sexta-feira, 24 de julho de 2009

O Sujeito da Pós-Mediocridade

23/07/2009

Márcia Denser*

Referindo-se ao “sujeito da oração”, um escritor amigo meu definiu com precisão a crise do sujeito contemporâneo: antes, havia o tal Sujeito Onisciente (a terceira pessoa absoluta, quando o escritor se coloca no lugar de Deus ou de ninguém), agora tudo o que existe são Vários Sujeitos Inconscientes. Ou almas parciais. Ou fragmentos do sujeito. Que aí deixa de ser sujeito pois se tornou objeto ou instrumento da ação de um Outro Impessoal Definitivamente Colocado do Lado de Fora – seja Alá, Cristo ou o Mercado – fodendo também, de passagem, o livre arbítrio e a subjetividade. Ou seja, destruindo a nossa humanidade.

O pleno desenvolvimento da razão instrumental - a tecnologia - inerente ao capitalismo, resultou num déficit da razão pura, ou seja, na faculdade de julgar a priori o que é verdadeiro ou falso, o bem e o mal. Esta é a marca que caracteriza a virada chamada pós-moderna: o momento em que o capitalismo, depois de ter subjugado todo o plano material, empenha-se na “redução das cabeças”. Assistimos atualmente à destruição da santíssima trindade do sujeito que teve origem na modernidade: “o sujeito crítico” (kantiano), “o sujeito neurótico” (freudiano) e “o sujeito marxista” – e vimos instalar-se o “sujeito pós-moderno”. E o processo simultâneo de quebra do sujeito moderno e produção do pós-moderno foi extremamente rápido.

Mas essa morte programada do sujeito da modernidade é paralela à transformação do capitalismo nos últimos vinte anos em neoliberalismo. Que essencialmente se ocupa em desfazer todas as formas que anteriormente prevaleciam, deixando de se referir a qualquer valor transcendental para se dedicar às trocas, que não valem mais enquanto garantidas por uma potência superior de ordem transcendental ou moral, mas pelo que colocam diretamente em relação enquanto mercadorias.

Em síntese, a troca comercial des-simboliza o mundo.

Toda transcendência é recusada, porque tudo o que existe são mercadorias trocadas por seu estrito valor de mercado. Atualmente, somos obrigados a nos livrar de todos aqueles elementos simbólicas que garantiam nossas trocas até pouquíssimo tempo. O valor simbólico é submetido ao desmanche em proveito do valor monetário da mercadoria para que nenhuma consideração – de ordem moral ou transcendental ou filosófica – possa constituir um obstáculo à sua livre circulação. Disso resulta uma des-simbolização do mundo. Os homens não devem mais se conciliar com os valores simbólicos transcendentes, mas simplesmente se submeter ao jogo da circulação infinita e ampliada da mercadoria. A esfera de aplicação do modelo [de mercado] se estendeu muito além do domínio da troca comercial e, nesse caso, o preço a pagar por essa ampliação é a alteração da função simbólica. Que determina a adaptação do indivíduo à mercadoria (e não ao contrário)

Essa mudança radical no jogo das trocas leva a uma verdadeira mutação antropológica: quando qualquer garantia simbólica entre os homens é liquidada, é a própria condição humana que muda. Porque o neoliberalismo - como todas as ideologias que irromperam ao longo do século XX ( comunismo, nazismo) - não quer outra coisa senão a fabricação de outro homem. E a grande força dessa nova ideologia, em relação às anteriores, decorre do fato de não ter começado visando diretamente o homem por meio de programas de reeducação e de coerção. Ela introduziu um novo estatuto para o objeto, definido como simples mercadoria, esperando que os homens se transformassem no ato de adaptar-se à mercadoria, promovida como a única coisa real.

O treinamento do indivíduo se faz em nome de um “real”, que é melhor aceitar com resignação do que se opor: porque ele deve sempre parecer agradável, desejado, como se tudo, absolutamente tudo, não passasse de entretenimento (não fosse pra valer?).

Voltando à filosofia kantiana: a dignidade, que não pode ser substituída, “não tem preço” e “não tem equivalente”, refere-se à autonomia da vontade e se opõe a tudo o que tem um preço. É por isso que o sujeito crítico não convém à troca comercial, pois é exatamente o contrário que se exige na venda, no marketing e na promoção deliberadamente mentirosa da mercadoria.

Na des-simbolização atual, não é conveniente o sujeito crítico com seus pretextos morais, tampouco o sujeito neurótico com seus maneirismos difusos. O que se exige agora é um sujeito precário, acrítico e psicotizante - um sujeito “aberto a todas as conexões comerciais e a todas as flutuações da identidade”. Enfim, o Sujeito da Pós-Mediocridade.


*A escritora paulistana Márcia Denser publicou, entre outros, Tango Fantasma (1977), O Animal dos Motéis (1981), Exercícios para o pecado (1984), Diana caçadora (1986), Toda Prosa (2002) e Caim (2006). Participou de várias antologias importantes no Brasil e no exterior. Organizou três delas - uma das quais, Contos eróticos femininos, editada na Alemanha. Mestre em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP, é pesquisadora de literatura brasileira contemporânea, jornalista e publicitária.
Fonte:Congresso em Foco.

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