quinta-feira, 9 de julho de 2009

O ano da virada


08/07/2009

Antonio Luiz Monteiro Coelho da Costa

Quem diria? A Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE), que a partir de 1961 começou a reunir os países do chamado “Ocidente industrializado”, está desde 2007 cortejando cinco dos maiores países periféricos – Brasil, China, Índia, Indonésia e África do Sul – para aderirem a seus quadros. Da perspectiva dos anos 60, seria inesperado esses países poderem algum dia cogitar de ser admitidos na organização. Mas o mais curioso é que nenhum deles se interessou.

Claro que nenhum dos que compõem o chamado E-5 (de enhanced engagement, “engajamento avançado”, do ponto de vista da OCDE) tem desenvolvimento e renda per capita comparável com os chamados “países ricos”. Cresceram o suficiente, porém, para ganhar um peso cada vez mais considerável na economia mundial. “Nós vimos que a OCDE não continuará a ser relevante sem a participação desses países”, reconheceu um embaixador da organização ao repórter Cristiano Romero, segundo sua reportagem no jornal Valor Econômico de 22 de junho.

Um marco simbólico importante é que em 2009, pela primeira vez desde os anos 1880 e a extensão do imperialismo à escala planetária, os países do núcleo da OCDE respondem por menos de 50% do Produto Mundial Bruto. Ao longo dos anos 80 e 90 representavam cerca de 60% da economia mundial, caíram para 51% em 2008, devem ficar em 49% em 2009 e sua participação continuará a cair continuamente, ficando em 44% no ano de 2014, segundo as projeções do FMI – menos do que nos tempos de Solano López e Napoleão III.

Por núcleo da OCDE entendam-se Europa Ocidental (mais a Alemanha Oriental, incorporada em 1990), América do Norte, Japão, Austrália e Nova Zelândia – o conjunto tradicional dos “ricos”. Desde a fundação, a organização incluía também a Turquia e, a partir de 1994, passou a incorporar mais alguns países semiperiféricos: México, Coreia do Sul, República Tcheca, Polônia, Hungria e Eslováquia. Contando todos estes, a OCDE ainda representa 56% da economia mundial em 2009, mas cairá para 51% em 2014.

Igualmente interessante é a redução do peso do núcleo do núcleo, ou seja, o G-7. Até 1996, esse foro representava a maior parte do PIB mundial e de fato agia em relação à economia do planeta como um acordo de acionistas majoritários. Em 1997, a soma dos sete grandes caiu pela primeira vez abaixo dos 50%. Coincidentemente, a Rússia (cerca de 3% do PIB mundial) foi formalmente admitida naquela data, o que manteve a participação do grupo ligeiramente acima dos 50% por mais cinco anos.

Em 2005, o grupo, mesmo ampliado, passara a 48% da produção mundial e já não conseguia desempenhar seu papel tradicional. Nesse ano, Tony Blair, ante a necessidade de avançar no tema do aquecimento global, propôs então, pela primeira vez, estender o diálogo a mais cinco países: Brasil, China, Índia, África do Sul e México. Além de serem importantes em termos de contribuição para o efeito estufa, capitaneavam a aliança conhecida como G-20, que desde 2003, na reunião da OMC em Cancún, desafiava o consenso dos países ricos.

O primeiro encontro formal do G-8+5, visando a questão climática, deu-se em 2007. No mesmo ano o governo francês propôs a incorporação integral dos cinco países ao grupo e, em 2008, também do Egito, substituindo o G-8 por um G-14. A ideia teve apoio do Reino Unido, mas os outros participantes resistiram e EUA e Japão se opuseram explicitamente. Na verdade, os republicanos estadunidenses quiseram voltar a excluir a Rússia do grupo, como propôs explicitamente John McCain em sua campanha eleitoral.

Mas a verdade é que, com Rússia ou sem ela, o G-8, apesar de seu quase-monopólio do poder militar, não tem mais um peso suficiente para decidir sobre os rumos econômicos do globo. Em 2009, os sete grandes representam só 41% do produto mundial e devem cair para menos de 37% até 2014. Já o G-14 proposto por Nicolas Sarkozy significaria hoje cerca de 68% da economia do planeta e manteria essa participação (quase a mesma de 1992) pelo futuro previsível, sempre segundo as projeções do FMI.

Tanto a tentativa de ampliação da OCDE quanto a do G-8 apontam para uma notável quebra de paradigma em relação aos arranjos geopolíticos das décadas anteriores.

Do início da Guerra da Coreia, em 1947, à queda do Muro de Berlim, em 1989, o mundo foi dividido fundamentalmente entre Oeste e Leste. De um lado, a Otan (à qual a OCDE original acrescentava o Japão e os países capitalistas “neutros” da Europa) cujos satélites Cento, Seato, Anzus e OEA procuraram estender sua influência ao Oriente Médio, Sudeste Asiático, Oceania e América Latina. Do outro, o Pacto de Varsóvia e o Comecon.

Índia, Egito e Iugoslávia tentaram organizar um grupo suficientemente forte para atuar com autonomia em relação às duas superpotências e seus “mundos”, mas o Movimento dos Não-Alinhados – o Terceiro Mundo propriamente dito – não teve coesão ideológica, política ou econômica e a maioria dos países nele alistados caiu na esfera de influência de alguma das superpotências. China e Índia tinham peso para atuar com mais independência, mas seus atritos crônicos as impediam de agir em conjunto.

As divisões entre os países ricos a partir de Bretton Woods, a ascensão temporária dos exportadores de petróleo e o crescimento da influência da União Soviética nos anos 70 pareceram anunciar um mundo mais multilateral, mas com a recuperação da hegemonia financeira pelos EUA e o colapso da URSS, o mundo pareceu tornar-se subitamente unilateral. Formaram-se pelo menos três concepções sobre o que substituiria a Guerra Fria.

A primeira era exemplificada por O Império e os Novos Bárbaros, livro de 1991 do escritor francês Jean-Christophe Rufin, representativo da concepção de um mundo dividido entre Norte – incluindo o antigo bloco soviético – e Sul por uma ideologia de “fronteira” análoga à que opunha o Império Romano a bárbaros ignorados e ignorantes, só se importando com eles quando precisasse defender suas fronteiras territoriais e econômicas.

O livro recebeu muita atenção no Brasil, graças aos elogios a Fernando Collor (prefaciador da edição brasileira), portador da “esperança” contra o “marxista” Lula, mas o autor dirigia-se apenas ao leitor do Norte – como se o do Sul fosse mesmo o bárbaro iletrado da Antiguidade – e o conclamava a assumir a responsabilidade do Império e superar a divisão forçando a democratização do Sul, ao qual faria falta impor os valores democráticos para que possa ser admitido na civilização do “Império”.

A segunda era o triunfalista e utópico Fim da História e o Último Homem do filósofo estadunidense Francis Fukuyama, publicado no ano seguinte para apontar, pelo contrário, uma caminhada quase automática a um mundo homogêneo, unificado pela democracia liberal.

A terceira era O Choque das Civilizações, formulada em artigo de 1993 do cientista político Samuel Huntington, também dos EUA, que apontava para um mundo dividido em múltiplas “civilizações”, ou seja, blocos de caráter cultural e religioso – nove, segundo o autor – “estáticos, divorciados do desenvolvimento histórico e da mudança por meio da interação com outras sociedades”, como apontou a crítica do historiador estadunidense Eric Foner.

A retórica conservadora apoderou-se muito do discurso de Huntington para promover a intolerância contra os imigrantes de “civilizações” estrangeiras, manter a Turquia fora da União Europeia, justificar medidas de exceção na “Guerra contra o Terrorismo” e dar ao racismo um disfarce “cultural” mais aceitável.

Mas o pragmatismo neoliberal e economicista da era Clinton, enquanto acenava com a globalização inexorável à Fukuyama para um futuro indefinido, seguiu mais de perto o roteiro criticado por Rufin. Thomas Friedman, colunista do New York Times, expressou esse consenso ao escrever que a deterioração da situação política e econômica dos países mais periféricos podia ser ignorada: bastava isolá-los atrás de uma “porta corta-fogo”. Foi antes do 11 de setembro, naturalmente.

A configuração tomada pela OCDE e Otan seguiu de perto a concepção de Rufin, a de um núcleo imperial reforçado pela inclusão de alguns “tampões” cuidadosamente selecionados. Deixa de fora a Rússia, devido a suas estruturas econômicas inconciliáveis como os padrões neoliberais, mas quando as potências ocidentais se convencerem de que não se desmancharia em republiquetas inofensivas, consolaram-na com a inclusão “honorária” no G-8 em deferência a seu respeitável arsenal nuclear.

O mundo de fato parecia se dividir entre um condomínio de ricos (e alguns meio-ricos privilegiados por sua companhia) dispostos a defender seus interesses e uma ralé mal diferenciada, abrangendo desde países mais ou menos passíveis de “promoção” a longo prazo (alguns dos quais batiam insistentemente na porta) até casos “irrecuperáveis”.

Mas a concepção, convincente na aparência, é falha na essência. O Império Romano era uma economia praticamente autossuficiente, que não precisava dos bárbaros para existir. A civilização capitalista global, pelo contrário, precisa cada vez mais dos recursos e do trabalho do Sul, quer sua cultura e valores se amoldem aos ideais neoliberais, quer não. Com o fim da URSS, se não antes, o sistema deixou de ter “lado de fora”, espacial ou social.

O crescimento explosivo do sistema financeiro internacional e dos lucros das bolsas nos anos 90 não teriam sido gerados sem a transferência da base produtiva e de seu potencial de crescimento para a periferia. Não de maneira homogênea, mas com ênfase em alguns de seus países mais importantes, como China e Índia.

Não há como tratar tais países como massa indiferenciada e irrelevante de bárbaros, nem como incluí-los no “mundo desenvolvido” da OCDE, dentro do futuro previsível. Ou dentro de qualquer perspectiva verossímil, pois é consenso que a ecologia do planeta não é capaz de suportar a extensão do padrão de consumo do Norte à maior parte dessas populações. Em termos práticos, isso significa que sua economia política e seus interesses não são inteiramente assimiláveis aos do Ocidente, não por estarem culturalmente “fora”, mas por estarem “dentro” de forma parcialmente antagônica.

Nem por isso, entretanto, deixam de se tornar tremendamente importantes. À China, com 1,3 bilhão de habitantes, basta um quarto da renda per capita dos EUA para ter um peso superior na economia global. Essa possibilidade pode se realizar antes de 2020, mas nem por isso o modo de vida, aspirações e necessidades dos chineses se confundirão com os da OCDE. Pelo contrário, os conflitos devem crescer com a disputa por recursos escassos e pelo “direito” de poluir a atmosfera com gases geradores de efeito estufa.

Isso já devia ter sido percebido nos anos 90, mas só começou a aflorar à consciência no novo século. Em novembro de 2001, Jim O’Neill, analista do Goldman Sachs, chamou a atenção para as perspectivas do conjunto que denominou BRIC – Brasil, Rússia, Índia e China. Timidamente, previu que seriam 10% da economia global em 2010 e superariam o G-7 em 2050. Pelos conceitos do FMI, representaram 22% da produção mundial em 2008 (15% pelo critério do câmbio) e bem podem ultrapassar o G-7 na próxima década.

Em setembro de 2003, o então chamado G-20 se rebelou contra o andamento da Rodada de Doha e o modelo e o cronograma de abertura comercial que os países da OCDE quiseram impor em Cancún. Dois meses depois, foi o projeto estadunidense da Alca que naufragou por razões análogas, tendo o Itamaraty desempenhado um papel importante em ambos os casos.

Isso foi tratado como molecagem inconsequente pelos países desenvolvidos e por boa parte dos economistas e jornalistas neoliberais do Sul, que esperavam uma rápida desagregação dessa resistência e a imposição da vontade dos países ricos em condições ainda mais desvantajosas para os rebeldes. Mas a correlação de forças já estava mudando e os países periféricos se uniam por sólidos interesses comuns, não por afinidades políticas passageiras.

Formaram-se novas alianças, inclusive político-militares. Em 2001, China, Rússia e países da Ásia Central juntaram-se na Organização de Cooperação de Xangai, que gradativamente vai-se tornando uma rival da Otan. A maioria dos países africanos organizou-se em 2002 na União Africana, visando tomar a seu cargo os conflitos regionais e minimizar a interferência externa. Ideia semelhante inspirou a Unasul em 2008, que teve seu batismo de fogo ao mediar o atrito entre Colômbia e Equador sem interferência dos EUA e da OEA. Paralelamente, Hugo Chávez organizou sua Aliança Bolivariana.

A crise de 2008 acelera e aprofunda o processo. De mera sigla inventada por um analista – não havia, à época, maiores laços entre os quatro países –, o BRIC tornou-se organização real em 2009. De mera correia de transmissão do G-8, o grupo das vinte maiores economias – também chamado G-20, mas muito diferente do G-20 de Cancún – começou também neste ano a se tornar um foro real, com discussões políticas e presença dos chefes de Estado.

Sem pedir licença à OCDE ou ao FMI, o Mercosul, a Alba, a Asean, o BRIC e outras organizações começam a planejar a substituição do dólar por acordos de troca, moedas regionais alternativas e mesmo uma moeda global alternativa, proposta impulsionada com entusiasmo pela Rússia e com mais cautela e seriedade pela China, que não pode brincar com suas reservas de 2 trilhões de dólares.

Não só a ideia de um Império unilateral dos EUA como também a da hegemonia imperial multilateral da América do Norte, Europa e Japão tornaram-se obsoletas. Sozinhos ou em grupo, esses países estão perdendo o comando da economia global e não podem cooptar os rivais realmente importantes sem diluir sua influência e abrir mão de suas exigências.

Mesmo antes da crise do neoliberalismo e do investment grade, não interessava ao Brasil aderir à abertura de mão única e aos acordos que favorecem os países de origem do capital na tributação das transnacionais e impedem medidas para restringir o fluxo de capitais em caso de necessidade, como ainda exige a OCDE. Muito menos lhe convém a posição dos ricos sobre aquecimento global – fixar os limites de emissão com base em 1990, o que seria congelar o status quo econômico neste momento a eles favorável.

Se isso não interessa a Brasília, muito menos a Pequim ou Nova Délhi, embora ainda possa cooptar pequenos países semiperiféricos já comprometidos com o liberalismo, como Chile, Israel, Eslovênia e Estônia. A Rússia é ambígua: aproxima-se estrategicamente da China, é difícil imaginá-la em harmonia com os EUA e a União Europeia no essencial, mas reluta em ampliar o G-8, negocia com a OCDE e os limites de 1990 para as cotas de emissão lhe interessam.

Com todas as suas discordâncias, os demais países periféricos descobrem interesses comuns importantes e começam a discutir o futuro do mundo com os países já-não-tão-centrais. Não como uma massa passiva de bárbaros a serem civilizados, mas como um grupo com interesses e ideias diferentes, articulado em torno dos líderes do G-20 de Cancún. Não só os EUA como o G-8 e a OCDE terão de se conformar em ser interlocutores e não ditadores.
CartaCapital.

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