Estimados leitores, dia de fúria aqui na laje Carneiro da Cunha. Pois, eis que lendo a Folha de domingo, uma das poucas coisas que eu ainda faço em papel-jornal, dou de cara com uma matéria sobre as trabalhadoras que vêm em números crescentes dos países vizinhos pra buscar oportunidades no Brasil, mais especificamente em São Paulo.
Sabem como a Folha as chama, prezados leitores: “latinas”. Não peruanas, paraguaias, bolivianas, sul-americanas; não. “Latinas”.
Primeira pergunta: se elas fossem chilenas, uruguaias, ou argentinas, ainda seriam chamadas de “latinas”? Segunda pergunta: o que as torna latinas? O fato de terem nascido na América Latina? Trabalhadoras canadenses do Quebec, ou do México seriam igualmente chamadas de “latinas” pela Folha? Trabalhadoras brasileiras nasceram onde?
Isso soou, meus caros leitores, imperialista, arrogante, racista. Para uma instituição nonagenária — e a Folha não é um veículo, mas, sim, uma instituição –, fica muito, muito mal, a não ser que reflita mesmo o que ela pensa, o que talvez a elite da elite paulistana pense. Nossos vizinhos mais pobres agora têm um nome, e eles, da mesma maneira que na Flórida, na California, no Arizona ou em Nova York, serão chamados de latinos. Que beleza, não é mesmo? Somos tão potência, tão novos-ricos, que podemos adotar desde já alguns dos piores hábitos dos nossos grandes vizinhos do Norte, reduzindo os mais pobres a algo que os marque definitivamente como diferentes e exploráveis.
“A empresa x mantinha como escravos um grupo de latinos”, já dá pra imaginar manchetes em um futuro próximo. Latinos, não gente exatamente como a gente, portanto, mais passíveis de abusos e discriminações, começando por um nome, uma palavra que os defina. Isso, estimados leitores, é uma vergonha.
Não vamos fazer de conta aqui que não sabemos da força e importância das palavras. Lembram como torturávamos algum colega mais frágil na escola, colocando sobre ele um apelido desabonador, que o manteria para sempre na defensiva e em inferioridade? Isso era, de alguma forma, algo bom que fazíamos, ou uma pura e simples maldade, nunca inocente?
A Folha pode alegar inocência?
Que raio de palavra é essa, que os americanos usam para separar a eles, brancos, protestantes, saxônicos, das hordas vindas do Sul para colher suas frutas, cortar suas gramas, limpar suas casas? Latino? Eu gosto muito de ser latino-americano, eu sou latino, portanto, agora quero que a Folha se refira a mim como latino também. Somos todos latino-americanos, caso a Folha tenha esquecido. Todos temos a mesma história trágica, dura, triste, rica, profundamente humana. Transformar a uns em mais ou menos dignos dessa história é coisa de Orwell, de dizer que somos todos animais, mas alguns são mais iguais do que os outros.
O Brasil prospera, é verdade. E, como em todos os países que passam por esse processo, os seus cidadãos passam a não querer mais fazer certos trabalhos, tais como os mais duros ou mais básicos. Quem passa a ocupar esses espaços são migrantes, de outras partes do país, ou de outras partes do continente ou do mundo. Isso, de certa forma, faz parte do jogo. Os migrantes sofrem, topam a vida dura em troca de um futuro melhor para si mesmos e seus filhos, e, normalmente, o conseguem. O que não é aceitável é que sofram abusos por conta de sua condição migrante, isso nunca. E nomeá-los como diferentes é uma boa forma de tornar aceitável a sua exploração, a sua redução a humanos menos iguais, estimada Folha, e é exatamente isso que esse latino aqui está dizendo que vocês não podem, não devem fazer.
Uma das boas coisas brasileiras é não termos uma noção muito clara do que seja ser estrangeiro aqui, algo que ajuda muito na hora em que os estrangeiros, quando o desejam, deixam de ser o que eram e passam a ser brasileiros. Não vamos estragar algo tão importante, e que tem funcionado tão bem, por conta de uma mera, estúpida, desnecessária, arrogância elitista e hegemônica.
Folha, por favor: simplesmente, mude.
Um abraço do latino,
Marcelo Carneiro da Cuña
* Marcelo Carneiro da Cunha, jornalista e escritor de Antes que o Mundo Acabe, Insônia, Simples e Depois do Sexo, entre outros. Adaptações para o cinema resultaram no curta O Branco, premiado em Berlim, e Antes que o Mundo Acabe, escolhido pela Associação Paulista de Críticos de Artes, como o melhor filme brasileiro de 2010, entre outras premiações. Foi escritor-residente da Ledig House, em Nova York, e autor convidado da Fundação Japão. Leciona criação ficcional na Academia Internacional de Cinema, de São Paulo. Produziu os livros Um Astronauta no Chipre, de Jorge Furtado, e Na Contra-mão da Pré-História, de Tarso Genro. Colunista do Terra Magazine, e Sul 21, publica pelas editoras Projeto, e Record. Porto-alegrense e torcedor do Grêmio, começa a simpatizar com o Corinthians. Vive em São Paulo.
Sabem como a Folha as chama, prezados leitores: “latinas”. Não peruanas, paraguaias, bolivianas, sul-americanas; não. “Latinas”.
Primeira pergunta: se elas fossem chilenas, uruguaias, ou argentinas, ainda seriam chamadas de “latinas”? Segunda pergunta: o que as torna latinas? O fato de terem nascido na América Latina? Trabalhadoras canadenses do Quebec, ou do México seriam igualmente chamadas de “latinas” pela Folha? Trabalhadoras brasileiras nasceram onde?
Isso soou, meus caros leitores, imperialista, arrogante, racista. Para uma instituição nonagenária — e a Folha não é um veículo, mas, sim, uma instituição –, fica muito, muito mal, a não ser que reflita mesmo o que ela pensa, o que talvez a elite da elite paulistana pense. Nossos vizinhos mais pobres agora têm um nome, e eles, da mesma maneira que na Flórida, na California, no Arizona ou em Nova York, serão chamados de latinos. Que beleza, não é mesmo? Somos tão potência, tão novos-ricos, que podemos adotar desde já alguns dos piores hábitos dos nossos grandes vizinhos do Norte, reduzindo os mais pobres a algo que os marque definitivamente como diferentes e exploráveis.
“A empresa x mantinha como escravos um grupo de latinos”, já dá pra imaginar manchetes em um futuro próximo. Latinos, não gente exatamente como a gente, portanto, mais passíveis de abusos e discriminações, começando por um nome, uma palavra que os defina. Isso, estimados leitores, é uma vergonha.
Não vamos fazer de conta aqui que não sabemos da força e importância das palavras. Lembram como torturávamos algum colega mais frágil na escola, colocando sobre ele um apelido desabonador, que o manteria para sempre na defensiva e em inferioridade? Isso era, de alguma forma, algo bom que fazíamos, ou uma pura e simples maldade, nunca inocente?
A Folha pode alegar inocência?
Que raio de palavra é essa, que os americanos usam para separar a eles, brancos, protestantes, saxônicos, das hordas vindas do Sul para colher suas frutas, cortar suas gramas, limpar suas casas? Latino? Eu gosto muito de ser latino-americano, eu sou latino, portanto, agora quero que a Folha se refira a mim como latino também. Somos todos latino-americanos, caso a Folha tenha esquecido. Todos temos a mesma história trágica, dura, triste, rica, profundamente humana. Transformar a uns em mais ou menos dignos dessa história é coisa de Orwell, de dizer que somos todos animais, mas alguns são mais iguais do que os outros.
O Brasil prospera, é verdade. E, como em todos os países que passam por esse processo, os seus cidadãos passam a não querer mais fazer certos trabalhos, tais como os mais duros ou mais básicos. Quem passa a ocupar esses espaços são migrantes, de outras partes do país, ou de outras partes do continente ou do mundo. Isso, de certa forma, faz parte do jogo. Os migrantes sofrem, topam a vida dura em troca de um futuro melhor para si mesmos e seus filhos, e, normalmente, o conseguem. O que não é aceitável é que sofram abusos por conta de sua condição migrante, isso nunca. E nomeá-los como diferentes é uma boa forma de tornar aceitável a sua exploração, a sua redução a humanos menos iguais, estimada Folha, e é exatamente isso que esse latino aqui está dizendo que vocês não podem, não devem fazer.
Uma das boas coisas brasileiras é não termos uma noção muito clara do que seja ser estrangeiro aqui, algo que ajuda muito na hora em que os estrangeiros, quando o desejam, deixam de ser o que eram e passam a ser brasileiros. Não vamos estragar algo tão importante, e que tem funcionado tão bem, por conta de uma mera, estúpida, desnecessária, arrogância elitista e hegemônica.
Folha, por favor: simplesmente, mude.
Um abraço do latino,
Marcelo Carneiro da Cuña
* Marcelo Carneiro da Cunha, jornalista e escritor de Antes que o Mundo Acabe, Insônia, Simples e Depois do Sexo, entre outros. Adaptações para o cinema resultaram no curta O Branco, premiado em Berlim, e Antes que o Mundo Acabe, escolhido pela Associação Paulista de Críticos de Artes, como o melhor filme brasileiro de 2010, entre outras premiações. Foi escritor-residente da Ledig House, em Nova York, e autor convidado da Fundação Japão. Leciona criação ficcional na Academia Internacional de Cinema, de São Paulo. Produziu os livros Um Astronauta no Chipre, de Jorge Furtado, e Na Contra-mão da Pré-História, de Tarso Genro. Colunista do Terra Magazine, e Sul 21, publica pelas editoras Projeto, e Record. Porto-alegrense e torcedor do Grêmio, começa a simpatizar com o Corinthians. Vive em São Paulo.
Fonte:Sul21
Nenhum comentário:
Postar um comentário