29/07/2009
Artigo publicado no site Observatório de Imprensa
A atual conjuntura política, marcada pela crise no Senado Federal e pelas suspeitas em relação à administração da Petrobras, recoloca em pauta uma velha questão sobre o alcance e a influência dos jornalões da grande mídia: a Folha de S.Paulo, o Estado de S.Paulo e O Globo: merecem eles a importância que a elite política e os “intelectuais” lhes atribui na formação da opinião pública brasileira, vis à vis, por exemplo, a televisão e/ou a internet?
Há alguns anos, muito antes da expansão da internet, venho insistindo que não (ver, por exemplo, “Jornal ou TV: qual mídia é mais importante na formação da opinião pública brasileira?” in Comunicação, Mídia e Consumo, vol. 2, nº 3, março de 2005). Não merecer a importância que se atribui a eles não significa que devam ser ignorados. Absolutamente. Significa, ao contrário, não se atribuir a eles uma relevância nacional que, se algum dia tiveram, não têm mais.
A apresentação deste argumento, todavia, mesmo diante de várias evidências, inclusive sobre a penetração da internet e a relativa democratização do seu acesso, é frequentemente rechaçada por diferentes interlocutores que acreditam ser ainda os jornalões e seus colunistas os principais responsáveis pela definição da agenda pública nacional.
O tema é complexo e, claro, não se pretende esgotá-lo e, muito menos, resolvê-lo. Apenas aceitar o desafio de continuar o debate.
Dois aspectos do argumento
Não vou retomar aqui todos os aspectos do argumento. Os dados relativos à queda de circulação dos jornalões são por demais conhecidos. Da mesma forma, já se discutiu muito sobre o “aproveitamento”, por emissoras de rádio e televisão, via agências de notícias, das matérias produzidas pelos jornalões. Creio que não há dúvida também sobre as importantes questões que surgiram recentemente quanto à credibilidade dos jornalões. Não pretendo, portanto, retomar esses pontos. Quero apenas lembrar dois aspectos.
Primeiro, o caráter regional dos jornalões. O Globo é, sobretudo, um jornal carioca, da mesma forma que a Folha e o Estadão são jornais paulistas. Eles não são jornais que circulam e/ou são lidos nacionalmente.
O segundo aspecto é, na verdade, um desdobramento do primeiro e merece ser explorado um pouco mais. Para quem exatamente os jornalões estão falando?
Uma das linhas de pesquisa sobre “a produção das notícias” (newsmaking) que se consolidou dentro do campo de estudo da Comunicação, nos últimos anos, busca relacionar a imagem da realidade social construída na e pela mídia aos valores partilhados e interiorizados pelos jornalistas acerca de como devem exercer sua profissão.
Há evidencias de que, na seleção das matérias a serem noticiadas, predominam as referências implícitas ao grupo de colegas e às fontes em relação às referências implícitas ao próprio público, isto é, às audiências e/ou aos leitores. Isto significa que, enquanto o público em geral é pouco conhecido pelos jornalistas, o contexto profissional-organizativo-burocrático imediato exerce uma influência decisiva na seleção do que vai ser noticiado. Vale dizer, a origem principal das expectativas, orientações e valores profissionais dos jornalistas não é o “público” para o qual eles e elas deveriam escrever, mas o “grupo de referência” constituído, sobretudo, por colegas e fontes.
Na verdade, as fontes com as quais os jornalistas “conversam” regularmente constituem um público fundamental para suas próprias notícias. Jornalistas recebem muito mais “reações” sobre suas matérias, coberturas, reportagens e análises de suas próprias fontes do que de qualquer outro grupo social. Eles estão permanentemente em contato com suas fontes e delas recebem cumprimentos, correções, reclamações, afrontas, negativas de acesso, cassação de credenciais etc.
Verifica-se, portanto, que, como afirmou Bernardo Kucinski, “a elite dominante é, ao mesmo tempo, a fonte, a protagonista e a leitora das notícias; uma circularidade que exclui a massa da população da dimensão escrita do espaço público”. Ora, essa constatação é verdadeira para todo o território nacional. Desta forma, além de não ser nacional, os jornalões são excludentes porque lidos, sobretudo, apenas pela elite brasileira - seja ela nacional, regional ou local.
E as conseqüências?
A prática profissional do jornalismo, não só nos jornalões, cria uma relação circular entre jornalista-fonte-jornalista que se auto-alimenta permanentemente. E essa relação circular jornalista-fonte-jornalista tende a se tornar assimétrica, enfraquecendo a fonte e fortalecendo os jornalistas. Enfraquece a fonte na medida em que, para tornar públicas as informações de seu interesse, ela fica “cativa” de um pequeno grupo de jornalistas. Por outro lado, fortalece os jornalistas (a) por eles terem o privilégio do acesso contínuo a fontes “autorizadas” e “acreditadas”; (b) por terem a opção de selecionar, omitir, enfatizar e distorcer informações; e, ainda, (c) por “operarem” protegidos e no interesse dos grupos de mídia no qual trabalham.
Parece correto afirmar, portanto, que os jornalões e seus jornalistas funcionam dentro de uma circularidade restrita a camadas específicas da elite política e “intelectual” brasileira. Nada mais do que isso.
Registre-se que a supervalorização indevida do poder dos jornalões, muitas vezes, provoca uma avaliação equivocada de qual realmente é a “opinião pública” majoritária no país e, consequentemente, pode conduzir a equívocos importantes, inclusive na formulação de políticas públicas por parte de setores do poder público.
Resta saber qual o poder concreto que esta elite política e “intelectual” exerce na vida política nacional. Nos processos eleitorais, se a eleição presidencial de 2006 servir como exemplo, as diversas “esferas públicas” que coexistem e funcionam na sociedade brasileira, fora do alcance dos jornalões, revelaram uma relativa autonomia.
Será que funciona também assim nos outros inúmeros aspectos da vida cotidiana? Essa é a questão.
Venício Lima é professor da UnB
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