terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

Escritores contra a Fogueira



Giuseppe Cocco *

A iniciativa tomada por vários personagens políticos da Região Veneto – desde o vereador Speranzon ao Secretário Regional da Educação Donazzan, passando pelos discursos de diferentes personagens políticos de menor ou maior peso político – é de uma gravidade sem precedentes.

Usando como pretexto a participação num abaixo-assinado pedindo ao governo francês para não revogar o direito de asilo a Cesare Battisti, o governo de Veneza, legitimado pelo “liberal”, Luca Zaia, pediu em primeiro lugar a remoção das bibliotecas públicas, e em seguida, das escolas públicas, de TODOS os livros dos autores que participaram do abaixo-assinado, desde Massimo Carlotto até Tiziano Scarpa, passando por Nanni Balestrini, Daniel Pennac, Giuseppe Genna, Giorgio Agamben, Girolamo De Michele, Vauro, Lello Voce, Pino Cacucci, Christian Raimo, Sandrone Dazieri, Loredana Lipperini, Marco Philopat, Gianfranco Manfredi, Laura Grimaldi, Antonio Moresco, Carla Benedetti, Stefano Tassinari, Wu Ming, e muitos outros que não acabaram na lista negra ao porque não adicionaram “escritor” ao próprio nome e sobrenome.

O declarado desejo destes novos inquisidores de reagir contra a decisão do governo brasileiro é pura hipocrisia: a região do Vêneto se tornou, exatamente durante os anos do “Caso Battisti”, um importante parceiro econômico do Brasil. Enquanto os políticos de direita pediam insistentemente que se boicotassem as relações Itália-Brasil, a região do Vêneto gastava 185.000 euros para enviar uma delegação para o 22° Festival de Turismo de Gramado, que ocorreu entre 18 e 21 novembro de 2010. Na verdade, Battisti não é o único, nem o principal foragido italiano que o Brasil deixa de extraditar (e o mesmo valeria para muitos é verdade para muitos foragidos brasileiros que se refugiaram na Itália), é apenas o homem certo, no lugar certo, na hora certa, servindo como distração da massa, enchendo as páginas dos jornais e ocupando o espaço de muitas outras informações interessantes.

Mas seria errado encerrar o assunto assim. O ato de censura surgiu graças à imediata campanha de informação promovida por dezenas de escritores, sem distinção entre os signatários e não signatários, atingindo autores como Marco Paolini e Roberto Saviano, culpados não de ter assinado este ou aquele abaixo-assinado, mas de ter dito verdades incômodas sobre o Veneto, sobre a força política que o governa, e sobre as relações perigosas entre expoentes da Lega e a ‘Ndrangheta calabresa na Lombardia. A mesma culpa é o elemento real que une, para além dos pretextos ideológicos, os escritores apontados: descrever a realidade num momento em que aqueles que teriam tido o dever de fazê-lo acham economicamente e politicamente mais conveniente encobri-la com fofocas, desinformação, produção televisiva de brigas e meias brigas. Confrontamos à narrativa da realidade aos reality shows: este é o nosso crime.

Esta é a razão pela qual nascem comportamentos ilícitos – tais como a reivindicação do vereador Donazzan de submeter um ato de tipo político ou ilegal às escolas – tal como o convite a cometer o crime de peculato por desvio de bem público, no qual incorre quem elimina um bem público, ou seja, um livro numa biblioteca adquirido com dinheiro público. Que isso aconteça através de pessoas que ocupam cargos de público talvez poderia surpreender: mas certamente não nos surpreende.

Quem são, de fato, os personagens de que estamos falando?

Eles são ex-fascistas, ou pós-fascistas, que não tiveram escrúpulos quando quiseram ser solidários com os Sereníssimos (venezianos) que assaltaram, com a ajuda de um tanque blindado, o Campanário de São Marcos (Speranzon); que se recusaram a concordar com um documento votado por todo a Assembleia do Veneto (maioria e oposição) porque continha referências a valores como “antifascismo” e “resistência”, que não têm vergonha de participar de comícios fascistas a favor da X ou de admoestar o ator judeu Moni Ovadia, dizendo que este não direito de falar sobre o cristianismo numa transmissão de televisão (Donazzan). É evidente que, para estes senhores, o fascismo não está no passado, mas no presente.

Se ainda examinarmos o tom das declarações – a de Gianantonio Da Re, secretário provincial da Lega de Treviso, que sugeriu alimentar com “Gomorra” os roedores que parecem abundar nos bares de Treviso, e sobre os quais Da Re deve ser perito, ou a inefável declaração de Speranzon, que diz que ele havia se prometido ler “Gomorra”, pois poderia ser útil para qualquer pessoa que desejasse ser secretário de cultura; para não mencionar as declarações sobre o relativismo e o niilismo do catolicíssimo vereador Donazzan, segundo as quais, e cito suas palavras, “porque na Itália não se rouba e não se mata, porque temos este sentimento de família, porque as relações devem ser guiadas pelo respeito e pelo perdão? Estes são os princípios de comportamento daqueles que vivem na Itália, são derivados de uma abordagem cultural ligada ao catolicismo, não são derivados de outras religiões…”; se prestarmos atenção a estas linguagens, e aos cérebros que os governam – porque a língua fala se a mente quer – também entenderemos de qual fascismo estimo falando: fascistas sim, mas “Fascistas de Marte.”

Pois talvez seja em Marte que estão e não na Terra, na Itália, ou no Veneto. Como escreveu em 22 de janeiro passado no “Corriere del Veneto” o vereador Umberto Curi, “É tarefa de quem se ocupa da educação operar para que cultura, atualidades, educação, formação, se defendam da forma mais ampla possível. Não se deve determinar quais leituras devam ser feitas e quais devam ser evitadas, quais livros devam ser lidos e quais devam ser excluídos ou banidos. Não se trata de uma sutileza, mas da interpretação correta de uma função que em si é muito delicada, para a qual não são permitidos desvios, como os que agora se discutem”.

Seria realmente muito grave se aqueles que exercem o poder político detivessem o poder de discriminar as ideias políticas conforme a proximidade ou distância do que pensa o poder; seria muito grave, mesmo se não estivéssemos falando de uma pessoa que os combatentes de Salò como “a minha parte política”.

Seria muito grave se a mera expressão de uma ideia pudesse determinar toda a pessoa do autor, a sua história, a sua produção intelectual, a sua figura pública. Estes senhores Speranzon e Donazzan, sabem que o autor de Demônios e de Irmãos Karamazov tinha sido um militante de grupo terrorista? Então nós também queremos banir Dostoiévski das nossas bibliotecas?

Seria lamentável se este poder fosse exercido para fazer uma seleção prévia sobre as ideias, sugerindo que uma tomada de posição hoje, poderia ser usada amanhã contra o autor, conforme se alterassem as circunstâncias políticas.

Seria muito grave se o fluxo de ideias que estão garantidos e tornados públicos através da existência de escolas e bibliotecas se tornassem uma função regulada pelo poder; se até os livros adotados pelas escolas devessem se tornar algo a ser aprovado pelo poder; se aquele “vão ter que assumir a responsabilidade”, dito pelo vereador Speranzon contra eventuais opositores de sua censura se tornasse a regra segundo a qual se regula o direito ao trabalhar nas instituições públicas; se os professores, bibliotecários, e – por que não? – livreiros fossem contratados ou demitidos em base a sua capacidade de se submeter à disciplina imposta.

Seria muito grave se o “parecer Preganziol”, isto é, a prática implementada nesta aldeia do vêneto pelo secretário de cultura Leghista Roberto Zamberlan de remover os livros politicamente indesejáveis com uma simples “ordem verbal” se tornasse regra para o governo dos bens comuns.

Seria muito grave mesmo se acontecesse em Marte.

Mas aqui, na Itália, no Vêneto, já não esta acontecendo? Com a reforma da Universidade, as Regiões estarão dentro das Fundações e dos Conselhos de Administração das Universidades, e um secretário poderá ter poder de tomar decisões não apenas na atribuição de fundos para a educação, mas também sobre a gestão dos fundos atribuídos; até uma vereadora como Elena Donazzan, que acredita – e diz isso em público – que antifascismo e resistência não são valores constitucionais, pois não encontrou estas duas palavras na Constituição, poderá com o seu voto decidir o destino do ensino universitário.

Por acaso, já não está acontecendo que os direitos dos trabalhadores estejam sendo seriamente ameaçados por uma série de normas – desde o Collegato Sacconi sobre o trabalho até o Contrato de Mirafiori, passando por novos regulamentos, tais como o chamado decreto Brunetta, que restringem os direitos dos funcionários públicos? Que a própria vida dos trabalhadores esteja cada vez mais precária e insegura, que o trabalho seja sempre mais nocivo, seja sempre mais um instrumento de escravização e sempre menos voltado para a realização do ser humano? Assim como a vida e o trabalho, a cultura também esta cada vez mais sob ameaça, cada vez mais exposta ao controle disciplinar, à insegurança. A simples descrição da realidade – como já dissemos, repetimos – é um ato de insubordinação contra o poder disciplinar: é isso que nós, escritores, sempre fizemos, e seguimos fazendo, e prometemos não parar de fazer. Aos estudantes, trabalhadores temporários e aos rebeldes que nestes dias preparam as próximas lutas, pedimos para lutarem por nós assim como lutamos por eles.

Aos colegas de letras, música, artes, cultura e conhecimento, que pela posição privilegiada acreditam ter adquirido, por preguiça, por covardia, ou mesmo por arrogância ou medo, ainda não fizeram ouvir a própria voz, pedimos que o façam agora: se não for agora, quando será?

* Cientista político. Professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro, membro da Pós-Graduação da Escola de Comunicação e do Programa em Ciência de Informação (Facc-Ibict).

Traduzido por Claudia Antonini

Fonte:Sul21

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