Autor(es): Carlos Melo
Valor Econômico - 29/07/2009
Por uma série de motivos (políticos) Sarney é oferecido em sacrifício para purgar pecados que não são só seus
O noticiário é avassalador: uma enxurrada de denúncias, um mar de escândalos. Naturalmente, a maioria dos não apáticos indigna-se, vocifera contra a política e políticos. Faz sentido. Ainda assim, nada disso explica ou transforma. Quando se estabelece a crença de que política é coisa para malandros, penhorada, a malandragem agradece a "reserva de mercado". Porque política sempre haverá e haverá também alguém para se envolver com ela.
A mídia diz "quem e quando". Mas - até como defesa diante do farisaísmo - também é preciso compreender "o que, o como e o porquê". Discursos arrebatados, tão ao gosto de um moralismo de fachada, nos empurram em direção ao precipício da descrença da democracia. Por isso, antes de tudo deve-se buscar o entendimento da dinâmica que nos envolve e, com consciência de sua complexidade, buscar a mudança.
Não se trata de absolver a atual geração de políticos, mas o patrimonialismo, o nepotismo e os privilégios da oligarquia não foram inventados nos últimos meses. É um processo longo e - custa acreditar -, no passado, foi até pior. O que temos acompanhado, por inocultável e inegável evidência, é sinal de revisão, avanços futuros, aperfeiçoamentos institucionais.
Uma sociedade complexa, de interesses contraditórios e liberdade de expressão cobra ajustes e promove o aperfeiçoamento; é incomparavelmente superior à ditadura, à censura e à truculência da repressão política. É no erro e na consciência dele que se aprende. Ver alguns medalhões em maus lençóis, acreditem, é um avanço. O que não se deve, no entanto, é reduzir o problema à agonia de alguns bois de piranha. Se não tomarmos cuidado, os cães ladram e a caravana passa incólume.
Assim, antes de jogar o ex-presidente José Sarney aos leões, é necessário que se reconheça a importância de pelo menos três questões: a) mais do que de Sarney, a crise é do Senado e deriva de um modelo político anacrônico e disfuncional; b) por uma série de motivos (políticos) Sarney é oferecido em sacrifício para purgar pecados que não são só seus; c) o presidencialismo brasileiro exige, sim, a composição de maiorias que impõem custos enormes aos cofres, à ética e até a lógica.
São pontos que, mais do que o arrebatamento moralista, merecem lucidez analítica, de modo a que possamos avançar na direção da necessária transformação.
1) A crise não é só de Sarney. OK, o ex-presidente encarna o patrimonialismo e a oligarquia. Mas a questão é singela: que novidade há nisto? Assim como ele, há dúzias de senadores que representam essa tradição nacional. Reis-do-pedaço, déspotas de província com status regional e uns poucos de expressão nacional tomam para si bens, mordomias e vantagens públicas. Se isto não o absolve, não deve crucificá-lo sozinho. Logicamente, há probos, no Senado, que podem atirar pedras. Mas também há os que transformam pedras em bumerangues que voltam à testa. O paradoxo fere a lógica da história, mas a ideia de República é coisa nova no Senado do Brasil.
E seria simples se a questão se resumisse aos senadores. Há também os lobbies dos interesses e os conflitos no seio da burocracia funcional do Senado. Corporação que, aliás, se acumpliciou com os políticos e, ao longo dos anos, adquiriu autonomia e poder próprios, como parece ter sido o caso de diretores mais poderosos e referenciados que senadores e até reverenciados pelos senadores. Arquitetos dos quebra-galhos em território nacional ou estrangeiro; construtores do jeitinho oficial no paralelo, o ato secreto, foram operadores da privatização do Senado. E socializaram privilégios estendendo-os a toda tigrada, inventando, entre tantos absurdos, novas modalidades de fantasmas, como os de tempo integral e os de horas extras.
2) Demonização. Nos últimos anos, o poder de controlar algumas dezenas de votos na Câmara e no Senado, o passamento de figuras mais experientes, a menoridade política da maioria de seus pares, o esquecimento de parte do passado e o reconhecimento de seu papel na consolidação do regime democrático fizeram de José Sarney uma espécie de sacerdote da política nacional. Tornou-se uma referência pela rede de apoios em vários partidos, facilidade com que transita no Senado, no PMDB, nas autarquias e no próprio governo federal. Sua parceria com Renan Calheiros sedimentou a aliança de seu partido com o governo por meio de um duto que transmite recursos públicos para o PMDB e votos, capilaridade e tempo de televisão do PMDB para o governo.
Menos por princípios do que por ocasião, colocar o ex-presidente na berlinda é eficaz para dificultar a vida de Lula e seus planos para Dilma Roussef. O presidente não pode abandoná-lo sem perder apoio no PMDB e blindagem no Senado. Mas, ao apoiá-lo, coleciona mais desgastes com o PT antigo, com a classe média e com a mídia. É uma sinuca, mas entre e blindagem e o apoio político e eleitoral, por um lado, e o desgaste com setores com quem já se vê agastado, Lula não titubeia.
Para variar, quem vacila é o PT que, entre duas opções, opta por uma terceira, ao imaginar se possível lavar as mãos, fragilizar o aliado-adversário (PMDB) sem perder apoio mais adiante; ganhar nas frentes eleitoral e política. Como isso não existe, boquiaberta, a bancada agora bate palmas para louco dançar.
Independente de seus deslizes, Sarney é, sim, alvo estratégico e demônio de ocasião. E, para seus pares, penitentes dos mesmos pecados, excelente bode expiatório.
3) Governabilidade. Ao longo da redemocratização, a governabilidade tem se transformado em justificativa para canalhices, capitulações e arengas de todo tipo. Sempre seria possível tensionar mais, ceder menos. Claro, ir para o conflito quando fosse o caso. Mas não é tão simples. Figuras experientes como Tancredo, Fernando Henrique e Lula preferem navegar com mais segurança, pagar o necessário para cruzar o oceano dos mandatos.
Tancredo admitiu acordos com o diabo, se fosse o caso. Como foi o caso, a Antônio Carlos Magalhães coube o Ministério das Comunicações e José Sarney, o vice, assumiu na agonia do presidente eleito. FHC subiu em jegue, defendeu Humberto Lucena e manteve o poder de ACM enquanto foi possível; figurou, constrangido, em outdoor com Maluf, adversário de Mário Covas. Com Lula, nada é muito diferente, a não ser talvez o fato de tudo ser mais explícito e até banal.
Não somente não se faz mudança sem maioria, como também a perda de controle da política no Parlamento é fio desencapado. CPIs desgovernadas transformam a vida do governante; são "o fim do mundo", como em 2005. São recursos legítimos, mas também instrumentos políticos numa sociedade que faz do escândalo um espetáculo político-eleitoral-televisivo; em circunstâncias em que nem a oposição e nem situação têm foco, direção e controle, despertam o receio do apocalipse.
Enfim, a insegurança aumenta o preço da proteção e do apoio oferecido por aliados como o PMDB. Conscientemente, a oposição contribui para isso. No curto prazo, este não é exatamente um problema seu: o governo que se vire. Será, no entanto, quando vier, se vier, a ser governo novamente. Mas já aí estarão todos mortos.
Carlos Melo é cientista político, doutor pela PUC-SP, professor de Sociologia e Política do Insper - Instituto de Ensino e Pesquisa. É autor de "Collor, o ator e suas circunstâncias".
Um comentário:
"Com Lula, nada é muito diferente, a não ser talvez o fato de tudo ser mais explícito e até banal."
É a única frase que presta desse artigo, já que define bem a profunda afinidade e cumplicidade do desgoverno do "Coronel" com tudo aquilo que há de pior na política brasileira!
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