sexta-feira, 8 de abril de 2011

O segundo violino nos 100 dias de Dilma

Maria Cristina Fernandes
Valor Econômico - 08/04/2011


Se a comparação são os oito anos de Luiz Inácio Lula da Silva é de trégua que parece viver o poder nos primeiros 100 dias do governo Dilma Rousseff. Mas se a analogia é da presidente com a imagem que dela projetou a acirrada campanha eleitoral não é apenas de mais calmaria que se vive. Parece outro o país que há quatro meses parecia estar a caminho de se transformar numa república de incréus abortistas.

O tema sumiu de cena como entrou. A presença de uma presidente duas vezes divorciada no Planalto em nada altera a rotina de um país em que os abortos clandestinos continuam matando. Com ou sem bíblia a guiá-la, a oposição continua igualmente perdida.


Ainda parece difícil acreditar que uma campanha obscurantista como aquela chega e vai embora sem deixar sobras. Foi nesse rastro que, levado por um aluno, Antônio Flávio Pierucci acompanhou cultos de uma igreja pentecostal durante a campanha. O que assistiu ao vivo, do púlpito à internet, lhe dava conta da mais radical intromissão da religião numa disputa eleitoral.

Chefe do Departamento de Sociologia da USP e estudioso de longa data da religiosidade popular, Pierucci mergulhou no tema sob o temor de encontrar mais indícios do terreno que a fé havia ganho sobre a política.

Pois acabou concluindo o contrário. Em artigo que abre o mais recente número da Novos Estudos/Cebrap, chega a demolidora conclusão: a inflamada campanha teve um efeito secularizante.


Dos cultos a que assistiu na campanha não esqueceu dos sermões alertando os fiéis de que, eleita Dilma, os pastores seriam obrigados a fazer casamentos gays e a bíblia seria censurada. Em outros cultos, pastores conclamavam a audiência a gritar em uníssono em qual candidato eles não deveriam votar. Levantavam o braço direito e repetiam: Dilma, Dilma, Dilma.

Passando em revista os cultos, a internet, a imprensa, as cartas eclesiásticas e os santinhos, Pierucci está convicto de que a religiosidade das massas pregou uma peça naqueles que a tinham convocado a assumir o papel de protagonista da sucessão de Luiz Inácio Lula da Silva.


Diz que o desfecho do primeiro turno, com a reação desordenada de Dilma à exploração de suas posições abortistas e a votação surpreendente de Marina Silva, contribuiu para reforçar as expectativas dos utilitaristas da religião. A confiança foi tanta que, no segundo turno, os estrategistas perderam o controle da direção.


O tiro saiu pela culatra, mas Pierucci achou por bem buscar nos estudos de comportamento eleitoral um nome para a coisa: efeito fariseu.


Baseou-se no termo cunhado por uma dupla de psicólogos da Universidade do Alabama, Larry Powell e Eduardo Neiva, que analisaram o insucesso do candidato republicano Roy Moore na campanha de 2006. Candidato ao governo do Alabama, Moore apresentava-se como justiceiro da moral e da religião - o "juiz dos Dez Mandamentos". Perdeu.


A derrota foi atribuída à tentativa excessiva de persuadir o eleitor da personalidade religiosa do candidato. Pierucci compara o slogan de Moore aos santinhos em que a foto de José Serra, por ele assinada, se fazia acompanhar da sentença "Jesus é a verdade e a justiça".


Os americanos recorreram a uma parábola do evangelho de São Lucas e apelaram ao efeito fariseu para explicarem a derrota de Moore. Na parábola, o fariseu exalta e se orgulha de sua prática religiosa fazendo-se passar por santo. Lucas diz que Jesus, nesta parábola, quis recriminar quem faz pose turbinada de devoto.


Pierucci não tem dúvidas de que, na campanha de 2010, o eleitor religioso viu excessos no emprego tático de um Serra piedoso explorando as fraquezas de uma pecadora. Isso teria neutralizado até mesmo reações desencontradas de Dilma, como o batismo televisionado do seu neto de 15 dias.


Ao fazer-se passar por santo, o candidato do PSDB desprezou o risco de que o bumerangue em brasa ardente do inferno poderia voltar. Foi o que Pierucci avalia ter acontecido quando, na metade de outubro, Sheila Canevacci Ribeiro relatou no Facebook o depoimento da esposa do candidato sobre sua experiência de aborto.


Filha de uma socióloga que havia sido candidata a vice-prefeita de Osasco (SP), pelo PSDB, Sheila foi aluna de dança de Mônica Serra na Universidade de Campinas.


Não se dizia portadora de uma denúncia porque Mônica, segundo relataria à jornalista Mônica Bergamo, da "Folha de S. Paulo", não havia confessado o aborto, mas usado sua experiência para demonstrar às alunas como traumas afetam os movimentos do corpo.


O relato ganhou a internet e logo chegou às igrejas. Eleitor costuma ter sua inteligência insultada durante as campanhas eleitorais de todas as cores ideológicas. Mas a de 2010 foi além. Dispôs-se a manipular a espiritualidade do eleitor.


Pierucci ficou até o fim do segundo turno na expectativa da reação. A insatisfação das igrejas com a terceira versão do Plano Nacional de Direitos Humanos - um documento que se limita a tratar do aborto como questão de saúde pública e a recomendar o reconhecimento legal do casamento gay - era tamanha que ele não acreditava em capitulação. Some-se a isso o avanço da Igreja Universal - que não condena o aborto - no governo Lula e estava dada a medida do engajamento.


Ainda na quaresma, a campanha da fraternidade lançara o lema "Vocês não podem servir a Deus e ao dinheiro" numa demonstração de que enfrentaria interesses materialistas satisfeitos no governo Lula.


E a reação efetivamente veio com o papa. Num encontro com bispos brasileiros às vésperas do segundo turno Bento XVI condenou a descriminalização do aborto e advogou o direito de os bispos emitirem "juízo moral sobre matérias políticas".


É à desproporção entre este engajamento e a resposta do eleitor que Pierucci atribui o efeito secularizante da campanha. E aposta que serviu de vacina ao uso desmensurado da religião em futuras disputas.


Entre o moralismo religioso mistificado e a liberdade de escolha na indevassável cabine de votação, o eleitor optou por esta última. Por mais desorganizada que pareça a orquestra, conclui, a religião consegue no máximo o papel de segundo violino.

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Maria Cristina Fernandes é editora de Política. Escreve às sextas-feiras

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