Recife (PE) - Quando se pensa no tempo que gastamos para escrever um texto sobre racismo no Brasil, sempre nos ocorre dizer, isso é fácil, muito fácil. Com um pé nas costas se faz. Basta escolher depoimentos. Então começo por Lucrécia Paco, atriz moçambicana. Ela veio ao Brasil, convidada, para mostrar a peça Mulher Asfalto. Fala, Lucrécia:
“Eu estava no Shopping Paulista, na fila da casa de câmbio, quando a mulher da frente, branca, loira, se virou para mim: ‘Ai, minha bolsa’, apertando a bolsa contra o corpo. Lucrécia levou um susto. Imaginou que havia encostado, sem querer, na bolsa da mulher. ‘Desculpa, eu nem percebi’, disse.
A mulher tornou-se ainda mais agressiva. ‘Ah, agora diz que tocou sem querer?’, ironizou. ‘Pois eu vou chamar os seguranças, vou chamar a polícia de imigração’. (Da revista Época, 19.6)
Do escritor e jornalista Alípio Freire, por email em 23.6, escolho:
“Tenho um genro negro. E dele, um neto de seis anos.
Há pouco mais de um mês, eu estava numa livraria, quando encontrei uma amiga nossa - acompanhada (por questões profissionais) de uma perua-benemérita-progressista. Como a Senhora Perua conhecesse meu genro (também por razões profissionais), ela me disse:
- Ai, que lindo, deve ser uma graça ter um neto mestiço.
(O tom era como se em seguida fosse me perguntar se o mesticinho combinava com a cor do estofamento do sofá, e com a decoração da casa).
Radicalizei:
- Não, minha senhora, não acho graça nenhuma. Cada vez que me nasce um mestiço na família, tomo imediatamente duas iniciativas: compro logo uma touca para amansar o cabelo desde pequeno, e faço uma promessa a São Expedito para que ele tenha vitiligo.”
De Cristina Capistrano, filha do histórico comunista David Capistrano, por email em 23.6, escolho:
“Minha neta mais nova é filha de negro. Quando minha filha namorava com ele, por duas vezes, quando andavam juntos, chegou a policia e perguntou a ela se o negro a estava incomodando... Passaram a andar sempre agarrados, para deixar claro que namoravam. Uma vez foram presos, porque ele, ao entrar no carro que ela estava dirigindo, foi abordado por um policial (que pensou que ele estava querendo roubar o carro dela). Minha filha reagiu com palavrões e os dois foram presos por desacato a autoridade.
Depois que minha neta nasceu, diante de minha filha com a criança nos braços, uma bondosa senhora falou: ‘Acho tão bonito uma moça como você adotar uma criança..’ Ao que ela respondeu: ‘Não é adotada, saiu da minha barriga 9 meses depois que eu transei com um negão maravilhooooooso!’ Deixo por sua conta imaginar a cara da ‘bondosa’.
O filho mais velho dela, cujo pai é branco, quando tinha 8 anos, recebeu um coleguinha em casa e apresentou a irmã. O colega perguntou: ‘Que cabelo é esse da sua irmã?’ E o meu neto: ‘Cabelo de negro, você não conhece, burro?’
Outra vez, uma mulher na rua falou: ‘Achei legal você pintar o cabelo dela da cor do seu...’. As duas têm cabelo da mesma cor, um liso e outro encaracolado. Minha filha respondeu: ‘A senhora acha que sou louca, para pintar cabelo de criança? É da mesma cor porque ela é minha filha com um negão lindo..’. Outra vez, uma mulher me perguntou se ela era minha neta meeeeeeeeesmo... Respondi: ‘Por quê? É bonita demais para ser minha neta?
E vamos respondendo assim... quando percebemos que é sacanagem racista, mesmo quando travestida de 'compreensiva', nossa posição é sempre responder com a faca nos dentes.”
De Janaína, filha de um amigo de infância, escolho:
“Não pude deixar de pensar em um amigo recentemente assassinado na Parada Gay em São Paulo. Os neonazistas espancaram a vários, e a ele estraçalharam a cabeça. Não tinha um ferimento no corpo, foi tudo direto na cabeça. Foi o único caso fatal.
Quando eu ia a Sao Paulo era com o Pan que eu contava. Estava pra tudo. Elegante, educado, bem humorado, doce. Tinha sempre um prato feito por ele pra comemorar minha estadia (era chef de cozinha), tinha sempre um sambinha pra que eu conhecesse o samba em Sao Paulo. Tinha sempre uma preocupação com minha irmã, fosse um namorado idiota ou festa demais. ‘Você não vai ser jovem e bonita para sempre’, dizia ele a uma amiga próxima, brigando com carinho, para que ela abrisse o olho. E, sobretudo, elegante. Só coisa boa vinha dele.
No dia do linchamento, os amigos, sem saberem de nada, ligavam para seu celular e atendia um desconhecido: ‘acabamos com o negrinho’.”
Haveria, haverá, há inúmeros outros textos à escolha. Prefiro encerrar aqui, com esta conclusão: no começo, escrevi que falar sobre racismo no Brasil se faz com um pé nas costas. Mas seria mais próprio escrever, “isto se faz com um pé na bunda”. Que os negros levam da sociedade brasileira, todos os dias. Mas isto não se escreve fácil. Porque dói e revolta a gente.
“Eu estava no Shopping Paulista, na fila da casa de câmbio, quando a mulher da frente, branca, loira, se virou para mim: ‘Ai, minha bolsa’, apertando a bolsa contra o corpo. Lucrécia levou um susto. Imaginou que havia encostado, sem querer, na bolsa da mulher. ‘Desculpa, eu nem percebi’, disse.
A mulher tornou-se ainda mais agressiva. ‘Ah, agora diz que tocou sem querer?’, ironizou. ‘Pois eu vou chamar os seguranças, vou chamar a polícia de imigração’. (Da revista Época, 19.6)
Do escritor e jornalista Alípio Freire, por email em 23.6, escolho:
“Tenho um genro negro. E dele, um neto de seis anos.
Há pouco mais de um mês, eu estava numa livraria, quando encontrei uma amiga nossa - acompanhada (por questões profissionais) de uma perua-benemérita-progressista. Como a Senhora Perua conhecesse meu genro (também por razões profissionais), ela me disse:
- Ai, que lindo, deve ser uma graça ter um neto mestiço.
(O tom era como se em seguida fosse me perguntar se o mesticinho combinava com a cor do estofamento do sofá, e com a decoração da casa).
Radicalizei:
- Não, minha senhora, não acho graça nenhuma. Cada vez que me nasce um mestiço na família, tomo imediatamente duas iniciativas: compro logo uma touca para amansar o cabelo desde pequeno, e faço uma promessa a São Expedito para que ele tenha vitiligo.”
De Cristina Capistrano, filha do histórico comunista David Capistrano, por email em 23.6, escolho:
“Minha neta mais nova é filha de negro. Quando minha filha namorava com ele, por duas vezes, quando andavam juntos, chegou a policia e perguntou a ela se o negro a estava incomodando... Passaram a andar sempre agarrados, para deixar claro que namoravam. Uma vez foram presos, porque ele, ao entrar no carro que ela estava dirigindo, foi abordado por um policial (que pensou que ele estava querendo roubar o carro dela). Minha filha reagiu com palavrões e os dois foram presos por desacato a autoridade.
Depois que minha neta nasceu, diante de minha filha com a criança nos braços, uma bondosa senhora falou: ‘Acho tão bonito uma moça como você adotar uma criança..’ Ao que ela respondeu: ‘Não é adotada, saiu da minha barriga 9 meses depois que eu transei com um negão maravilhooooooso!’ Deixo por sua conta imaginar a cara da ‘bondosa’.
O filho mais velho dela, cujo pai é branco, quando tinha 8 anos, recebeu um coleguinha em casa e apresentou a irmã. O colega perguntou: ‘Que cabelo é esse da sua irmã?’ E o meu neto: ‘Cabelo de negro, você não conhece, burro?’
Outra vez, uma mulher na rua falou: ‘Achei legal você pintar o cabelo dela da cor do seu...’. As duas têm cabelo da mesma cor, um liso e outro encaracolado. Minha filha respondeu: ‘A senhora acha que sou louca, para pintar cabelo de criança? É da mesma cor porque ela é minha filha com um negão lindo..’. Outra vez, uma mulher me perguntou se ela era minha neta meeeeeeeeesmo... Respondi: ‘Por quê? É bonita demais para ser minha neta?
E vamos respondendo assim... quando percebemos que é sacanagem racista, mesmo quando travestida de 'compreensiva', nossa posição é sempre responder com a faca nos dentes.”
De Janaína, filha de um amigo de infância, escolho:
“Não pude deixar de pensar em um amigo recentemente assassinado na Parada Gay em São Paulo. Os neonazistas espancaram a vários, e a ele estraçalharam a cabeça. Não tinha um ferimento no corpo, foi tudo direto na cabeça. Foi o único caso fatal.
Quando eu ia a Sao Paulo era com o Pan que eu contava. Estava pra tudo. Elegante, educado, bem humorado, doce. Tinha sempre um prato feito por ele pra comemorar minha estadia (era chef de cozinha), tinha sempre um sambinha pra que eu conhecesse o samba em Sao Paulo. Tinha sempre uma preocupação com minha irmã, fosse um namorado idiota ou festa demais. ‘Você não vai ser jovem e bonita para sempre’, dizia ele a uma amiga próxima, brigando com carinho, para que ela abrisse o olho. E, sobretudo, elegante. Só coisa boa vinha dele.
No dia do linchamento, os amigos, sem saberem de nada, ligavam para seu celular e atendia um desconhecido: ‘acabamos com o negrinho’.”
Haveria, haverá, há inúmeros outros textos à escolha. Prefiro encerrar aqui, com esta conclusão: no começo, escrevi que falar sobre racismo no Brasil se faz com um pé nas costas. Mas seria mais próprio escrever, “isto se faz com um pé na bunda”. Que os negros levam da sociedade brasileira, todos os dias. Mas isto não se escreve fácil. Porque dói e revolta a gente.
Uraniano Mota. Direto da Redação.
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