Elite da polícia de SP é acusada de tortura
Motoboy processado por nove mortes diz ter sido espancado no DHPP para confessar; cinco acusações já foram arquivadas
Na Corregedoria da Polícia Civil, não há procedimento, nos últimos cinco anos, para apurar maus-tratos dentro do departamento
No retrato pintado pela polícia, o motoboy M.L. era um demônio com uma pistola na mão. Ao ser preso aos 23 anos, em 2003, ele confessou nove assassinatos. O chefe da delegacia de homicídios, Domingos Paula Neto, chegou a dizer que a prisão dele provocara uma queda nos homicídios na zona sul de São Paulo. Comunicados da Secretaria da Segurança tratavam-no como "um dos criminosos mais perigosos da região do Capão Redondo". Nos programas mundo-cão da TV, era apresentado como matador de aluguel. Por conta das acusações, o motoboy passou dois anos e meio na prisão.
Se tudo isso é verdade, a polícia não conseguiu provar. Cinco anos depois, a imagem do matador ruiu como castelo de areia em dia de chuva. Das nove acusações de homicídio cometidos em 2002 e 2003, cinco já foram arquivadas por falta de provas. Um dos casos vai a júri em novembro. Dois processos aguardam julgamento de recurso no Tribunal de Justiça. E um não foi concluído.
"Não há prova de nada. Ele foi acusado de nove homicídios porque é abusado e respondão. Confessou porque sofreu tortura", diz Alexandra Szafir, advogada de M.L.
As únicas provas da polícia são as nove confissões, feitas no prazo de uma semana em que o motoboy estava preso, para uma única equipe do DHPP (Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa), comandada pelo delegado José Vinciprova. Ele nega ter obtido as confissões com prática de tortura. O DHPP é considerado uma das delegacias mais eficientes do país.
M.L. detalha o que chama de tortura: "Levei choque quanto fui preso na rua, levei choque no carro e na delegacia. Usavam uma maquininha preta para dar choque. Doeu tanto que caí de joelho no chão. Na delegacia, apanhei de mão. Davam soco, chutes nas costas".
No caso de M.L., de nada adiantou existir um departamento da polícia, o IML (Instituto Médico Legal), para apurar se presos sofreram maus-tratos. V.T., que, ao lado do motoboy, foi acusado pela polícia de ter participado de um homicídio, disse à Justiça que os exames no instituto são uma farsa: "Quando cheguei ao IML, eles [os policiais] ficaram dentro da sala comigo. O policial perguntou: "Precisa tirar a camisa do rapaz?". O médico falou: "Não. Você foi espancado?". Olhei pra eles e falei: "Não houve nada'".
O motoboy confirmou à Justiça que os presos são examinados por médicos sob coação. "Eles [policiais] falaram: "Se você falar que apanhou, vai apanhar mais ainda"." Outros quatro réus, além do motoboy, dizem ter sofrido tortura.
Sem investigação
Tão impressionantes quanto os relatos de tortura que cinco réus fizeram à Justiça é o destino das acusações. Não há nenhum procedimento na corregedoria, nos últimos cinco anos, para apurar maus-tratos dentro do DHPP, segundo a Secretaria da Segurança.
O promotor Arual Martins, que acompanhou os processos de M.L., diz que as apurações de tortura são "complicadas": "Em 99% dos processos, os réus confessam e depois vêm com a cantilena de tortura. É preciso analisar caso a caso".
Em tese, o promotor que ouvir um relato de tortura deve pedir a abertura de inquérito policial. Se não fizer isso, pode ser acusado de prevaricação -crime que o funcionário público comete quando sabe de algo ilegal e não faz nada.O único resultado prático que casos como o do motoboy tiveram é que promotores foram ao DHPP reclamar das "confissões em cambulhada". "Não aceitamos mais isso", diz Martins. "A polícia precisa investigar caso a caso."
As acusações sem provas e a suposta tortura não são os únicos pontos que põem a imagem da delegacia de homicídios em xeque. Há provas risíveis nos inquéritos. Numa delas, o motoboy foi acusado de participar de um homicídio com outro rapaz. Quando o juiz foi interrogar o suposto comparsa, descobriu que o motoboy e ele não se conheciam; haviam se encontrado no DHPP.
Em outro caso, M.L. foi acusado de matar um viciado em crack que teria roubado um passe de ônibus e R$ 1 de uma senhora. Na Justiça, o filho da vítima de roubo disse que sua mãe nunca usou passe; ela tinha carteira de idosa. Folha.
Sala do DHPP tinha pregos e canos, diz padre
DA REPORTAGEM LOCAL
Numa sala com cerca de seis metros quadrados, havia pregos na parede e fios elétricos pendurados no teto. No chão, barras de cano lustradas, aparentemente por causa do uso, de acordo com o padre Valdir João Silveira, da Pastoral Carcerária. A sala ficava na garagem do DHPP (Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa), no fim de uma escada sem saída.
Delegados diziam que aquela sala estava sem uso havia anos, mas tinha um cadeado novo na porta, indício de que era ocupada. A pastoral chegou a esse ambiente em 2005 depois de receber oito cartas de familiares de presos relatando maus-tratos no DHPP, de acordo com o padre.
"Não posso acusar ninguém de que havia ali uma sala de tortura, mas o ambiente era muito estranho", diz o defensor público Davi Depiné, que à época integrava a Procuradoria de Assistência Jurídica.
Para Depiné, o problema não era só essa sala escondida. A própria carceragem do DHPP, onde ficam os presos que estão sendo interrogados, tinha problemas. Os presos diziam sofrer maus-tratos e só faziam uma refeição por dia.
Inquérito
O inquérito aberto para apurar as suspeitas de tortura foi arquivado por falta de provas. "Os presos ficam com medo de falar e apanhar", diz padre Valdir.O DHPP afirma que o fato de o inquérito ter sido arquivado mostra que as suspeitas eram infundadas.
Nenhum comentário:
Postar um comentário