, 2007

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