quinta-feira, 28 de abril de 2016

O cuspe e a grande catarse coletiva


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o Brasil saiu da apatia, as ruas não são mais exclusividade de um grupo étnico e social, haverá conflito, haverá confronto, a luta de classes está a deixar de ser, finalmente, apenas uma abstração.

fascistas não passarão. 

não sem enfrentamento. 

por isso, faço uma ode ao cuspe.

ergam as taças, brindemos em libações salivares.

aprendi, ainda nos anos oitenta, quando eu tinha uma banda de hardcore em Brasília, que o cuspe é um gesto revolucionário.

cuspamos, irmãos, com saliva ou com catarro.

em verdade vos digo, tudo vai bem quando as pessoas começam a cuspir umas nas outras.

Jean cuspiu em Bolsonaro, o homem que vomita ódio.

Zé de Abreu cuspiu em um casal mal educado que foi afrontá-lo em um restaurante.

o high society ficou enojado. 

tanto melhor.

sabemos que garçons e cozinheiros costumam cuspir na comida de clientes desaforados. 

mas agora é a cara dos próprios clientes desaforados que vai se convertendo em viscosas escarradeiras nas nossas chiques gourmeterias.

nada pode ser melhor que isso.

Bob Cuspe, personagem escrachado do genial Angeli, tinha uma única resposta aos coxinhas da segunda metade dos anos oitenta, os analfabetos políticos deslumbrados, os hipócritas ostentadores que vicejaram logo após o fim da ditadura militar: cuspe na cara.

cuspe como sinal de desprezo, de afronta, de rebeldia, de inconformismo.

Bob surgiu em um momento análogo a este que vivemos agora, uma época de transição social e política no Brasil.

por isso, o gesto de Jean Wyllys e Zé de Abreu parecem ter saído das entranhas de um adormecido inconsciente coletivo. 

é como se o homem da horda primeva, de repente, renascesse em nós. 

são os nossos instintos mais primitivos a rufar os tambores da grande aldeia que nos habita.

estavam, Wyllys e Abreu, a emular o gesto do icônico Bob Cuspe.

por isso, eu os saúdo.

é tempo de cuspir, senhoras e senhores. 

é chegado o momento da grande catarse social. a catarse, na psicologia, na filosofia, na medicina ou nas artes em geral, é sinal de purificação, de transição, de melhoramento, um rito de passagem de um estágio a outro.

logo, o cuspe é uma resposta epistemológica.

há muito a saliva faz parte das trocas simbólicas, bem o sabem os nossos antropólogos.

Jesus a usava como unguento. era com saliva que Cristo fabricava emolientes curadores. 

e foi também com cusparada que ele recebeu o desprezo dos judeus enquanto marchava com uma pesada cruz nas costas.

os japoneses - abra o olho - já utilizaram saliva na fabricação de saquês. 

nossos silvícolas tupinambás também sacaram que a saliva das mulheres era ótima para fermentar bebidas.

hedonistas cospem na mão para a prática do sexo solitário. a saliva, quem não o sabe, é um excelente lubrificante erótico.

o beijo, que nada mais é que uma troca de salivas, significa aproximação, carinho e afeto.

a cusparada é exatamente o contrário.

por isso, em sinal de desprezo, passamos do inocente beijo no ombro para o revolucionário e escrachado escarro.

é tempo de cuspir, senhoras e senhores.

como ensinou o genial poeta paraibano, Augusto dos Anjos, o homem de um livro só: 

(...) acostuma-te à lama que te espera!
o Homem, que, nesta terra miserável,
mora, entre feras, sente inevitável
necessidade de também ser fera.

toma um fósforo. Acende teu cigarro!
o beijo, amigo, é a véspera do escarro,
a mão que afaga é a mesma que apedreja.

se a alguém causa inda pena a tua chaga,
apedreja essa mão vil que te afaga,
escarra nessa boca que te beija!

palavra da salvação.

Lelê Teles
Jornalista, publicitário e roteirista


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