Os jornalistas e os colunistas brasileiros amestrados (fazem
direitinho o que os patrões querem) se recusam a ver sinais de golpe no
impeachment que não conseguiu demonstrar crime de responsabilidade da
presidenta Dilma Roussef. Oscilam entre a tese equivocada de que
impeachment é apenas um ato político, o que é falso, pois tem também um
componente jurídico, como já alertou o ministro Marco Aurélio Mello, e o
argumento de que o STF tem legitimado tudo o que está acontecendo. E
que portanto, o golpe (ôps, eles preferem impeachment), acontece dentro
da mais perfeita "normalidade". É certo que alguns ministros do STF
possam divergir de Marco Aurélio Mello, mas se consultarem direitinho a
Constituição, terão que apelar para malabarismos jurídicos para fugir à
obviedade. Embora, claro, sempre possível e ao alcance da literatura
jurídica , misturado a uma certa dose de irresponsabilidade.
Sobre o primeiro tópico, o que aconteceu no dia 17 de abril de 2016,
na Câmara, já responde ao equívoco, visto que os deputados fizeram de
tudo menos julgar as pedaladas fiscais. Tiveram, certamente, bons
motivos: informa um jornalista de O Globo que nos corredores da Câmara
havia comentários sobre ofertas de R$ 2 milhões por um "sim" ao
impeachment.
Não bastasse tudo isso, como um presidente da Câmara, que responde a
diversos processos e foi flagrado em vários atos de corrupção pode, por
vingança, comandar uma votação para destituir uma presidenta que não
cometeu crime de responsabilidade? E o que dizer sobre centenas de
deputados que também respondem a processos na justiça? O próprio relator
do impeachment, deputado Jovair Arantes, três dias depois da votação de
domingo, foi condenado pelo TRE-GO a pagar multa pelo uso indevido de
serviços de funcionário público em seu comitê de campanha eleitoral em
2014, durante horário normal de expediente.
Só a nossa mídia, cada vez mais manipuladora e conspiradora para não
enxergar arbitrariedades em tudo isso. Sem falar que, há muito tempo,
sabe-se que o enorme poder de Cunha sobre parcela expressiva do
Congresso não vem da sua capacidade de diálogo. Num Parlamento com
tantos corruptos, o toma-lá-dá-cá obedece a outro nível de
convencimento. Que o digam os dólares que Eduardo Cunha têm depositado
na Suíça.
Mas nada disso chama a atenção da nossa "atenta" mídia, que viu em
pedaladas fiscais, que não causam prejuízos aos cofres públicos e muito
menos o enriquecimento ilegal de pessoas, motivo para configurar um
crime. E em nenhum momento, essa mesma mídia especula sobre o que
acontecerá com quase duas dezenas de governadores que assinaram as
mesmas pedaladas – Alckmin assinou 31. E por que nunca foram objeto de
punições, anteriormente? E nem o serão no futuro? Ou alguém acha que os
governadores também serão "impichados"? Impressiona como a
jurisprudência no país têm mudado sempre que o réu pertence a um certo
partido político. Justamente o partido que elevou o país a um patamar de
mudanças e melhorias sociais jamais anteriormente alcançado.
Quanto ao STF funcionar normalmente e não se manifestar
contrariamente ao prosseguimento do impeachment, é outro argumento
falso, pois o Tribunal também não se insurgiu contra o golpe golpe
civil-militar de 64 e em vários momentos chegou a apoiá-lo. O ministro
Ribeiro da Costa, presidente do STF, à época, declarou (Jornal do
Brasil, 4/4/64): "O desafio feito à democracia foi respondido
vigorosamente. Sua recuperação tornou-se legítima através do movimento
realizado pelas Forças Armadas, já estando restabelecido o poder de
Governo pela forma constitucional".
Portanto, não é o fato do poder Judiciário abrir as portas e funcionar diariamente que indica a inexistência de um golpe no país. Algumas "normalidades" não são suficientes para esconder as arbitrariedades e os crimes contra a democracia. Lembremos, ainda, outro ato infame do STF: permitir que Olga Benário, judia, grávida, fosse deportada em 1936 e entregue às forças nazistas alemãs, onde viria a ser executada na câmara de gás.
O caso atual é, certamente, de feição inusitada, visto que não há
tanques ou rifles apontados para o poder Judiciário e, mesmo assim,
estranhamente o Tribunal mantém-se omisso em relação ao impeachment
perpetrado por parlamentares que, se houvesse justiça, muitos deles já
deveriam estar presos e o relatório não seria nem mesmo votado, por
vício de origem.
É um dado novo que as democracias, no mundo inteiro, terão que
repensar. Afinal, quando o poder Judiciário, por alguma razão, não coíbe
as arbitrariedades contra a democracia, estamos diante de um novo tipo
de golpe, em que o Legislativo e o Judiciário são protagonistas, com
forte apoio da mídia. Mesmo assim, que ministros e ministras do STF não
tenham a mesma ilusão de Michel Temer, porque a história não deixará de
apontar a responsabilidade de cada um(a) nesse grave momento.
Desde o início da Operação Lava-Jato, sob o comando de um juiz de
primeira instância, o foco sempre foi vasculhar casos de corrupção que
envolvessem Dilma, Lula e o PT. Os dois primeiros, apesar de vítimas de
escutas ilegais, do uso de métodos questionáveis de delação premiada que
preservaram vários políticos de outros partidos citados por delatores, e
de terem suas vidas e de familiares vasculhadas incessantemente, nada
foi encontrado de consistente contra ambos. E, no entanto, essa obsessão
investigatória partidarizada, comandada por um juiz de primeira
instância, sempre foi prestigiada pelo STF, que raras vezes se
manifestou e menos ainda achou motivos para intervir.
A omissão do STF tornou o juiz Moro uma celebridade nacional, assim
como num passado não muito distante, um certo "caçador de marajás"
também foi alçado pela mídia à condição de herói, o que o levou,
inclusive, à presidência da República.
A omissão do STF também deu sinal verde para criminosos agirem no
Congresso Nacional e levarem adiante um processo de impeachment que já
nasceu viciado e irregular em sua origem, mas que é sustentado por uma
mídia oligopolizada totalmente em desacordo com a narrativa de
jornalistas de outros países que confessam o seu estarrecimento diante
de tantas arbitrariedades e da fragilidade com que se destrói a
democracia brasileira.
O mais famosos deles, o premiado jornalista Glenn Greenwald, em
entrevista a uma emissora de TV norte-americana disse que em toda a sua
vida profissional, cobrindo a política em vários países, nunca viu
situação semelhante. "É surreal", sublinhou, que centenas de
parlamentares acusados de corrupção e outras arbitrariedades, que
respondem a processos em várias instâncias, inclusive no STF, comandados
por um presidente da Câmara que tem milhões de dólares fruto da
corrupção depositados na Suíça, decidam pelo impeachment de Dilma, que
não é acusada de nenhum ato de corrupção ou nenhum crime de
responsabilidade.
Mas nada disso tira o sono de nossos "vigilantes" ministros do STF,
que dormem em "berço esplêndido", enquanto a democracia é golpeada por
um "sindicato de ladrões" – como definiu Ciro Gomes – com a ajuda
inestimável da mídia, de setores do Judiciário, do Ministério Público,
da Polícia Federal, dos donos do capital e certamente com o suporte da
nação mais interessada em recuperar o "quintal da América Latina" – como
já ocorreu no passado, hoje fartamente documentado.
Eduardo Cunha, o cínico, justificou o seu voto pelo impeachment
dizendo: "Que Deus tenha misericórdia desta nação". Se nem ao bispo de
Diamantina, inimigo mortal das "jararacas", podemos nos queixar, só
mesmo apelando direto para Deus. Ou, para quem não crê em justiça
divina, para a resposta de um povo roubado em 54 milhões de votos.
Celso Vicenzi
Celso Vicenzi é jornalista, ex-presidente do Sindicato
dos Jornalistas/SC, com atuação em rádio, TV, jornal, revista e
assessoria de imprensa
Nenhum comentário:
Postar um comentário