Li recentemente um instigante artigo crítico do escritor e pensador Eduardo Portela (“Novidade à vista”), que nos fala da possibilidade de estarmos no limiar de um período que ali se denomina “pós-democracia”. Seria uma consequência praticamente inevitável dos sinais degenerativos que se percebem nas assim chamadas instituições democráticas, incapazes de dizer ao que vêm nestes tempos de desigualdades e injustiças sociais que não escolhem espaços geográficos para proliferar.
A mídia tradicional, apegada aos princípios do neoliberalismo, trabalha estrategicamente o termo “democracia” , confundindo-o com o conceito de capitalismo, ao qual atribui qualidades libertadoras do indivíduo. Como decorrência, identifica as ameaças a essa democracia em nações que seriam agentes contrários ao resto do “mundo livre”: Cuba, China, Coreia do Norte, Iran... Essa identificação desses “atores do mal”, aliás, fica ao sabor de conveniências e interesses pontuais e, às vezes, acaba se revelando até contra a intenção do poder midiático: uma rebelião popular acabou de “descobrir” , por exemplo, que o Egito é (ou era) um estado antidemocrático, depois de décadas de apoio militar e econômico proveniente do mundo da liberdade...
Que tal refletirmos um pouco sobre isso tudo? Minha visão do que seria uma efetiva democracia , um mundo de liberdade, – que me perdoem os estudiosos e especialistas -, é a do senso comum, a da percepção imediata. Para ser sincero, desde garoto absorvia com dificuldade a ideia de que o berço democrático teria sido uma sociedade escravista – a grega -, onde mulheres e estrangeiros não tinham o direito à opinião, não tinham cidadania. Evidentemente, fiel à etimologia da palavra ( “governo do povo” ), era complicado para mim perceber as nuances contextuais comparativas que, na realidade de então, conferiam à Grécia, por muitas razões, esse “status” positivo na estruturação de sua sociedade. Um germe, talvez, em que se privilegiava como nunca antes a participação dos cidadãos, mas jamais um modelo de igualdade integral.
De lá para cá, a Humanidade deu muitos passos significativos na busca de um sistema político ideal que garantisse aos homens em comunidade o bem supremo a ser perseguido, a felicidade. Alguns desses passos foram, eventualmente, para trás, mas, no geral, o saldo é positivo.
A Revolução Francesa foi um óbvio marco. A aplicação de seus três princípios basilares (Liberdade, Igualdade, Fraternidade), se integralmente levada à prática, poderia ter alcançado o pleno significado da palavra democracia, como eu, jovem, a entendia.
A História, porém, não caminha por estradas tão ingênuas como aquelas que os sonhadores das utopias teimam em trilhar. A Revolução Francesa legitimou a ascensão da burguesia. A Revolução Industrial e o primado do capital criaram um mundo que se “apropriou” do termo ”democracia”.
Pensemos, por favor, por instantes, na essência das sociedades capitalistas de mercado que hoje predominam no assim chamado “mundo democrático”. Imaginemos as poucas centenas de multibilionários que comandam a economia, os mercados e os governos a eles submetidos, secundados por especuladores que vivem de multiplicar riqueza em algo muito parecido com os jogos de azar e banqueiros e empresários que, fazendo do lucro o seu deus, são tão mais devotos a ele quanto mais exploradores são do esforço alheio . Comparemos a vida desses “escolhidos” cidadãos com a dos milhões (bilhões?) de deserdados, mendigos, desterrados , descamisados, miseráveis, famintos que constituem a mesma sociedade daqueles poucos privilegiados. Democracia?
Alguém poderá argumentar com o mérito pessoal, o esforço próprio, capaz de justificar o fato de que, em uma mesma sociedade, haja indivíduos “valendo” milhões de vezes mais que outras, auferindo por mês riquezas que milhões de pessoas, somadas, não obterão durante toda a vida. Seria a chamada “sociedade de oportunidades” , que seleciona os mais aptos. “Ao vencedor, as batatas...”, disse o personagem machadiano. Aos perdedores, a fome e a miséria, acrescento eu.
A comunidade humana precisa mesmo de uma pós-democracia, ou melhor, de uma pós-pseudodemocracia, porque essa que aí está não valeu. O comunismo foi, no plano teórico, uma tentativa de contraponto à exploração do homem pelo homem. Não vingou... Na realidade, nunca existiu um país legitimamente comunista, onde cada qual produzisse segundo sua capacidade e recebesse segundo sua necessidade. Os regimes socialistas foram dinamitados pelas forças planetárias do capital, talvez porque não tenham conseguido equacionar corretamente o problema da busca da igualdade social com a livre expressão do contraditório. Mas é lícito esperar que a humanidade venha a descobrir caminhos políticos capazes de fazer valer, valer mesmo, os três princípios da Revolução Francesa. Porque não é possível que o Homem tenha desenvolvido, ao longo do tempo, seu raciocínio e sua sensibilidade, para chegar – e parar – no estágio em que se encontra.
Na pós-democracia que certamente virá, e que terá nos povos oprimidos os seus mentores, espera-se que se firmem conceitos mais substanciais sobre o que realmente se entende por ser livre, além da óbvia possibilidade de escolher. E certamente ela irá atingir o mundo de cá, o nosso mundo da disfarçada ditadura do deus mercado, com suas perversidades, iniquidades, desigualdades , tristezas e misérias. Esse mundo que está longe de permitir escolhas por já se definir, no berço, o destino dos infelizes. Há muitos “eixos malignos” a serem combatidos nas sociedades ditas democráticas, porque não são, nem de longe, exemplos de justiça, dignidade humana, felicidade. Mas estes não são apregoados pelos interesses do capital e da mídia oportunista e comprometida.
Rodolpho Motta LimaAdvogado formado pela UFRJ-RJ (antiga Universidade de Brasil) e professor de Língua Portuguesa do Rio de Janeiro, formado pela UERJ , com atividade em diversas instituições do Rio de Janeiro. Com militância política nos anos da ditadura, particularmente no movimento estudantil. Funcionário aposentado do Banco do Brasil.
Fonte:Direto da Redação
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