O suplente
O que você faria se, aos 87 anos e sem ter recebido nem um mísero voto, se tornasse de uma hora para outra senador da República, com salário de 26,7 mil reais e quase 100 mil reais de verba de gabinete, carro oficial e outras benesses? Pelo visto, quase nada. O senador Garibaldi Alves, que tomou posse como suplente em janeiro, até agora não fez muito além de assinar a presença e ficar sentado quietinho no plenário da Casa durante as sessões.
De tão sossegado em seu canto, pouca gente se deu conta de que Garibaldi assumiu em janeiro não como suplente do filho, também Garibaldi, que tomou posse no Ministério da Previdência Social, aquele “abacaxi”, segundo o próprio. Por um desses arranjos que conferem à política brasileira sua graça natural, o ancião é na verdade suplente da demista Rosalba Ciarlini, aliada do clã, eleita em 2010 para o governo do Rio Grande do Norte.
Todas as tardes, por volta das 15h30, Garibaldi pai percorre de cadeira de rodas os 140 metros do chamado túnel do tempo, corredor que liga os gabinetes ao plenário, acompanhado de dois assessores. Ergue-se, é amparado até seu assento e lá permanece por cerca de duas horas. De vez em quando, um colega passa e lhe faz um aceno, ao qual responde cordial. Um ou outro se aproxima, troca algumas palavras, lhe dá um tapinha nas costas e sai. O laptop com conexão wi-fi em frente ao senador permanece intocado neste meio tempo. Não se sabe se estará curioso em descobrir os aplicativos do iPhone 4, com que acabam de ser regalados os senadores.
Desde que assumiu, Garibaldi Alves leu dois discursos. O primeiro o levou às lágrimas ao prometer, no final: “Tudo farei para cumprir meus deveres como senador da República em defesa do Brasil, do Nordeste e do Rio Grande do Norte”. Honrou o plenário novamente com sua prosa ao homenagear José Alencar com a história de um encontro entre os dois nos anos 1970, quando Garibaldi dirigia a Indústria Têxtil Seridó e negociou com o ex-vice de Lula a instalação de uma das empresas do Grupo Coteminas no estado. Ainda não apresentou nenhuma proposição de sua autoria, mas o tempo corre a seu favor. Ou não?
Antes de se tornar senador, Garibaldi Alves foi deputado estadual por três vezes, cassado em 1969 pela ditadura, que o deixou inelegível por dez anos. Entre 1987 e 1990, ocuparia o cargo de vice-governador do Rio Grande do Norte. Agora, provavelmente o novato mais idoso do Senado brasileiro, quiçá mundial, sua posse foi celebrada na imprensa potiguar como um retorno à vida pública após 21 anos.
O senador não quis antecipar a CartaCapital os projetos que tem em mente e recusou-se a dar entrevista. Ao Diário de Natal, que o encontrou, em outubro passado, “disposto e empolgado com o futuro político”, declarou que pretende cumprir os quatros anos de mandato na íntegra e defender os interesses do agricultor e do pecuarista do seu estado. Garibaldi mencionou também a intenção de se estabelecer em Brasília, por ter medo de avião, trauma adquirido durante a viagem de estreia pelos céus.
“Eu tive no meu primeiro voo uma experiência muito desagradável. Na hora da saída, teve aquele impacto inicial e uma freira que ia ao meu lado gritava terrivelmente. Aquilo me machucou bastante”, contou o senador. “Tanto que sempre que entro no avião rezo, procuro esquecer esse episódio, mas não há jeito. Sempre que viajo, fico um pouquinho nervoso.”
É certo que o Senado hoje não é mais o museu de relíquias dos tempos do Império, quando Machado de Assis evocava a figura do Marquês de Itanhaém como “uma razão visível contra a vitaliciedade” dos mandatos. Itanhaém, escreveu Machado, “mal se podia apear do carro e subir as escadas; arrastava os pés até a cadeira”. Atualmente, a média de idade do Senado caiu três anos, de 61 para 58 anos. O mais velho é justamente Garibaldi Alves, que fará 88 daqui a um mês. Há outros cinco senadores octogenários, mas vários estão na casa dos 40.
E, verdade seja dita, o remoçado Senado começa a abrir mão de ao menos uma das velhas práticas da política, justamente a que torna possível um suplente sem votos, da idade que for, tomar posse no cargo por até oito longos anos. Na última legislatura, chegou-se a ter 20 suplentes em exercício do cargo, num total de 81 senadores. Ou seja, um quarto da Casa não tinha recebido voto algum para estar ali. Não existe critério para a escolha de um suplente: pode ser o pai, a mãe, o irmão, um tio distante, a avó.
O senador Edison Lobão Filho, por exemplo, poderá usufruir durante seis anos do cargo para o qual não recebeu votos: assumiu em 2006 no lugar do pai, que foi para o Ministério de Minas e Energia. Lobão deixou o cargo para se reeleger, foi de novo alçado ao ministério por Dilma Rousseff, e o “lobinho” voltou ao Senado. No caso de Garibaldi, se a saúde lhe abençoar e Rosalba continuar governando tranquilamente em Natal, só sairá do Senado aos 92, embora, é claro, ninguém esteja dando por sentado que sua carreira termine aí. Mas, se for aprovada em plenário a reforma eleitoral, pode ser que seja um dos últimos a serem tocados pela fortuna dos arranjos eleitorais.
Em meados de março, a Comissão de Reforma Política aceitou a proposta de reduzir de dois para um o número de suplentes. O caráter da substituição também deixaria de ser definitivo e passaria a provisório: duraria, no máximo, dois anos, até a eleição seguinte, municipal ou presidencial. “O ideal seria que os suplentes também fossem votados, mas argumentou-se que seria um complicador para o eleitor na hora do voto”, explicou o senador Wellington Dias. “É um paliativo. Não tem voto, mas fica por pouco tempo.”
Caso o plenário confirme a votação na comissão e a proposta não seja modificada na Câmara dos Deputados, não será permitida ainda a acomodação estratégica de cônjuges e parentes até o segundo grau na suplência, o que é positivo em tese, mas na prática significa pouco. Sempre se pode encontrar um amigo candidato disposto a fazer um agrado à família. Garibaldi sênior que o diga.
Cynara Menezes
Cynara Menezes é jornalista. Atuou no extinto "Jornal da Bahia", em Salvador, onde morava. Em 1989, de Brasília, atuava para diversos órgãos da imprensa. Morou dois anos na Espanha e outros dez em São Paulo, quando colaborou para a "Folha de S. Paulo", "Estadão", "Veja" e para a revista "VIP". Está de volta a Brasília há dois anos e meio, de onde escreve para a CartaCapital.
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