segunda-feira, 7 de novembro de 2011

Lula é portador e doença não é ‘objeto’

 
Sírio Possenti*
Em qualquer evento, cada profissional tem sua atenção atraída para determinados aspectos. Há poucos dias, quando se noticiou que o ex-presidente Lula tem um câncer na laringe, ouvi uma construção que deve ser muito frequente, mas da qual eu nunca tinha me dado conta. Fui ao Google, e não deu outra: mais de 90% dos títulos que noticiavam a doença era “Lula foi diagnosticado com câncer…”.

Se me pedissem para escrever qualquer nota sobre este caso, eu teria escrito que “um câncer foi diagnosticado”, ou, o que dá na mesma, que “o diagnóstico foi de câncer” ou que “os médicos diagnosticaram um câncer”.


No que é fundamental (os detalhes certamente são mais numerosos), pode-se observar uma variação no emprego de “diagnosticar”: em vez de o “objeto” ser a doença (como dizem os dicionários), é a pessoa portadora da doença. Observem-se as duas construções:

Médicos diagnosticam câncer em Lula

Médicos diagnosticam Lula com câncer

O caso merece duas observações:


a) não se ouviu nenhuma correção na mídia (nenhum dos jornalistas que berraram contra o famoso livro do MEC reclamou da construção);


b) quando uma nova construção não é percebida por ninguém como nova (muitas vezes, “nova” equivale “errada”, segundo essas avaliações simplificadas), significa que ninguém dirá que se trata de um erro. Quando não se percebe mais que se trata de uma construção “errada”, não é mais errada. As regras das línguas são assim, vistas historicamente.


O caso serve para ilustrar um fato constante na história das línguas: elas mudam. A língua que falamos é diferente, em muitos aspectos, da língua falada em outros tempos. Todas as línguas variam, isto é, são faladas de formas diferentes por grupos diferentes de falantes. Algumas dessas variantes são recentes e outras são (mais) antigas.


Os especialistas em detectar “erros” assumem uma tarefa inútil: o que eles condenam hoje a sociedade muitas vezes aprova mais tarde. Além disso, eles só sabem fazer listas dos “erros” de sempre. Copiam! São incapazes de ouvir novas variantes, e até eles as empregam. Nos termos deles, nem sabem que estão errando. De fato, não erram; seguem regras diferentes, embora sem saber.


Quem ainda condenaria um aluno por dizer que “Fulano foi diagnosticado com câncer”, se todos os que escrevem profissionalmente usam esta sintaxe, pensando que seguem uma gramática, quando, de fato, já estão seguindo outra?

* Sírio Possenti é professor associado de departamento de Linguística da Unicamp e autor de Por que (não) ensinar gramática na escola, Os humores da língua, Os limites do discurso, Questões para analistas de discurso e Língua na Mídia.


CartaCapital

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