Imagine um país no qual, apesar de ser proibido fumar maconha, a maioria fuma e você, não. Você vai ser visto com desconfiança
Ih, esse cara é esquisito, não fuma maconha.
Depois, as críticas vão ficar mais contundentes. Por que ele não fuma
maconha? Quer bancar o diferente? Quer ser melhor que os outros?
À medida em que o tempo passa e você continua recusando fumar maconha, a situação piora para você.
Você passa a ser visto como o cara errado; os outros é que estão
certos, pois são a maioria. Passam a suspeitar que você, além de não
fazer o que faz a maioria, poderá delatar os outros. Você representa um
perigo para eles.
Agora, imagine que, de repente, você vira o presidente desse país.
Você não fuma maconha, sabe que a maioria fuma maconha e também sabe
que a sociedade, da boca para fora, rejeita maconha, pois é um vício,
pois é visto como crime, pois quem compra maconha se envolve com
criminosos que a vendem e daí resulta o aumento da violência etc etc
etc.
De repente, começa uma investigação monstro que resolve acabar com o
problema e passa a prender os que fumam maconha, em massa e também os
que a fornecem.
Como você é a principal autoridade do país você tem, supostamente, o
poder de controlar os movimentos da polícia, podendo, portanto, mandar
que os policiais prendam certas pessoas e outras, não. Ou que não
prendam ninguém, já que, apesar de ser proibido, a maioria faz isso.
No entanto, você é um presidente que não fuma maconha, sabe que os
outros fumam (a maioria), mas também sabe que não é justo deixar alguns
fumarem e outros não, alguns venderem e outros não, por isso você age
como Salomão, deixa a polícia agir livremente, certo de que, fazendo
isso, você faz o que a sociedade que o elegeu espera de você, ou seja,
fazer cumprir a lei que proíbe a maconha, deixar investigar livremente
quem fuma maconha ou não e não está fazendo mais do que a sua obrigação
que é promover a justiça.
No entanto, aqueles que fumam maconha (a maioria), à medida em que
percebem que o perigo se aproxima deles começam a fazer de tudo para
pressionar você a usar de sua autoridade para protegê-los.
Quando percebem que você é um sujeito refratário a pressões e que não vai mudar mesmo a sua atitude, eles tentam outro caminho.
O mais esperto deles, que conhece como ninguém as leis do país,
oferece uma solução: já que nós somos a maioria, nós temos força para
tirar a presidente e colocar no seu lugar alguém mais sensível aos
nossos apelos.
Mas, como? - perguntam os mais ingênuos (se é que existem). Fácil,
responde o mais esperto: já que no partido dela, embora ela não fume
maconha, muitos fumam, vamos acusá-la de fumar maconha também e, como
somos a maioria e há uma lei que diz que a maioria pode derrubar uma
presidente, se ela transgredir a lei e, sem dúvida, fumar maconha é
transgredir a lei, nossa vitória é certa.
Se trocarmos esse país imaginário pelo Brasil e a maconha por
corrupção poderemos entender o que está acontecendo nesse momento tão
confuso, delicado que estamos passando.
A maconha da nossa classe política é a corrupção. Tal como naquele
país - embora fosse proibido fumar maconha, a maioria fumava - no
Brasil, embora a corrupção seja proibida, a maioria dos políticos
pratica a corrupção, desde sempre, não se sabe se começou com Getúlio ou
com Juscelino, mas começou há muito tempo e virou hábito.
E, como a maioria sempre fez isso, passou a ser normal. Quem não
participava da corrupção é que era ou trouxa, ou errado, ou aquele que
quer bancar o diferente etc etc. E dificilmente sua carreira política ia
em frente.
De repente, foi eleita uma presidente que nunca foi da classe
política, por isso nunca participou de corrupção. Nunca foi vereadora,
nem deputada, nem prefeita, nem governadora. Uma estranha no ninho. Ela
nunca tinha convivido com a corrupção e nem queria ouvir falar nisso,
pois sabia que é uma prática não só reprovável, mas que causa enorme
prejuízo ao país e é inaceitável, sob todos os pontos de vista.
Os demais políticos (a maioria) continuaram no jogo da corrupção
escondidos dela (afinal, se a maioria fazia isso, e há muito tempo, por
que não fazer também?) e, quando ela descobria, fazia uma faxina,
colocava pra fora o sujeito.
Assim transcorreram os primeiros anos de seu primeiro mandato.
Por volta de 2013, no mês de julho, uma investigação policial
iniciada em 2009 começou a pegar no breu: a partir de conversas
grampeadas do doleiro Carlos Habib Chater foram identificadas quatro
organizações criminosas que se relacionavam entre si, todas lideradas
por doleiros.
A primeira era chefiada por Chater (cuja investigação ficou conhecida
como "Operação Lava Jato", nome que acabou sendo usado, mais tarde,
para se referir também a todos os casos); a segunda, por Nelma Kodama
(cuja investigação foi chamada "Operação Dolce Vita"); a terceira, por
Alberto Youssef (cuja apuração foi nomeada "Operação Bidone"); e a
quarta, por Raul Srour (cuja investigação foi denominada "Operação Casa
Blanca").
O monitoramento das comunicações dos doleiros revelou que Alberto
Youssef, mediante pagamentos feitos por terceiros, "doou" um Land Rover
Evoque para o ex-diretor de Abastecimento da Petrobras Paulo Roberto
Costa.
Em 17 de março de 2014, foi deflagrada a primeira fase ostensiva da
operação sobre as organizações criminosas dos doleiros e Paulo Roberto
Costa. Foram cumpridos 81 mandados de busca e apreensão, 18 mandados de
prisão preventiva, 10 mandados de prisão temporária e 19 mandados de
condução coercitiva, em 17 cidades de 6 estados e no Distrito Federal.
Ao comparecerem a um dos endereços das buscas, um prédio onde
funcionava a empresa Costa Global, vinculada a Paulo Roberto Costa,
policiais federais decidiram ir até a residência do investigado para
pegar as chaves da empresa, em vez de arrombá-la. Enquanto os policiais
se deslocavam, parentes do ex-diretor foram flagrados, por câmeras de
monitoramento do edifício, retirando do local sacolas e mochilas
contendo provas de crimes.
Em 20 de março de 2014, aconteceu a segunda fase ostensiva da
operação. O ex-diretor da Petrobras Paulo Roberto Costa foi preso e
foram cumpridos seis mandados de busca e apreensão no Rio de Janeiro.
Em 27 de agosto de 2014, Paulo Roberto Costa assinou acordo de
colaboração com o Ministério Público Federal, quando houve a sinalização
de que políticos do Congresso Nacional estavam envolvidos no esquema.
Depois de Paulo Roberto Costa, foi a vez de Alberto Youssef recorrer aos
procuradores da República para colaborar em troca de benefícios.
Os depoimentos e provas colhidas em decorrência das colaborações, bem
como a análise de materiais apreendidos, documentos, dados bancários e
interceptações telefônicas, permitiram o avanço das apurações em direção
às grandes empresas que corromperam os agentes públicos e, por tabela,
os políticos.
No final de 2014 ficou claro que a situação ficava cada vez mais
perigosa para os deputados e senadores, as denúncias se aproximavam
deles cada vez mais.
A presidente Dilma conseguiu se reeleger, mas logo que o segundo
mandato teve início, a Câmara, liderada por aquele sujeito mais esperto
passou a criar dificuldades para ela.
A Lava Jato ia em frente, ceifando empresários e ex-parlamentares,
sem mandato, porque os outros estavam protegidos pelo foro privilegiado.
Embora ex-políticos do partido da presidente fossem presos ela
declarava que a investigação não teria interferência do seu governo.
Todos os grandes partidos que apoiavam o governo caíram nas malhas da
Lava Jato. E a presidente continuou com o mesmo discurso, deu sinal
verde à investigação.
Quando aquele sujeito mais esperto percebeu que a polícia estava nos
seus calcanhares fez a mesma coisa que naquele país em que a maioria
fumava maconha. Chamou seus colegas, corruptos na maioria e disse que a
única chance de sobrevivência deles seria derrubar a presidente. Se não
se unissem nessa tarefa, seriam todos degolados.
Mas como vamos fazer? – perguntaram.
"Ora" disse o mais esperto "se no partido dela tem muita gente que é
corrupta vamos acusá-la de ser corrupta também; como a maioria da
população detesta o partido dela e detesta corrupção, isso vai pegar.
Mas precisamos de apoio das ruas. Mãos à obra".
A presidente, sempre do lado da lei, sempre do lado correto, insistiu
na tese de que a Lava Jato deveria prosseguir. As ruas passaram a se
vestir de verde-amarelo e o script do sujeito esperto foi seguido à
risca.
Deu no que deu. A Lava Jato prosseguiu, mas como o sujeito esperto e
seus colegas tinham e têm foro privilegiado, e como o foro privilegiado
funciona devagar quase parando, antes que eles fossem atingidos, eles
(que, como vimos num certo domingo, são a maioria) derrubaram a
presidente.
Alguém poderá querer desmentir essa narrativa alegando: mas veja só,
ainda ontem o Claudio Mariz de Oliveira, que estava cotado para ser o
ministro da Justiça de Temer perdeu a indicação porque criticou a Lava
Jato.
Sim, ele caiu, mas não por ser contra a Lava Jato e sim por tê-la
criticado publicamente. Temer sabe que não se pode acabar com a Lava
Jato à luz do dia, ela tem que ser parada nos bastidores, nas sombras,
na calada da noite, que é onde ele sabe agir melhor do que ninguém, por
alguém que saiba fazer dessa maneira e não dando entrevistas à Folha de
S. Paulo.
Dilma foi derrubada não porque rouba, mas porque não rouba. Foi
derrubada pela maioria que rouba e cuja última esperança de fugir da
cadeia era tirá-la da frente e colocar no seu lugar um político
experiente, igual a eles, que sabe onde aperta o sapato.
Se ele também não resolver o problema deles, não tenham dúvida: vão derrubá-lo também.
Alex Solnik
Alex Solnik é jornalista. Já atuou em publicações como
Jornal da Tarde, Istoé, Senhor, Careta, Interview e Manchete. É autor de
treze livros, dentre os quais "Porque não deu certo", "O Cofre do
Adhemar", "A guerra do apagão", "O domador de sonhos" e "Dragonfly"
(lançamento setembro 2016)
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